De “amebas originais” evoluímos para “amebas virtuais”, o que,
convenhamos, é um significativo avanço, ao menos em direção à mediocridade
qualificada dos tempos atuais de mesmices e vazios intelectuais. A evolução é
oportunista e aleatória? Pois ora se é! Veja-se o Brasil de 2016.
“A vida evoluiu para melhor?”,
é a pergunta que se coloca.
Caso adote os acontecimentos
deste ano de 2016 como exemplo, a resposta parece óbvia: a vida involuiu,
regrediu, retrocedeu, ou evoluiu para pior, se é possível falar em “evolução”
como um avanço e “para pior” como significado de retrocesso, o que resulta em
algo paradoxal como avanço rumo ao retrocesso.
Não vislumbro outra definição
para o que aconteceu no Brasil, nos EUA e em boa parte do mundo em 2016, exceto
um paradoxo político-social em que a vida se transformou numa contradição segundo
a qual para evoluir instalou-se a involução, ou seja, o avanço do retrocesso, o
progresso do arcaico, o crescimento da regressão.
Em apenas um ano miserável a
vida evoluiu não em direção ao futuro, mas rumo ao passado dos tempos mais
sombrios e estagnados da humanidade. E essa involução fará estragos futuros consideráveis
no conhecimento científico e na sua prática, de magnitude e consequências
imprevisíveis e incalculáveis.
Não se lerá aqui uma teoria
científica da vida, mas esta na visão de um ser humano comum, sem apelos a
aspectos científicos, metafísicos, transcendentais ou religiosos.
Fosse este um texto científico
talvez começasse por dizer que a vida tem origem na matéria, e que é feita de
reações químicas acidentais entre átomos e moléculas.
Talvez afirmasse que a vida
surgiu por geração espontânea no meio aquático, repleto de minerais e substâncias
químicas nos primórdios da Terra. Quiçá introduzisse a análise da complexidade
de todo o cosmos.
Todavia, esta não é, nem
poderia ter a leviandade de pretender-se, uma crônica científica sobre a vida e
sua evolução, e sim a narração delas pelo olhar de um homem comum que
ultrapassou os sessenta anos de idade e ingressou num estágio em que a
aposentadoria é uma estupidez e o envelhecimento uma crueldade.
Penso que evoluir para melhor implica
necessariamente envolvimento com a vida, por exemplo, com a imensidão e o furor
de uma sinfonia de Beethoven, ou com a suavidade e o lirismo melódico de uma
valsa de Strauss, ou a leveza de Schubert, ou de
Chopin; ou com a serenidade luxuosa de Mozart; ou com a estrutura
soberba e singela, o ritmo contagiante e a harmonia sinuosa de um samba de
Cartola, de Nelson Cavaquinho ou de Paulinho da Viola; ou a virulência
contundente, a eloquência crítica contagiante e a sensibilidade pungente de
Chico Buarque; ou a articulada e meticulosa construção poética de Caetano
Veloso e a alegria perfumosa de Gilberto Gil; sem falar nas dores de Lupicínio
Rodrigues (porque sofrimento amoroso também é vida) e no alegre descompromisso
do “deixa a vida me levar” de Zeca Pagodinho.
Não há como a ciência dar
conta de explicar e compreender a evolução da vida sempre em direção ao melhor nos
dribles desconcertantes de Mané Garrincha, no avançar suave da “elegância sutil
de Bobô”, na matada no peito e no gênio de Pelé, na folha seca de Didi, na
regência da bola pela batuta do maestro Dicá, no elástico tortuoso de Rivelino,
na formação política das pernas de Sócrates, na eficiência pragmática de Zico,
na flexibilidade anarquista de la zurda de Maradona.
A vida é o encantamento e o
envolvimento da poesia de Carlos Drummond, Manuel Bandeira, Thiago de Mello, Mario
Quintana, Manoel de Barros, Cecília Meireles, Cora Coralina, Adélia Prado, Ana
Cristina Cesar, Torquato Neto, Chacal, Cacaso, Paulo Leminski, Waly Salomão.
Desse encantamento e desse
envolvimento os raciocínios científicos mais elaborados das teses que tentam
explicar e compreender a vida e a sua evolução não conseguem dar conta. Porque
apesar do dinamismo da ciência, ela ainda é incapaz de entender a dinâmica da
vida em evolução rumo ao melhor da humanidade que ocorre nos detalhes, na
singeleza do belo, na simplicidade do mínimo, na modéstia dos pequenos gestos.
