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Reportagem
Conflitos entre torcidas de futebol: o que dizem especialistas
Por Janaína Quitério e Keila Knobel
10/06/2014

O ano de 2013 foi apontado como um dos mais violentos de todos os tempos no quesito intolerância entre torcidas no futebol brasileiro. Foram contabilizadas 30 mortes – sete a mais em comparação ao ano anterior – durante os campeonatos. Os números tabulados por pesquisas conduzidas por Mauricio Murad, professor da Universidade Salgado de Oliveira, em Niterói (RJ), até abril deste ano, projetam uma realidade preocupante em relação aos dois anos anteriores: já são oito mortes. “ Há uma progressão e uma radicalização entre a organização, a preparação e a ação dos segmentos aguerridos das torcidas organizadas, especialmente na mais extrema das práticas de violência: o homicídio”, alerta Murad, que criou e coordenou o Núcleo de Sociologia do Futebol na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), em 1990, o primeiro centro permanente nessa área no país.

Ainda que o fenômeno da violência entre torcidas não seja novo, pesquisadores consideram os conflitos atuais piores do que no passado. Para o professor Carlos Alberto Máximo Pimenta, da Universidade Federal de Itajubá (Unifei) e pesquisador no campo da sociologia do futebol, foram introduzidos nos últimos 30 anos instrumentos que tornam as brigas mais letais, como facas, bombas, sinalizadores e armas de fogo. Mas o que leva um grupo a transformar a paixão de torcer por um time esportivo em ódio capaz de matar? “Alguns pesquisadores fazem a reflexão sob uma perspectiva psicológica, outros trabalham questões biológicas. A minha pesquisa procura entender como esses movimentos se organizam e quais elementos sustentam a torcida – e um deles é a violência, usada no sentido de oposição ao outro”, explica Pimenta.

Em suas pesquisas, baseadas em trabalho de campo com diferentes torcidas, Pimenta analisa, com um olhar antropológico, que a violência e a intolerância são resultados da negação do outro. Ocorre intolerância quando o torcedor perde a noção de que o outro é um ser social: “Ao constituir a rivalidade, que a todo instante é declarada no plano verbal, em gritos de guerra, os torcedores se organizam para fomentar essa disputa, que, em momentos extremos, ganha proporção de violência muito significativa”, argumenta. O pesquisador da Unifei ressalta que as relações sociais verificadas há pelo menos três décadas priorizam perspectivas individualizantes, dificultando ações coletivas e politizadas na sociedade. “Nesse sentido, grupos de torcedores acabam se apropriando desses espaços vazios”.

Bernardo Buarque de Hollanda, professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e membro do Centro de Pesquisas e Documentação de História Contemporânea do Brasil na mesma instituição, ressalta que o estímulo proporcionado pelo jogo de futebol é justamente a relação com o outro dentro de princípios esportivos, no qual a superação é conquistada pela via do mérito. “O futebol é um jogo corporal, com o objetivo de superar o outro, mas sem ferir, sem causar dolo. Entretanto, entre os torcedores, a rivalidade perdeu o sentido esportivo, e a competição, antes focada na bandeira mais bonita ou no coro que fazia a diferença, tornou-se uma provocação que especialistas chamam de espiral de violência”, explica. Da provocação espontânea, os grupos partem para a briga baseada na força física. Eventualmente, usam armas brancas e armas de fogo. “Esses grupos codificam a forma de provocação, que passa a ser ritualizada. O estímulo competitivo evolui para a própria negação dos princípios esportivos”, conclui Hollanda.

 

Futebol como metáfora de guerra

Ao analisar as metáforas usadas pela mídia esportiva para se referir ao esporte como guerra, o pesquisador José de Souza Teixeira, professor associado do Departamento de Estudos Portugueses no Instituto de Letras e Ciências Humanas da Universidade do Minho, em Portugal, encontrou termos que exprimem o teor belicoso do esporte: batalha, duelo, ataque, massacre, capitão, matador, formação, bomba. Do mesmo modo, Teixeira apontou que as torcidas organizadas têm uma estrutura típica de exército, com hierarquia, disciplina própria, regras de conduta e até relações burocráticas. Além dos uniformes, bandeiras e gritos de guerra, adotam estratégias de guerra, com ação de linha frente, retaguarda e emboscadas, além de bombas caseiras, canivetes ou outros objetos que ferem. “O futebol é hoje a continuação imagética da mítica arena romana”, sugere o pesquisador. Assim, com direito à “grande arena” verde, torcedores extasiados ocupam o camarote central perante os quais os novos guerreiros lutam incansavelmente para dominar o território do adversário com força, agilidade, tática, beleza e genialidade.

