A disputa eleitoral que se encerrou no dia 29 de outubro colocou em evidência um termo que deve continuar em pauta, mesmo após a reeleição de Lula, e estará no centro dos debates sobre a reforma política que será cobrada dos deputados e senadores que tomam posse em fevereiro de 2007: a ética. O que é isso, afinal? Será que esse termo, associado à idéia de moralidade, mudou muito desde a sua origem? O seu emprego em diversas outras esferas que não apenas a política tem outras conotações e outros sentidos? E mesmo na esfera política, ética significa muito mais do que simplesmente negar a corrupção?
A palavra “ética” vem do grego ethos, que significava, já na Grécia antiga, hábito, costume. Esse sentido é o mesmo atribuído pelos romanos da Antiguidade à palavra latina mores, que deu origem ao termo “moral”. A associação de valores positivos a hábitos e costumes, num primeiro momento, dependia do status social do indivíduo. “Um aristocrata, por exemplo, deveria ser corajoso e, eventualmente, generoso. Uma pessoa subalterna teria como melhor qualidade a obediência, a prestimosidade”, explica Rodrigo Duarte, professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
A ética se torna uma disciplina da filosofia a partir das indagações de pensadores como Heráclito e Sócrates sobre o comportamento humano, os costumes e os valores a eles atribuídos. Surge, então, a ética como filosofia moral, um campo do pensamento filosófico dedicado a discutir, problematizar e interpretar o significado dos valores morais. Para Sócrates, o ethos (costume) considerado bom e virtuoso tem origem no logos (razão), pois o sujeito ético é aquele que tem consciência do significado de suas atitudes e da essência dos valores morais, ou seja, ser ético implica em uma reflexão que justifique a ação.
Aristóteles acrescenta a essa idéia a noção de saber prático: o conhecimento daquilo que só existe como conseqüência de nossa ação. Ele também soma à consciência moral proposta por Sócrates a idéia de vontade guiada pela razão: a decisão ou deliberação sobre algo que depende de nossa vontade. “O principal termômetro da ética é o dilema. Uma pessoa pode decidir ultrapassar os limites de velocidade no trânsito para salvar a vida de um acidentado, mesmo sabendo que será multada”, ilustra Luiz Martins, professor de ética na comunicação na Universidade de Brasília (UnB). Na ética, nem sempre os fins justificam os meios, mas nesse caso, o fim é um valor maior: a vida. Para os filósofos da Antiguidade, ética e conduta do indivíduo são inseparáveis de política e dos valores da sociedade, pois é somente na existência compartilhada que se encontra liberdade, justiça e felicidade.
Na Idade Média, pensadores como São Tomás de Aquino orientaram-se pelas idéias de Aristóteles sobre ética, deslocando, porém, a base do comportamento ético da relação do indivíduo com a sociedade para a sua relação espiritual e interior com Deus. As principais virtudes para o cristianismo são a fé e a caridade, condições de todas as outras, como a coragem e a prudência, consideradas virtudes cardeais (fundamentais). O orgulho e a inveja, que para Aristóteles eram vícios por excesso, e a avareza, considerada um vício por deficiência do indivíduo, passaram a ser tratados pela ética cristã como pecados capitais. E o ócio, que para a sociedade escravagista greco-romana era condição para o exercício da política, torna-se no cristianismo um vício da preguiça, com a valorização do trabalho como uma virtude moral.
À idéia da filosofia antiga de que possuímos uma vontade consciente para controlar as paixões, os apetites e os desejos, o cristianismo contrapõe a idéia de que temos vontade livre (ou livre arbítrio), cujo primeiro impulso é voltar-se para o pecado e, portanto, precisaríamos do auxílio divino e de suas leis para sermos sujeitos morais. Surge, então, a noção de dever em relação às normas de condutas, que definem quais delas são morais ou éticas e quais são imorais ou antiéticas. O cristianismo também introduz a idéia de intenção: até então, a filosofia moral julgava como vício ou virtude as ações e atitudes visíveis; na ética cristã, a intenção invisível também tem o testemunho e o julgamento de Deus.
Quando as descobertas científicas começam a abalar os dogmas da Igreja, já na Idade Moderna, com a teoria heliocêntrica de Copérnico e Kepler na astronomia e suas repercussões na física de Galileu e Newton, há uma mudança no pensamento filosófico. O ser humano e o seu planeta deixaram de ser o centro do universo e a relação entre os corpos deixou de ser um jogo comandado pelas mãos divinas. “A própria posição do ser humano no mundo precisou ser revista, o que se reflete nas filosofias de Decartes, Pascal, Espinosa e outros”, diz Duarte, da UFMG.
No século XVII, Espinosa postula que por sofrermos ação de causas exteriores a nós, seríamos seres naturalmente passionais, e as paixões não seriam nem boas e nem más, apenas naturais. Para ele, são três as paixões originais: alegria, tristeza e desejo. Da primeira derivam o amor e a misericórdia, por exemplo; da segunda, a inveja e o orgulho; e da terceira, a ambição e a luxúria. O vício seria, então, sucumbir às paixões e desejos tristes governados por causas externas, e a virtude seria a força para ser e agir autonomamente.