De “amebas originais”
evoluímos para “amebas virtuais”, o que, convenhamos, é um significativo
avanço, ao menos em direção à mediocridade qualificada dos tempos atuais de
mesmices e vazios intelectuais.
A evolução é oportunista e aleatória?
Pois ora se é! Veja-se o Brasil de 2016. Aqui, neste ano, o processo evolutivo
manteve a vida, e com maior oportunidade de passar adiante seus genes, casualmente
aos animais humanos anódinos cujas mutações foram mais favorecidas pelo
ambiente em que são obrigados a viver de modo idiota, medíocre, manipulados por
uma mídia cafajeste e com transformações ocorridas ao acaso das conveniências
da elite minoritária e sem ter como objetivo a melhoria das condições de
sobrevivência da maioria da população, essa coisa abstrata e indefinível
chamada vulgarmente de povo.
A vida dessa espécie fútil evoluiu
para melhor. Hoje os medíocres, os frívolos, os reacionários, os conservadores,
os retrógrados, os preconceituosos, os discriminadores, os fascistas de todo
gênero, se expõem e se mostram com muito maior facilidade e frequência, dado o
ambiente propício para o seu desenvolvimento e crescimento.
O trabalho,
por outro lado, não dá satisfação de vida. O trabalho, no modo como concebido e
praticado pelo sistema capitalista, não satisfaz a necessidade do viver, porque
é alienação e exploração humana, mediante uma obsessão produtiva histérica, uma
glorificação do trabalho incessante e insano.
O trabalho,
do ponto de vista do sistema capitalista, é uma distração durante o exercício
das tarefas, um método eficiente e eficaz de abstração que aliena o ser humano
da sua realidade e o retira da visão de si mesmo. É um instrumento capaz de
distrair o ser humano de sua capacidade de transformação pessoal e social; de
aceitar passivamente sua falta de poder; e de ter como única bússola de vida a
imorredoura esperança em dias melhores.
Vivemos para
trabalhar ou trabalhamos para viver? No mundo do deus mercado vivemos para
pagar boletos, faturas, dívidas, obrigações contratuais, compromissos
financeiros. Muitos se aprisionam a crediários e prestações infindáveis para preencher
pelo consumo o vazio da vida, repleta da acumulação de bens inúteis e
desnecessários, que nos tornam reféns de obrigações supérfluas assumidas pelo
sequestro de nossa vontade. É a zona de conforto do cativeiro em que nos
aprisionamos.
A vida, como
a concebida no mundo corporativo/competitivo moderno, não é investimento. É
gasto. Porque a vida se desgasta pouco a pouco. Não dá para poupar vida,
porque, sinto muito, não há outro jeito, a vida tem que ser vivida. Caso contrário,
a morte é antecipada.
Gastamos
tempo demasiado de vida na busca de comprar para ter, para possuir. Compramos
pensando em ganhar a propriedade de algo e, no entanto, perdemos o
pertencimento dos dois bens mais valiosos pelos quais deveríamos zelar como
nossas únicas legítimas propriedades privadas: a vida e a liberdade, nossa e de
todos os nossos semelhantes.
Desperdiçamos
demais, jogamos fora demais, preenchemos e contaminamos a vida com montanhas de
sucatas, acumulamos detritos de coisas supérfluas das quais não precisamos,
porque simplesmente não sabemos viver com o suficiente, com apenas o
necessário. Não nos satisfazemos apenas com aquilo que de fato é importante. E
nessa volúpia de adquirir, ter e possuir, a vida vai pouco a pouco se esvaindo,
se perdendo de si mesma.
Qualidade de
vida não é a medida da quantidade das coisas que alguém tem ou possui, da mesma
forma que o nível de vida não pode ser medido pela régua do consumo predador.
Como se pode conceber e resignar-se ao fato de que comida se transforme em mera
mercadoria? Comer, alimentar-se, é um direito humano à vida, inalienável. Como
aceitar que a saúde, a educação, a informação, a comunicação, se transmudem em meros
objetos de negócios? Todas elas são direitos humanos inegociáveis.
De mercadoria
em mercadoria, de negócio em negócio, a vida se perde e perde-se a vida.
