Sábado
Santo em Nocera Terinese, aldeia de cinco mil pessoas no sul da Itália.
A banda toca, enquanto passa a procissão. Os homens carregam uma
estátua antiga representando a Piedade. De repente, tudo pára. Na
frente da estátua aparece um flagelante. De joelhos, esfrega e bate as
pernas para estimular a circulação sangüínea. Depois, com uma “rosa”
feita de rolha cheia de cacos de vidros, se golpeia nas coxas, nas
canelas. O ruído das batidas se ouve de longe. O sangue flui abundante,
deixando na rua um rastro vermelho e marrom. Ao lado do flagelante,
dois acompanhantes. O primeiro derrama vinho nas feridas para impedir
sua coagulação. No peito nu do segundo, o flagelante, molhando o dedo
em seu próprio sangue, desenha uma cruz vermelha. Prova de fé
impressionante, e extrema. Mas não única. Algo parecido, variando a
quantidade de sangue, o número de cacos de vidro, as máscaras ou
capuzes dos flagelantes, acontece em outras cidades da Itália e da
Espanha. E manifestações análogas, em que as pessoas decidem
submeter-se à dor ou marcar seu corpo com práticas dolorosas, existem
em quase todas as culturas.
Sofrer para Deus
Para
a religião católica, evitar o sofrimento nem sempre é bom. Pelo
contrário, a dor pode ser bendita e glorificada. A renúncia aos
prazeres mundanos, ou até a busca de sofrimento físico, são
considerados louváveis se vistos como forma de se entregar a Deus. Papa
Bento XVI, quando ainda era o cardeal Ratzinger, afirmou no
livro-entrevista God and the World
que o sofrimento é o processo por meio do qual amadurecemos. Quem
aceita o sofrimento, declarou o teólogo alemão, “torna-se mais maduro,
mais capaz de entender os outros, mais humano. Quem sempre evitou
sofrer não entende os outros; torna-se duro e egoísta”. Antes dele,
João Paulo II havia escrito uma Carta Apostólica,
sobre o “sofrimento que salva”. Cristo, comentava o papa, não escondia
aos seus ouvintes a necessidade do sofrimento. Pelo contrário,
dizia-lhes: “se alguém quer vir após mim... Tome a sua cruz todos os
dias”. Wojtyla citava São Paulo apóstolo: “completo na minha carne o
que falta aos sofrimentos de Cristo”. E afirmava que “mais do que
qualquer outra coisa, o sofrimento é aquilo que abre caminho à graça”.
Na luta entre as forças do bem e as do mal, continuava o Papa, “os
sofrimentos humanos, unidos ao sofrimento redentor de Cristo,
constituem um apoio particular às forças do bem”.
De
fato, a mortificação da carne é importante na religião católica. Alguns
fiéis se abstêm de prazeres físicos (comidas, bebida, sexo). Muitos
santos são famosos pelo sofrimento auto-infligido e pela alegria com
que recebiam os estigmas. Alguns praticavam jejum no deserto, outros
batiam-se, cortavam-se, perfuravam sua carne ou se flagelavam até
sangrar. São Francisco de Assis praticava a auto-flagelação e usava o
cilício, como fazem ainda hoje alguns membros da Opus Dei. Em alguns
casos, há práticas radicais que a Igreja Católica vê com embaraço. Como
o espetáculo da Paixão de Cristo que acontece em San Petro Cutud, nas
ilhas Filipinas, onde há homens causando-se ferimentos com chicotes e
alguns que chegam a ser crucificados com pregos. No entanto, em aceitar
o sofrimento ou buscá-lo como meio para o fortalecimento ou a elevação,
os católicos não estão sozinhos. Seja nos países do G7, no Sahara ou na
Amazônia, há momentos em que a provação, o sofrimento físico e psíquico
são importantes.
