Silêncio e sentido: extrapolando o formalismo na linguagem
Livro propõe uma reflexão sobre as diferentes formas e significações do silêncio a partir de uma perspectiva discursiva
Cintia Cavalcanti
10/09/2013
Seria o silêncio redutível � ausência de palavras, a um mero acidente da linguagem? Poderíamos apreender sua significação mais profunda, tomando-o pelo sentido “passivo� e “negativo� que lhe foi atribuído nas formas sociais de nossa cultura? Apesar do silêncio ter sido relegado a uma posição secundária como excrescência, como “resto� da linguagem, a partir da perspectiva discursiva apresentada pela linguista Eni Orlandi em As formas do silêncio, ele pode ser visto de uma maneira diametralmente oposta, como o cerne do funcionamento da linguagem.
Nessa obra, a autora se coloca o desafio de tomar o silêncio como objeto de reflexão, fazendo com que o leitor caminhe na relação entre o dizível e o indizível, a partir da exploração dos entremeios tanto das disciplinas como das diferentes teorias da linguagem, a fim de atribuir-lhe significação, demonstrando sua multiplicidade de sentidos. Cabe, no entanto, ressaltar que, para ela, não se trata de atribuir ao silêncio um sentido metafórico em sua relação com o dizer, ou seja, traduzir o silêncio em palavras, mas antes conhecer os processos de significação que ele põe em jogo.
Orlandi mostra a dificuldade e o desafio que se impõem aos métodos formais para tratar de um objeto empiricamente intangível e não representável, o que os torna padoxalmente limitados para sua análise, fazendo necessário desloc�-la “do domínio dos produtos para o dos processos de produção dos sentidos�. Em um esforço contra a hegemonia do formalismo, a autora reflete sobre o silêncio através de um método histórico, fazendo apelo � interdiscursividade, trabalhando assim, “os entremeios, os reflexos indiretos, os efeitos do silêncio�. Para isso, evidencia duas categorizações que considera fundamentais das formas de silêncio: o silêncio fundante ou fundador e a política do silêncio ou silenciamento. Na primeira, o silêncio pode ser percebido ao atravessar palavras, se estabelecer entre elas ou indicar que o sentido pode ser outro, ou que o mais importante nunca � dito. Na política do silêncio, admitindo-se que o sentido � sempre produzido em algum lugar, a partir de uma “posição do sujeito�, ao se dizer algo, deixa-se de dizer outros sentidos possíveis, na tentativa de silenci�-los.
Em seu caráter fundador, podemos vislumbrar que a existência do silêncio precede a da linguagem, enquanto ato da fala. Este consiste em separar e distinguir; a fala disciplina o significar na tentativa de sedentarizar o sentido. Ou seja, a fala estabiliza o movimento dos sentidos, ao passo que no silêncio, “sentido e sujeito se movem largamente�. Sob essa ótica, torna-se presumível que, se as palavras são múltiplas, maior multiplicidade de sentidos poder� haver no silêncio.
Para uma análise mais aprofundada acerca do silêncio, a linguista apela � história das palavras, através da qual apresenta ao leitor a etimologia de silentium, palavra que por sua vez remete a sileo, usada na Antiguidade clássica para designar ausência de movimento ou ruído, empregada particularmente para falar de pessoas, do vento, da noite e do mar. Orlandi usa a metáfora do silentium como mar profundo, a partir desse impulso etimológico, ilustrando que no silêncio das profundezas das águas est� o real sentido, enquanto as ondas são apenas o ruído, suas bordas, seu movimento periférico, as palavras. Entretanto, na sociedade contemporânea, a ideologia da comunicação destinou ao silêncio um lugar subalterno, na tentativa de apag�-lo, esperando que a todo tempo sejam produzidos signos audíveis e visíveis continuamente. � justamente nesse contexto que, ao invés de se pensar o silêncio como falta, a autora propõe pensar a linguagem como excesso.
Voltando-se para a dimensão política do silêncio, assentada sob o pressuposto de sua dimensão fundadora ou constitutiva � uma vez que o silêncio faz parte de todo o processo de significação, ou, ainda na palavras de Orlandi, “é a matéria significativa por excelência� �, podemos verificar sua emergência quando o dizer oculta o não dito, apagando possíveis, porém indesejáveis outros sentidos. Orlandi examina em profundidade a manifestação mais visível dessa política: a interdição do dizer, claramente expressa e exemplificável através da censura, na qual se proíbem certas palavras para se proibirem determinados sentidos.
As formas do silêncio mostra a fluidez do funcionamento da linguagem, que consegue tirar proveito da matéria mesma da redução dos sentidos para produzir sua expansão, fazendo da censura o terreno fértil para deslocamentos, desdobramentos e bifurcações de sentidos, simulando o senso comum, o consenso e o estereótipo para dizer o que � proibido, dando espaço às manifestações de resistência. Assim, a autora apresenta uma reflexão acerca dos mecanismos da linguagem de resistência, mostrando que “h� uma relação sentido/discurso social, sob a censura, que se estabelece de forma que signifique o que � preciso não dizer� (p.113). A mobilidade da identidade e dos sentidos faz com que sempre seja possível a ambos encontrar suas formas de se manifestar.
Partindo da reflexão sobre a censura e o silenciamento, Orlandi analisa também o mecanismo de apagamento de autoria, muito comum nos meios acadêmicos, mostrando como a censura pode se dar entre iguais, não exercida necessariamente de cima para baixo. Ela aponta como esse mecanismo de silenciamento do autor não consegue produzir “o movimento de sua contemporaneidade� (p.141), fazendo com que as palavras apropriadas, ao se fingirem de novas, soem muito velhas. Nesse ínterim, a autora demonstra a importância da citação no discurso científico para além da questão moral, evidenciando seu aspecto funcional.
Orlandi, a partir de uma perspectiva discursiva, consegue demonstrar a multiplicidade do silêncio, evidenciando o movimento de sentidos e mostrando que para compreender um discurso, devemos sistematicamente perguntar o que ele “cala�.
As formas do silêncio Eni Puccinelli Orlandi Editora Unicamp 2007 181 p.