O que dizer
do lixo humano dos indigentes nas ruas das grandes cidades dos países
capitalistas? O que considerar diante da fome dos miseráveis, ou da exclusão
dos pobres, dos negros e dos povos indígenas? O que falar sobre as crianças
famintas, abandonadas, violentadas, aprisionadas, exploradas, desamparadas,
desumanizadas? O que asseverar sobre a violência contra as mulheres pelo
machismo, e a apologia à misoginia desenfreada? O que dizer da perseguição aos
homossexuais, bissexuais, transexuais e transgêneros? O que expressar diante da
nova diáspora dos povos árabes em seu êxodo suicida da crueldade da guerra e da
opressão mortal do fundamentalismo religioso? O que manifestar perante a
segregação do povo palestino nos guetos modernos dos campos de refugiados,
apátridas expulsos da sua própria pátria? “A vida evoluiu para melhor?”
O avanço da
vida para melhor proporcionou uma tecnologia de guerra que no primeiro conflito
mundial estima-se que matou no mínimo 15 milhões de pessoas, e na Segunda Guerra
Mundial causou entre 40 a 72 milhões de mortes de pessoas, mais de 60% delas
civis que morreram simplesmente porque eram judeus, ciganos, homossexuais,
deficientes, comunistas. A tecnologia de guerra avançou tanto que pelas armas
nucleares quase exterminou com a vida no planeta, exemplo de avanço para pior,
em direção à morte e não para preservação da vida.
Depois dos
primeiros testes nucleares e das duas bombas atômicas jogadas pelos
norte-americanos sobre o povo japonês, o estrago no meio ambiente foi tamanho
que começaram a surgir movimentos sociais ambientalistas em defesa da
sobrevivência do planeta, na prevenção de danos ambientais e na expansão do
conceito de desenvolvimento sustentável, como tentativa de impor limites ao
crescimento econômico alimentado pelo uso crescente e inescrupuloso de recursos
naturais.
A realidade
era alarmante: poluição, desmatamentos, aquecimento global, esgotamento de
recursos não renováveis, escassez de alimentos, deterioração do meio ambiente,
extinção de espécies animais.
O papel
desempenhado pelo capitalismo tecnológico e seu impacto no meio natural foi tão
danoso que tornou necessário evoluir para melhor para preservar a vida, dando
origem a novas ciências, como a ecologia, que passaram a estudar, compreender
em maior profundidade o meio ambiente e a traçar novos paradigmas para os
processos industrial e social, de forma a preservar a vida dos habitantes e do
próprio planeta.
Por fim
sobreveio a evolução (ou revolução) da microeletrônica e da informática. Surgiram
os computadores domésticos, de mão e portáteis com acesso à internet, e uma
parafernália de coisas e aparelhos com o propósito de facilitar a vida, aproximar
a população mundial e tornar mais livre o ser humano.
Todavia, nem
mesmo a informatização de tudo pode tornar melhor a evolução da vida se no
final desse processo o homem continuar a ser escravo de coisas, bens e
aparelhos, e pior, monitorado e vigiado por eles, do que resulta a perda
irreparável dos dois bens maiores da vida humana: seu tempo e sua liberdade.
A ciência é
legítima se existe para investigar, compreender e interferir no mundo com a
finalidade de melhorar as condições de vida da população e de garantir a
sobrevivência da raça humana e do planeta. A ciência apartada da vida cotidiana
do homem comum perde a legitimidade para agir e a razão de existir.
No século
XVIII o Iluminismo inaugurou a renovação do pensamento e das artes, após
séculos de obscurantismo. Com a Revolução Industrial a civilização avançou até
alcançar o culto ao capital e a partir deste deu início à dominação e à
exploração do homem pelo homem. Depois o capital mudou de roupa: passou a
vestir os trajes do conhecimento e da informação.
O
domínio dos meios de produção da nova propriedade privada mudou de mãos: os
executivos – a nova classe social detentora do conhecimento e da informação –
passaram a exercer o poder e o controle sobre o novo capital e ditar as regras
da vida e da morte.
Essa nova
classe social, sustentada em títulos acadêmicos e no domínio do conhecimento
tecnológico/eletrônico, dominou a cena e concentrou sobre si os holofotes da
ciência e da tecnologia a ponto de estabelecer novos padrões éticos e valores
morais.
Hoje são os
responsáveis pelo império da cultura vulgar, da mediocridade política e da
corrupção em todos os níveis da vida cotidiana.
“A vida mudou
para melhor?”
Antonio Sergio Albergaria Pereira é escritor, cronista
e articulista. É autor de Dez contos de solidão – A vida humana no atacado (Editora Komedi, 2008). Foi repórter e
redator do Diário do Povo de Campinas e assessor jurídico no poder judiciário
de São Paulo.
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