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Reportagem
A divina química das fragrâncias
Por Luiz Paulo Juttel
10/09/2007
figura1“Haverá desse modo incenso diante do Senhor perpetuamente nas gerações futuras”. A frase dita por Deus a Moisés passa despercebida até pelo cristão mais fervoroso. Afinal de contas, ela é apenas uma das muitas instruções para a construção do altar das oferendas israelitas àquele que os libertou da escravidão egípcia. Segundo a Bíblia, Deus queria que esse altar exalasse fragrâncias de acácia constantemente. Embora breve e simples, o trecho do capítulo 30 do livro do Êxodo é um dos primeiros relatos acerca da existência de perfumes na história humana e de sua ligação com os assuntos divinos.

A origem latina da palavra perfume, per (através) e fumum (fumaça) torna mais fácil a compreensão do porque a expressão acima fala de incenso e não perfume. Realmente, os primeiros perfumes de que se têm notícia eram utilizados em templos religiosos egípcios, onde acreditava-se que a queima de madeiras, ervas e incensos era capaz de acelerar a entrega das preces dos homens aos deuses. Os que “partiam desta para outra” também levavam consigo um pouco de fragrância para garantir um encontro digno com os todos poderosos celestiais (conheça a história do perfume).

No entanto, se no passado perfume era exclusividade de Deus, no presente sua existência se deve à mentes e narizes pra lá de humanos. Pois, graças aos perfumistas é que temos a nossa disposição uma grande variedade de tipos de perfumes, tão úteis em determinadas ocasiões, como durante uma conquista amorosa, por exemplo. Esses profissionais, na maioria químicos especializados no desenvolvimento e síntese de compostos orgânicos, levam em média de cinco a dez anos para desenvolver uma nova molécula com potencial de mercado. Muitos processos complexos são necessários para transformar algo abstrato como um cheiro em uma mistura oleosa de qualidade, embalada em frascos de refinado design.

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Lily Essence: essência fruto de pesquisa brasileira
Divulgação: O Boticário

A fragrância de um perfume tenta “imitar” os odores dos objetos naturais. Na verdade, ela não é nada mais que uma molécula orgânica volátil de baixo peso molecular. Tais moléculas pertencem principalmente aos grupamentos químicos dos aldeídos, cetonas, álcoois, ácidos carboxílicos e terpenos e possuem a capacidade de gerar repostas olfativas (ao todo, o ser humano possui uma média de 350 receptores olfativos). Entretanto, é importante salientar que apenas as substâncias que se encontram em estado gasoso conseguem ser percebidas pelo nosso nariz. Isso faz com que a volatilidade das matérias-primas (tempo que elas levam para evaporar) seja extremamente importante para a indústria de perfumaria.

Uma vez no laboratório, o perfumista desenha, através de modelos matemáticos preditivos, as muitas fragrâncias que irão compor um perfume. A partir daí, ele parte para o reator químico, onde mistura os compostos escolhidos (cada perfume contém de 30 à 80 diferentes compostos, às vezes mais) até obter a fórmula desejada. “Toda nova molécula, mesmo antes de se transformar produto, é patenteada para que a companhia tenha exclusividade sobre a mesma, na busca de vantagem competitiva no mercado”, diz Maurício Cella, diretor de tecnologia da Givaudan do Brasil, umas das maiores desenvolvedoras de fragrâncias do mundo.

Obter a fragrância desenhada pelo perfumista não garante, necessariamente, que o novo perfume irá chegar ao mercado. Antes disso, Cella diz que é preciso que seja feita uma “análise de potencial econômico, segurança e avaliação olfativa do produto”. Somente depois é que o trabalho do químico se transforma em mercadoria nas perfumarias mundo afora.

Perfumes da natureza sintetizados em laboratório

Uma questão chave no processo de elaboração de fragrâncias é como obter as inúmeras matérias-primas (o número exato ultrapassa a casa do milhar) utilizadas pela indústria. Aqui, talvez, alguém imagine dezenas de trabalhadores locais entrando na Floresta Amazônica atrás de flores, frutas, troncos de árvores e outros tipos de óleos aromáticos da nossa biodiversidade que possam ser prospectados e utilizados pelos químicos. Não é isso que ocorre atualmente. De uns anos para cá, as empresas de fragrâncias têm conseguido capturar e sintetizar os odores de plantas, ou até mesmo ambientes inteiros, sem tocar em um espécime sequer da natureza. Cella diz que a Givaudan faz isso através de um processo chamado Headspace criado pelo franĉes Ive Flament e aperfeiçoado pelo suíço Roman Kaiser.

No Headspace, um objeto ou ambiente é isolado por vidrarias especiais no qual, todo o ar contido dentro da vidraria é bombeado e adsorvido (adsorção é a adesão de moléculas de um fluido para uma superfície sólida) por um polímero de alta adsorção, geralmente um tipo de resina orgânica. Uma vez capturadas pelo polímero, as substâncias aromáticas são levadas a um equipamento chamado cromatógrafo gasoso. Tal máquina possui várias colunas capilares que reagem de acordo com a afinidade ao tipo de substância ali introduzida. Aos poucos, a mistura é separada em fragrâncias individuais que são depois identificadas pelo espectômetro de massas.

