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Reportagem
Memória e preservação. O desconhecido da região mais conhecida do Piauí
Por Glória Tega
10/06/2013

A linha de pensamento parece óbvia: Piauí, Parque Nacional da Serra da Capivara, Caatinga, arqueologia, pintura rupestre e antiguidade do homem americano, não necessariamente nessa ordem. No sul do Piauí, coração da Caatinga, a Serra da Capivara e seus inúmeros paredões de pintura rupestre são os protagonistas de discussões tanto na mídia como no meio científico, levantadas pela mais famosa arqueóloga do Brasil, Niède Guidon, a respeito da antiguidade do homem americano.

Destaques à parte, a Caatinga piauiense guarda outras histórias também interessantes, como achados paleontológicos e o trabalho de conservação das ricas pinturas dos sítios arqueológicos.

O Parque Nacional da Serra da Capivara está localizado nos municípios de São Raimundo Nonato, João Costa, Brejo do Piauí e Coronel José Dias. São mais de 400 sítios arqueológicos em uma área de 130 mil hectares. As pesquisas na região tiveram início em 1970 pela arqueóloga brasileira Niède Guidon, desde então diretora-presidente da Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham), entidade científica sem fins lucrativos criada em 1986 por pesquisadores de uma cooperação científica binacional (França–Brasil), até hoje responsável pela defesa e manutenção do Parque Nacional Serra da Capivara.

A Fumdham também é a responsável pela conservação das pinturas. Sob a coordenação da arqueóloga Maria Conceição Lage, da Universidade Federal do Piauí (UFPI), desde 1991 vêm sendo realizados trabalhos que visam à salvaguarda dos sítios. “Fiz o doutorado na França, em um laboratório que trabalhava com a conservação dos monumentos históricos franceses, como a Gruta de Lascaux  e quando voltei ao Brasil vi a necessidade de fazer o mesmo tipo de trabalho com os paredões da Serra da Capivara”, conta a professora.

A partir de então, os próprios membros da comunidade foram treinados para fazer as tarefas no dia a dia. Durante o ano todo, os auxiliares técnicos em conservação cuidam para impedir que o mato tome conta das pinturas e que vespas, cupins e abelhas se instalem sobre elas. “Vou uma vez por mês, geralmente acompanhada por alunos da graduação e mestrado em arqueologia da UFPI. Fico com eles durante uma semana, visito os sítios, vejo os problemas, elaboro uma lista de tarefas do que eles precisam fazer e tiro fotos para comparar o antes e o depois. Mas, por enquanto, estamos em uma fase de transição, esperando a continuidade desse trabalho todo”, explica Lage.

Com o emprego de materiais utilizados por dentistas e por restauradores de obras de arte, uma intervenção para a retirada de ninhos de cupins, vespas e abelhas é feita uma única vez, depois são realizados apenas trabalhos de manutenção. “A própria intervenção é danosa. Você limpa uma vez e evita que suje novamente”. Segundo a arqueóloga, a infestação por cupins nos sítios, por exemplo, se dá em virtude do descontrole ambiental. “Mataram os predadores naturais do cupim, os tamanduás, tatus e alguns tipos de aves, e agora temos uma superpopulação desse inseto”.

Mas o problema mais grave que os velhos paredões enfrentam é o descolamento natural das rochas sedimentares de arenito, onde as pinturas foram feitas há milhares de anos. Com o tempo, partes da rocha acabam se soltando. “O arenito já está muito degradado. Como são sítios abertos para a visitação, para evitar que algum turista retire um pedaço que esteja quase caindo, nós recolamos. É um trabalho de consolidação das placas”.

A arqueóloga explica que nos últimos anos outro problema vem ameaçando os sítios: a presença de um número excessivo de mocós, roedor típico da região. Esses animais utilizam os vãos das rochas como abrigo, depositando excrementos sobre as pinturas. “Acreditamos que os caldeirões feitos para armazenar água para os animais da floresta acabaram provocando a superpopulação de mocó, e suas fezes têm sido muito prejudiciais para as pinturas”, completa a professora.

     

Minucioso trabalho de conservação na Serra da Capivara e caixa de ferramentas com os materiais utilizados. Fotos: “Projeto arqueologia e divulgação científica: diálogos e saberes”, Unicamp.

Na Caatinga, a história de um fóssil

Mais ao sul do Piauí, na cidade de Corrente, a Caatinga guardava outra história: um fóssil de preguiça gigante. O achado já era conhecido por trabalhadores que extraiam argila na região desde os anos 1990. “Alguns achavam que se tratava de um dinossauro, outros acreditavam que fossem pedras e não um animal pré-histórico”, conta o paleontólogo Juan Carlos Cisneros, professor da UFPI.

Segundo o cientista, com o fim da extração da argila o fóssil foi esquecido e só chegou até ele pois um dos trabalhadores mostrou-o a um professor de Corrente, durante uma feira de ciências no município. “O rumor de que um fóssil havia sido encontrado em Corrente chegou até a cidade de Bom Jesus em 2010, onde estava o professor Paulo Auriccio, zoólogo da UFPI. No mesmo ano incorporei-me à universidade, e juntos começamos a planejar o trabalho de campo, que teve início recentemente”, relata.

A escavação paleontológica teve envolvimento de alunos de mestrado em geociências da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e do mestrado em arqueologia da UFPI. O professor explica que têm sido escavados ossos da coluna vertebral, costelas e de dois braços do animal, além de alguns dentes. O achado, importante para ajudar a entender melhor o ambiente do Piauí e do Nordeste durante a época do Pleistoceno (também conhecida como "Era do Gelo"), representa o primeiro registro de um fóssil no extremo sul do estado, mas o professor acredita que haja mais fósseis no local. “Todos os ossos parecem pertencer a uma preguiça gigante do gênero Eremotherium, não descartamos que se trate de mais de um animal e que possam ser encontradas outras espécies”, espera.

Cisneros explica que um fóssil é qualquer vestígio de um ser vivo de outras épocas geológicas. “Pode ser um osso, uma concha, uma folha, pólen etc. Também pode ser uma pegada, um ovo, ou até fezes (coprólitos). A ciência que estuda os fósseis é a paleontologia, às vezes confundida com a arqueologia, mas a última estuda artefatos feitos pelo ser humano”, explica o pesquisador.