Quando a dor faz parte do caminho
Durante
uma terapia psicanalítica, por exemplo, a dor não pode nem deve ser
evitada. “Na experiência de uma análise”, comenta Isabel Fortes,
psicanalista, “o paciente tem que necessariamente fazer uma travessia
das suas dores, pois é da dor de cada um que uma análise vai tratar”. O
analista, diz Fortes que é professora colaboradora na Universidade
Federal do Rio de Janeiro, deve fazer “um contra-movimento à tendência
dos pacientes em evitar a dor, em fugir do conflito e do problema,
causadores de angústia e de dor. Não há crescimento sem uma certa dose
de dor”. De fato, continua a terapeuta, “a idéia de que existe prazer
sem dor vem do utilitarismo que marcou o século XIX”. Uma idéia que fez
com que passasse a ser visto como positivo “buscar o prazer
incessantemente e evitar a dor a qualquer custo”. Para a psicanalista,
vivemos hoje numa cultura hedonista sob o signo do “imperativo do
gozo”. O preço disso, acredita ela, “é o uso que se faz do outro,
usa-se e abusa-se do outro se isso for para o bel-prazer do eu, do ego.
Há, assim, um incremento da violência”. Entretanto, continua Fortes,
buscar a dor junto com o prazer nem sempre é patológico. “No erotismo”,
afirma, “não há separação entre o prazer e a dor. Os dois caminham
juntos”. Freud, explica a psicanalista, compreende o masoquismo de dois
modos. “Um é negativo: o masoquismo moral, o masoquismo daquele sujeito
que se entrega à dor para se tornar uma vítima do outro, uma vítima do
mundo. É o masoquismo do sujeito servil, que se humilha para angariar
benesses, benefícios”. Mas Freud também enxerga uma positividade do
masoquismo, na idéia do que ele chama de “masoquismo erógeno”. Que
significa, explica Fortes, “que pode existir prazer junto com a dor, e
não somente o prazer do alívio, o prazer que quer fugir da dor. O
masoquismo erógeno é o prazer da intensidade, o prazer do erotismo, o
prazer que não se quer sem dor”. Embora haja debates sobre onde se
encontre a fronteira do patológico nas práticas masoquistas, Fortes
acredita que, para a psicanálise, “masoquismo patológico é aquele em
que o sujeito se fixa na dor como forma de culpabilidade, de
vitimização e, desta forma, se enrijece com a dor. O sujeito se
congelar na dor é patológico. A dor é positiva quando é uma travessia
para a alegria de viver”.
Psicanálise à parte e desejos eróticos
à parte, a dor vista como parte integrante dos caminhos da vida, é
bagagem comum a muitas culturas. Muitos ritos de passagem, que marcam a
entrada numa nova fase de vida, são caracterizados por práticas
assustadoras ou dolorosas em que se marca, de alguma forma, o corpo. Na
Amazônia brasileira, uma das provas que os jovens Sateré-Maué devem
encarar para tornar-se adultos é a de enfiar repetidamente a mão numa
luva contendo dezenas de formigas tocandiras. As meninas Rikbaktsa
furam o nariz, enquanto, no cerrado, os adolescentes Xavantes têm suas
orelhas perfuradas durante o rito de passagem. Em geral, tatuagens,
escarificação (cortar, incidir ou lixar a pele para produzir um desenho
de cicatrizes permanentes) perfurações ou mutilações nos lábios,
lóbulos, genitálias, compõem o repertório de rituais do mundo inteiro.