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Cromatógrafo gasoso com espectômetro de massa
Crédito: Shimadzu do Brasil

Dessa maneira, é possível decompor o cheiro de uma fruta, flor, ou ambiente e identificar quimicamente todas as suas substâncias aromáticas simples. “Isso torna possível a reprodução fiel do odor da espécie biológica estudada. Uma vez conhecidas as substâncias individuais, os perfumistas partem para a síntese delas em laboratório conforme as opções de matérias-primas da empresa”, conclui Cella.

Outro aspecto que o perfumista precisa se preocupar é a volatilidade dos óleos aromáticos escolhidos. Pois, conforme o tempo de evaporação das substâncias é que serão formadas as notas olfativas do perfume. Estas notas se dividem em três famílias:

• As notas de saída são as substâncias mais voláteis da composição, aquelas exaladas nos primeiros 15 minutos a partir do contato do perfume com a pele. Formam a porção mais volátil da composição (evaporam primeiro). Pertencem geralmente aos grupos olfativos cítricos, verdes, florais ou frutais.

• Depois de três a quatro horas, começam a ser exaladas e percebidas pelo nosso olfato as notas de corpo. Essa percepção tardia é conseqüência da menor volatilidade dessas substâncias comparadas às notas de saída. Costuma-se dizer que as notas de corpo compõem o “coração” da fragrância. As matérias-primas são os florais e especiarias.

• As notas de fundo são fragrâncias percebidas a partir da quarta ou quinta hora de evaporação do perfume. Novamente, isso se deve a baixíssima volatilidade dessas substâncias.

As notas de fundo possuem uma segunda característica importante. Muitas delas formam o que chamamos de fixadores do perfume. É comum ouvir que o perfume X tem um cheiro bom, mas não dura muito tempo. Pior ainda é quando dizem que o problema da marca Y é que seus perfumes (todos, pois costumamos generalizar) não perduram na pele. Tais tipos de comentários se referem sempre aos fixadores.

Acontece que não existe um “componente mágico” que faça com que um perfume perdure de forma indefinida na pele. A duração tem estreita relação com a composição da fragrância em si. “As moléculas que compõem um perfume possuem distintos níveis de volatilidade e quando elas são misturadas, interagem entre si fazendo com que a volatilidade final seja uma média das mesmas. Ou seja, para se obter perfumes com maior duração, deve-se aumentar a porcentagem de substâncias menos voláteis na composição”, esclarece Cella.

O tipo de pele da pessoa também contribui para melhorar a fixação de um perfume. Em peles oleosas a fragrância perdura por mais tempo; em peles secas, ela precisa ser reaplicada mais vezes ao dia.

Enfleurage: a captura artesanal de uma essência

Os cuidados na extração dos óleos voláteis são essenciais para evitar que características originais se alterem. Durante certos métodos de extração a água, a acidez e a temperatura podem provocar a hidrólise de ésteres, rearranjos, isomerizações e oxidações indesejáveis. Já vimos como equipamentos de última geração fazem esse trabalho. No entanto, artesanalmente também é possível obter resultados semelhantes. Em 2006, uma equipe de pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) recebeu um desafio. Eles teriam que modernizar a técnica de extração de óleos aromáticos Enfleurage utilizada desde a Idade Média. Segundo a professora Glyn Mara Figueira, do Centro de Pesquisas Químicas Biológicas e Agrícolas (CPQBA) da Unicamp, “no Enfleurage as substâncias aromáticas (geralmente flores) são expostas por um certo período de tempo a uma gordura em temperatura ambiente. Em seguida, substitui-se as flores por novas até saturar a gordura que é depois tratada com etanol”. Seguidos todos estes passos teremos o óleo aromático em alta concentração e baixa quantidade.

A diferença é que, dessa vez, a gordura a ser utilizada teria que ser de origem vegetal ao invés de animal como se fazia até aquela data. Através do novo processo, a empresa O Boticário desejava obter a fragrância da flor de lírio (Lillium spp) que seria utilizada no seu primeiro perfume de luxo (um dos primeiros produzidos no Brasil) intitulado Lily Essence.
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Lírios utilizados no processo de Enfleurage
Divulgação: O Boticário

Figueira relata que dez tipos de gorduras foram testadas em diferentes prazos de exposição às plantas (flores estas que não tinham as pétalas totalmente abertas ainda, por ser esse o melhor período para captação da fragrância). Entre tais tipos estavam: ceresina; gordura vegetal hidrogenada, cera de carnaúba, de ozoquerita; de farelo de arroz e gordura de karité.

Passados seis meses de pesquisa, a equipe concluiu que os óleos extraídos da exposição do lírio à gordura vegetal, em temperatura de 26º C, por um prazo de 48 h eram os ideais à produção de perfumes. Graças a esse intrincado processo brasileiro de captura de fragrância é possível encontrar atualmente frascos de 75 ml de Lily Essence à venda por R$ 137,00 cada.

Quando perguntado sobre o que deve possuir um perfume no âmbito químico para ser considerado perfeito, Cella responde dizendo que para ele “o melhor perfume é o que agrada o cliente”. Pelo o que se pode ver da mega indústria de fragrâncias atual, nenhum esforço nesse aspecto será contido.