A idéia de autonomia do sujeito moral, que age de acordo com sua consciência sem se submeter a poderes externos, acompanha a ética desde a filosofia antiga até hoje. “Não acredito em ética vigiada por câmeras em estádios de futebol. O mesmo pode-se dizer em relação às empresas que alegam o direito de vigiar seus empregados”, comenta Martins, da UnB. No século XVIII, essa idéia levou ao questionamento da submissão às leis divinas por dever do sujeito cristão, que condicionava o comportamento ético a um poder externo. A resposta de Rousseau a essa questão é a de que a consciência moral e o sentimento de dever seriam inatos – ou seja, nasceríamos com eles –; com a instituição da propriedade privada e dos interesses privados, o homem teria se tornado egoísta e mentiroso, necessitando que o dever às leis divinas o forçasse a se recordar de sua natureza originária. Já Kant pensou em uma solução diametralmente oposta: para ele, somos naturalmente egoístas, ambiciosos e agressivos e, justamente por isso, precisaríamos do dever para nos tornarmos seres morais; a moral, para Kant, porém, não viria de um sentimento natural em nossos corações, como em Rousseau, mas da razão, como diziam Sócrates e Aristóteles.
No século XIX, Hegel critica tanto Rousseau quanto Kant, por ambos terem enfatizado a relação do sujeito com a natureza e esquecido da relação do sujeito com a cultura e a história. Outra crítica de Hegel é que eles admitiam a relação entre ética e sociabilidade a partir de relações pessoais, enquanto deveriam ter como ponto de partida as relações sociais fixadas por instituições como família, sociedade civil e Estado. Para Hegel, somos seres históricos e culturais, e além de nossa vontade individual subjetiva, há uma vontade objetiva – social, pública, coletiva – muito mais poderosa, estabelecida pelas instituições e pela cultura. A vida ética, portanto, seria o acordo entre a vontade subjetiva individual e a vontade objetiva cultural.
“O reduto ético inexpugnável é o social. O velho imperativo categórico se forma socialmente”, explica Martins, da UnB. Assim, cada sociedade, em cada período da história, define os valores positivos e negativos para os comportamentos, os atos permitidos e os proibidos; cada cultura tem seus próprios costumes arraigados. “Um exemplo: a queima voluntária de viúvas junto com os corpos de seus maridos na Índia tradicional”, ilustra Duarte, da UFMG.
No século XX, Marx classifica de hipócrita os valores da moral vigente – de liberdade, felicidade e respeito à humanidade –, porque eram irrealizáveis em uma sociedade baseada na exploração do trabalho, na desigualdade social e econômica, e na exclusão dos direitos políticos e culturais de uma parcela de seus membros. Para Marx, era preciso mudar a sociedade para a ética se concretizar. Já Bergson parte da perspectiva de Hegel para falar em duas morais: uma fechada, ligada às ações individuais de acordo com os valores e costumes de uma sociedade; e uma aberta, na qual indivíduos excepcionais criariam novos valores e novas condutas que rompem com a moral vigente. Um exemplo de mudança de comportamento é a exposição da barriga de mulheres grávidas na praia: hoje é comum, mas não era nos anos 1960 quando a atriz Leila Diniz ousou desfilar sua maternidade.
Na complexa sociedade contemporânea, certas esferas específicas de atuação humana, na consolidação de suas posições sociais, adquiriram um poder considerável, tornando necessário o estabelecimento de éticas setoriais próprias, como a ética médica ou a ética jornalística. “É importante observar que quando se fala em ‘éticas’ com esse sentido, o que está em questão não é apenas a observância de preceitos morais considerados adequados pela comunidade (médica ou jornalística), mas também a capacidade de refletir adequadamente sobre a norma, suas possibilidades de aplicação e até mesmo (em casos absolutamente especiais) de transgressão”, diz Duarte.
No comportamento ético mais geral e não setorizado da atualidade, o filósofo da UFMG vê uma degradação na capacidade dos sujeitos para refletir, devido à sua disposição para seguir os apelos da propaganda comercial, política e ideológica, o que ele chama de “imitação das paixões”. Já Martins, da UnB, é mais otimista: “A ética antes era mais imposta e hoje ela é negociada. Há um contributo do cidadão em medidas como plebiscito, referendo e consultas públicas”, afirma, dando como exemplo a classificação de programas de TV por faixa etária, fixada pelo Ministério da Justiça após ouvir milhares de pessoas da sociedade civil.
Para Martins, tudo é ético, desde o simples ato de ceder o lugar a uma mulher grávida ou a um idoso no ônibus até o respeito às filas – em bancos, supermercados, entradas de shows – e o respeito dos motoristas não apenas pelas leis do trânsito, mas especialmente pelos pedestres, ciclistas e pelos outros motoristas. “O campo da ética é o respeito. E eu sou ético quando percebo que se eu sou cooperativo, acabo me beneficiando”, ensina.
Para saber mais:
A existência ética - capítulo 4 de Convite à Filosofia, de Marilena Chauí
A filosofia moral - capítulo 5 de Convite à Filosofia, de Marilena Chauí
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