Dramatização do futebol pela mídia, violência da própria sociedade, conflito entre jogadores, transgressões de árbitros e dirigentes, tudo isso encontrou eco nas torcidas organizadas. Para Felipe Lopes, filósofo e pesquisador da Faculdade de Educação Física da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a rivalidade, a intolerância e a violência no futebol estão longe de serem gratuitas e precisam ser analisadas no âmbito da sociedade como um todo, que, tal qual o universo futebolístico, legitima a violência no futebol. No entanto, Lopes contrapõe o discurso que estigmatiza as torcidas organizadas e que deteriora a identidade da maioria dos torcedores afiliados: “Os jovens encontram nessas agremiações um espaço de lazer, de acolhimento, de socialização e de participação política da qual não deveriam ser privados”, enfatiza.

Nesse quesito, os meios de comunicação têm papel ambíguo. Isso porque, ao mesmo tempo em que é necessário haver uma cobertura sobre a escalada de violência, é preciso evitar a identificação quase automática das torcidas com conflitos. É o que defende Hollanda, da FGV. “Esse estigma acaba reproduzindo uma imagem, uma má reputação a esses grupos, estimulando as pessoas que já têm intuito no confronto a se integrarem ao grupo porque sabem que podem encontrar uma recepção às suas atitudes mais agressivas”, pondera.

A vinculação de torcidas com a violência é pauta nos meios de comunicação e na agenda pública brasileira desde as décadas de 1980 e 1990, com exemplos marcantes de episódios violentos. Mas para Hollanda, os conflitos ficaram mais notórios e emblemáticos em 1995, depois do confronto aberto entre duas torcidas do futebol paulista, que ficou conhecido como a “batalha campal do Pacaembu”, com saldo de uma morte e de mais de 100 torcedores feridos. Tudo televisionado. “Foi transmitida, praticamente, uma guerra entre jovens de torcidas. A partir daí, de um ponto de vista compreensivo, a universidade procurou entender o que está sendo discutido pela sociedade”.

Como historiador, Hollanda partiu de estudos em antropologia e em sociologia para, à luz do desenvolvimento do futebol profissional brasileiro nos anos de 1920, entender como as torcidas surgiram e ganharam protagonismo no cenário nacional. “Fiz uma pesquisa que abrangeu desde os anos de 1940, com as primeiras associações de torcida, e se estende até os anos de 1980, mostrando fatos e casos com sinais de premeditação, de grupos voltados para esse confronto, embora ainda girando em função do esporte”.

Marcada pelo caos econômico e social, pela inflação e pelo desemprego nas grandes cidades, a década de 1980 viu surgir a identificação das associações de torcedores com grupos jovens da periferia, mesclando linguagens, códigos e rituais que se consolidavam a cada encontro de times rivais nas metrópoles brasileiras. Mas o contexto social não explica todas as raízes da violência. “A gente não pode se valer das questões sociais para passar a mão na cabeça de grupos violentos”, pondera Hollanda.

Flávio de Campos, historiador e coordenador científico do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre Futebol e Modalidades Lúdicas, da Universidade de São Paulo (USP), e Luiz Henrique de Toledo, antropólogo e coordenador do Laboratório de Estudos das Práticas Esportivas e Sociabilidade, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), são unânimes ao considerar que a violência não está circunscrita nas torcidas organizadas, como se, do “outro lado” a atitude dos torcedores comuns fosse totalmente pacífica. “Deve-se observar que há uma somatória de vetores que levam a esses atos (de violência) e que podem estar relacionados à forte espetacularização que assumiu o futebol na sua expressão máxima de poder e potência competitiva encapsulada na série A (a primeira divisão do campeonato brasileiro)”, concluem.

Freud explica: estudos da psicanálise

Para o torcedor apaixonado, seu time é o maior, o melhor. Na visão da psicanálise, ao atribuir a si o predicado de melhor, ou seja, ao igualar seu ego real ao ego completo e perfeito, os participantes das torcidas organizadas se aproximam do ideal narcísico e buscam combater a sua representação de sujeito incompleto. De acordo com a teoria freudiana, sempre que algo no ego coincide com o “ideal do ego”, o sujeito experimenta a sensação de triunfo. Do contrário, os sentimentos dominantes são o de culpa ou de inferioridade. Quando um time ganha – e outro perde –, integrantes das torcidas organizadas podem não suportar o sentimento de inferioridade, o que, em última instância, pode levá-los a buscar uma revanche fora do campo contra a torcida rival.