Na década de 1950, nos EUA, Roland Loomis, mais conhecido como Fakir Musafar,
experimentava e reinventava tais práticas de alteração do corpo. Com o
slogan de “o corpo é seu, brinque com ele”, Musafar praticou em si
mesmo perfurações na genitália, branding (marcar a pele com objetos incandescentes), escarificação. E a famigerada suspensão do corpo por meio de anzóis e piercings fincados na pele, inspirada na cerimonia do O-kee-pa dos Sioux (tornada célebre pelo filme Um homem chamado Cavalo). Musafar inventou assim o movimento dos “primitivos modernos”:
pessoas que praticam rituais de modificação do corpo e de passagem,
tanto por razões espirituais como estéticas ou filosóficas. Hoje no
mundo inteiro há pessoas que decidem alterar seu corpo por meio de
cortes, queimaduras, piercings, alargadores (que aumentam
gradativamente os furos no lóbulo da orelha, no mamilo etc.) e
implantes (objetos de aço ou silicone inseridos abaixo da pele para
formar o efeito de escamas, chifres e assim por diante). Alguns
exemplos famosos? O americano Erik Sprague (que tem língua bifurcada e
está se tornando um homem-lagarto), Katzen (a mulher-tigre), Enigma (um homem-puzzle) ou artistas como Stelarc (famosos por declarar que o corpo humano é obsoleto) e Franko B. (que em suas performances se machuca e sangra até desmaiar).
Corpos modificados, corpos marcados
Bruna Guedes e Filipe Espíndola são performers do Studio Nômade, em Campinas (SP). Espíndola é body piercer. Pratica em seus clientes alargamentos e perfurações (nos
lóbulos, mamilos, lábios, genitália). Bruna, designer gráfica, olhar
alegre num corpo caprichado em modificações, o acompanha nesse caminho.
A body modification, explica o casal, pode proporcionar “uma
melhoria na aparência e consequentemente na auto-estima”. Mas além da
estética, a modificação pode ter objetivos “filosóficos ou espirituais,
à medida que provoca sensações em quem a pratica ou a observa, além de
servir como marco definitivo para algum evento”. Ambos acham que a dor,
embora não seja o objetivo central da modificação, não deve ser
evitada. Isso porque ela pode representar “o limite a ser transposto, o
fator de mudança entre dois estágios antagônicos”. A dor, explicam, é
“o portal a ser atravessado como símbolo de inserção em um novo mundo
ou estágio da vida”. Para Espíndola, que já praticou com Bruna a
suspensão do corpo, “a dor é elemento constitutivo e indissociável do
ritual de passagem, sendo o corpo o objeto simbólico de registro de uma
transformação. A dor não é o objetivo (como nas práticas
sado-masoquistas), mas não deve ser ignorada ou maculada através de
anestesias. Deve estar presente, mesmo que em escala mínima, para
determinar a capacidade do indivíduo de transpor um obstáculo, vencendo
a dor e renascendo”. Assim como acontece na poda: “quando podamos uma
planta, damos a ela nova chance de renovar-se, pois ela se considera
ameaçada e prepara-se para se fortalecer”.
Para
Beatriz Ferreira Pires, arquiteta e artista plástica, os primitivos
modernos nos lembram que a dor é necessária “para que haja vida,
crescimento, amadurecimento”. Pires estudou as práticas de modificação
do corpo em seu mestrado (em artes) e doutorado (em educação), e
continua hoje sua investigação no Centro Universitário Senac (SP).
Existe, afirma a artista, “uma dor necessária, que é cada vez mais
evitada” e que em muitas culturas era um requisito para os rituais de
passagem. “O ritual de passagem deve necessariamente ser uma coisa
física, causar dor, verter sangue - ou pelo menos estar na eminência de
fazê-lo –, e, preferivelmente, deixar uma marca no corpo. Essa marca
será o registro da passagem, a lembrança física que fará o indivíduo
ter sempre em mente a sua nova condição”. Além disso, continua Pires,
que escreveu um livro sobre o tema (O corpo como suporte da arte – Piercing, implante, escarificação, tatuagem, Senac 2005), para os adeptos da body mod
a dor física não se torna insuportável. A ausência de uma dor
insuportável, acredita a artista, “só é possível devido à capacidade de
atingir um estado alterado de consciência”. Durante tais práticas,
continua Pires, “esses indivíduos deixam de sentir a dor e passam a
observá-la”.