“Os times de futebol são meios para a manifestação de impulsos agressivos que caracterizam toda sociedade. É verdade que torcer por um time ou outro e rivalizar-se com o terceiro não sintetiza, não reúne ou expressa toda a agressividade que necessita ser amenizada para se manter a vida em sociedade. No entanto, alguns símbolos socialmente estabelecidos e aceitos, como os times, seus nomes, suas camisas, seus brasões, e, até mesmo, seus jogadores, são propícios às manifestações de impulsos agressivos e destrutivos”, afirma Luiz Augusto Celes, psicanalista, pesquisador colaborador e professor aposentado do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura da Universidade de Brasília (UnB).

Em grandes grupos que comungam dos mesmos objetivos, os sujeitos abdicam de suas individualidades e de suas identidades particulares em nome do grupo, que “autoriza” e “valida” os excessos praticados e os libera do jugo social e de sua própria autocrítica. “Os membros dos grupos violentos não são necessariamente violentos quando tomados individualmente. O grupo é fundamental para que a violenta agressividade, o gosto da destruição do outro etc, se façam presentes e se manifestem”, afirma Celes.

Mas existem os denominados “torcedores comuns”, que conseguem expressar sua agressividade com controle, geralmente fazendo apenas piadas dos adversários e pequenas provocações bem-humoradas. “O humor é uma maneira culturalmente aceita de expressar a agressividade. Toda rixa é expressão direta de agressividade, mas o humor apazigua esse ímpeto. Ele azeita as relações sociais, entre grupos rivais, entre culturas distintas”, explica Celes. Porém ele dá um alerta aos pais e avós de pequenos torcedores: “As brincadeiras não devem ultrapassar esse caráter. Eles precisam de limites, os quais os adultos têm a função de estabelecer. Isso se aplica não somente para o controle da agressividade, mas também, e não menos importante, para a limitação do gozo que se pode ter com a provocação do outro torcedor”.

Políticas públicas: balanço do Estatuto do Torcedor

“Regras de conduta são necessárias para a contenção ou a canalização dos aspectos profundamente destrutivos das pulsões, que não se estabelecem definitivamente na educação”, explica Celes. Segundo o psicanalista, as regras são ainda mais importantes quando se trata de grupos com características tão determinadas como as das torcidas organizadas, pois, mesmo pessoas que controlam rigidamente seus impulsos individualmente podem agir de modo completamente diferente em grupo, na medida em que cada sujeito “outorga” seu autocontrole para o coletivo.

Entretanto, dependendo da “dose”, o que era para ser remédio pode acabar sendo tóxico. Assim tem sido visto por alguns especialistas o atual Estatuto do Torcedor. A Lei 12.299, de 27/07/2010, que reformula o antigo estatuto (Lei nº 10.671, de 15/05/2003), tem a pretensão de prevenir e reprimir fenômenos de violência em competições esportivas, mas, de acordo com Lopes, da Unicamp, pode ter consequências que extrapolam seus objetivos iniciais, pondo em risco a “vida” das torcidas organizadas.

Quais, então, seriam as medidas capazes de minimizar a violência entre torcedores? De forma convergente, os pesquisadores da área concordam que a extinção das torcidas organizadas está longe de ser uma solução. “D epois da ‘batalha campal’, em 1995, esses grupos foram proibidos de entrar em estádios paulistas, mas continuaram existindo e indo a jogos em outros lugares. As punições não tiveram efeito porque não basta meramente proibir. Devem existir, em conjunto, atitudes que visem tentar integrar as torcidas”, analisa Hollanda.

O historiador observa que a violência é potencializada quando as torcidas são colocadas na ilegalidade. “Corre-se o risco de cair no fenômeno do hooliganismo, que se manifestou a partir do final dos anos de 1960 e que atingiu seu ápice na sociedade britânica de 1980. Com a forte repressão, os torcedores deixaram de se organizar institucionalmente e passaram a agir sem identificação, como forma de despistar a polícia. Ou seja, torcedores violentos não se identificavam como grupos, não existiam para a sociedade, mas continuavam promovendo espetáculos de violência dentro e fora dos estádios”, alerta.

Diálogos e pactos entre torcidas e dirigentes esportivos, contribuição das federações de futebol e da imprensa, bem como ações pedagógicas voltadas às torcidas estão entre as várias medidas apontadas por estudiosos. “Analisando justamente a raiz desse fenômeno, identifiquei que as torcidas surgiram nos anos 1940 junto com o apoio dos meios de comunicação para a criação do que eles chamavam de concurso de torcidas. Eram feitos jogos paralelos aos que aconteciam dentro do campo para premiar as torcidas mais criativas e originais. Isso poderia ser reinventado. Organizar as torcidas de arte, já que temos o futebol-arte, e canalizar esses aspectos construtivos”, propõe Hollanda.