Camilo
Albuquerque de Braz, antropólogo, doutorando em ciências sociais pela
Unicamp, concorda. Para os adeptos da modificação corporal, a dor faz
parte de um aprendizado. “Uma das representações freqüentes acerca da
dor na body modification”, explica, “lhe atribui o
significado de superação de limites, de marcar um momento de ruptura ou
clivagem”. Em alguns casos, afirma, há também uma “associação entre a
capacidade de superação da dor e uma certa concepção de coragem, de
força, de resistência. A pessoa deve gradualmente acostumar o próprio
corpo a cada uma das técnicas existentes, até chegar ao ponto máximo de
resistência à dor, que seria o chamado ritual de suspensão.” Embora
para Albuquerque, que dedicou seu trabalho de mestrado ao mundo da body modification em São Paulo, seja delicado definir o que significa dor,
os adeptos da modificação do corpo nos mostram um lado importante.
“Para muitos filósofos e filósofas, a dor é inefável. A dor em si não
pode ser dita, mas sim os significados a ela atribuídos”. Em muitos
casos, a dor “aparece como algo a ser anulado. Como na medicina
ocidental, que se dedicou a desenvolver mecanismos sofisticados de se
evitar a dor”. De acordo com o antropólogo, nos anos ‘80 e ’90
tatuagens e piercings “eram algo inusitado, permitindo aos
adeptos se destacarem na multidão”. Hoje em dia, mesmo tendo sido em
parte banalizadas, essas práticas não deixam de manter uma
potencialidade subversiva e contestadora. O que está em jogo é “a
utilização do corpo como mecanismo para a construção e a administração
da identidade”. Inspirando-se nos conceitos da filósofa norte-americana
Judith Butler (que afirma que nossa identidade corpórea e nosso gênero
sexual não são coisas fixas, mas algo que atualizamos e experimentamos
ao longo da vida por meio de “performances repetidas”), Albuquerque
declara: “a reiteração de atos corporais como a costura de bocas e
outros orifícios, objetos implantados na pele, partes do corpo sendo
perfuradas por ganchos de metal e assim por diante, faz deles atos, de
uma perspectiva performativa, potencialmente subversivos”. E se nossa
identidade e corpo não são coisas fixas com as quais nascemos, mas são
construídos ao longo da vida, a dor que os adeptos da body modification experimentam é importante: é um pedaço do que somos e conhecemos.
Além
disso, pelo menos em algumas dessas práticas, há uma relação com o
erotismo. Os piercings em locais como língua, genitais e mamilos,
explica Albuquerque, são “às vezes associados ao aumento da performance
sexual e da capacidade de dar e receber prazer”. Muitos adeptos e
adeptas “se reportam ao fato de que seus parceiros se sentem mais
excitados com a presença de uma jóia nesses locais do corpo. Ou mesmo
afirmam que a sensação de possuir tal modificação lhes dava maior
prazer durante as relações sexuais. Não estou dizendo que os adeptos da
body modification são sadomasoquistas. O que estou dizendo é
que a idéia de sentir prazer na dor, ou de que a experiência da dor
possa ser algo positivo, não é restrita ao que se chama de
sadomasoquismo. Se faz presente na body modification e possivelmente em vários outros contextos, inclusive religiosos”. Por
um lado, nossa sociedade parece “analgésica” - o Brasil é um dos
maiores consumidores do mundo de remédios contra a dor. Apagamos,
recalcamos a dor, física ou psíquica. Em algumas situações pode ser
vergonhoso sofrer. Mas há momentos em que sabemos encarar a dor. E
queremos. Para cumprir uma promessa ou marcar uma passagem, para nos
fortalecermos, para alcançar objetivos espirituais ou para viver um
desejo erótico. Entre 1895 e 1897, Oscar Wilde viveu preso na prisão de
Reading. Lá, escreveu De profundis, uma longa carta para seu amante. “Onde há sofrimento”, decretou o poeta, “lá solo é sagrado”.
Imagem dos flagelantes. foto: eoghanacht (GFDL)
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