Ao
se falar do tema viajantes no Brasil, os nomes de Karl Friedrick Philipp von Martius (1794-1868) e Johann Baptiste von Spix (1781-1826), entre outros
estrangeiros que aqui estiveram, surgem quase que naturalmente. Como
é sabido, os dois viajantes integravam a comitiva da grã-duquesa austríaca Leopoldina que chegou ao Brasil
em 1817 para casar-se com Dom Pedro I. Traziam com eles orientações
para fazer observações naturalísticas no Brasil,
reconhecendo sua fauna, flora e produtos mineralógicos.
Iniciando seu trabalho pelo Rio de Janeiro e seus arredores, em uma
viagem que durou cerca de três anos, exploraram diversas
localidades do território brasileiro, incluindo São
Paulo, Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Piauí, Maranhão,
Pará e Amazonas. O material por eles recolhido permitiu que
fossem elaboradas diversas obras de cunho naturalista sobre o Brasil.
É já bem conhecida a obra Viagem pelo Brasil que
relata as “aventuras” dos dois naturalistas em território
brasileiro. No entanto, os territórios explorados pelos dois
viajantes já haviam sido escrutinados anteriormente por
viajantes naturalistas nascidos em terras brasílicas.
Durante
a segunda metade do século XVIII houve um grande e
sistematizado esforço por parte do Estado português que,
aliado a diversas instituições científicas como
a Academia Real das Ciências de Lisboa e o Museu de Ajuda,
pretendia inventariar as riquezas de seu império – em
especial o Brasil – por meio da ciência. Para isso foram
comissionados diversos naturalistas nascidos no Brasil e, em sua
maioria, graduados pela Universidade de Coimbra. Nesse contexto,
diversos naturalistas se embrenharam pelo território
brasileiro fazendo levantamentos de suas potencialidades econômicas.
As “Viagens filosóficas” tinham também o objetivo
de abastecer instituições de investigação
portuguesas com coleções de história natural. O
grande esforço português na averiguação e
sistematização dos produtos naturais das colônias
portuguesas nesse período foi coordenado por Domingos Vandelli
(1730-1815), primeiro lente de química e história natural da Universidade de Coimbra após as reformas pombalinas
de 1772, as quais introduziram as “ciências modernas”
naquela universidade. Dentre todas as “viagens filosóficas”
que se realizaram em território brasileiro, a mais conhecida é
a que Alexandre Rodrigues Ferreira (1756-1814) realizou pela Amazônia
brasileira entre os anos de 1783 e 1792.
Além
da viagem de Ferreira houve, no mesmo período, muitas outras
como, por exemplo, as de José Vieira Couto (1752-1827), em
Minas Gerais, as de José de Sá Bittencourt Accioli
(1755-1828), na Bahia, as de José Manuel de Sequeira (de quem
não foi possível encontrar as datas de nascimento e
morte), em Goiás, as de Manuel de Arruda Câmara
(1752-1811), em Pernambuco, Piauí, Paraíba e Ceará,
as de João Manso Pereira (1750? – 1820), em São
Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro e as de João da Silva
Feijó (1760-1824), no Ceará, entre outras.
Embora
tenham realizado um trabalho muito importante para o período,
aos olhos da coroa portuguesa, esses
naturalistas-viajantes foram preteridos pela historiografia que
sempre deu mais atenção aos viajantes estrangeiros.
Trabalhos historiográficos recentes têm procurado
resgatar essas trajetórias quase desconhecidas para mostrar
evidências de atividades científicas no Brasil, na
transição do século XVIII para o XIX.
Neste
espaço abordo as trajetórias de dois desses
naturalistas, cujos trabalhos foram por mim analisados em pesquisa de
mestrado e doutorado: José Vieira Couto e João da Silva
Feijó.
Viagens
de José Vieira Couto, em Minas Gerais
Nascido
no Arraial de Tejuco – atual Diamantina – José Vieira
Couto graduou-se em filosofia natural e matemática em Coimbra,
em 1778. De volta ao Brasil, o naturalista é encarregado de
fazer exames mineralógicos na Capitania de Minas Gerais. Couto
empreendeu suas pesquisas entre os anos de 1798 e 1805, deixando
diversas “memórias”, que foram objeto de minha dissertação
de mestrado. O trabalho começou pela região do Serro
Frio mas estendeu-se a outras áreas, tendo o mineralogista
atingido as Comarcas do Sabará e de Vila Rica, chegando
próximo à fronteira da Capitania de Goiás,
subindo e descendo o rio São Francisco pelos chamados sertões
do Abaeté.
O
pesquisador enfrentou, segundo suas próprias narrativas,
lugares inóspitos, ermos, de difícil acesso, enfim, os
desabitados e desconhecidos sertões mineiros, sem estradas,
muitas vezes sem caminhos, tendo que abrir picadas à sua
passagem e à de sua comitiva. O objeto principal de seus
trabalhos era a pesquisa mineral, embora, seguindo a tendência
de sua época, também abordasse temas diversos como
geografia, agricultura e populações. Os textos escritos
por José Vieira Couto seguem a orientação do
governo português que, na virada do século XVIII para o
XIX, buscava ampliar e diversificar a exploração
mineral. O ouro e o diamante não são os únicos
protagonistas das observações de Couto mas também
o ferro, o chumbo, a prata, o salitre, o cobalto, o cobre, o enxofre,
a platina e outros. Os textos refletem as tentativas sistematizadas
de buscar, por intermédio do estudo de especialistas em
mineração e mineralogia, a melhoria das técnicas
e um melhor aproveitamento dos recursos minerais da Colônia.
Nos
textos de Couto encontram-se minuciosamente relatados os resultados
de seus exames mineralógicos. A maneira como este trabalho é
descrito mostra bem a prática científica do
naturalista, constituindo-se em importante evidência empírica
de como se realizavam as práticas geocientíficas dentro
das relações metrópole-colônia. Couto não
se atém apenas ao objeto principal de seu trabalho que é
o estudo do reino mineral na região de Minas Gerais.
De
acordo com diversos autores, a literatura de viagens teve um papel
central na construção da história natural do
século XVIII. Nela, os cientistas-viajantes raramente se
limitavam a escrever sobre um único campo. Nos relatos de
viagem, juntavam-se observações de caráter
antropológico, cultural e político às
observações dos três reinos da natureza. No caso
de Couto, além de suas observações de caráter
mineralógico, há também impressões sobre
os moradores, sobre os aspectos arquitetônicos das construções
nos arraiais e vilas e sobre as atividades econômicas às
quais se dedicavam os habitantes das localidades pelas quais passava;
abre longos parênteses para falar da agricultura, da criação
de animais e de outras atividades econômicas que considerava
importantes, além da mineração. Além
disso, seguindo as orientações que lhe haviam sido
ditadas, procura dar sugestões de como fazer um melhor
aproveitamento dos recursos econômicos da Capitania de Minas
Gerais.
Em
consonância com o pensamento ilustrado, Couto mostra-se um
entusiasta da ciência e da instrução. Mas a
ciência que entusiasma Couto é aquela que tem como meta
a resolução de problemas práticos; e a instrução
seria o caminho privilegiado por onde a ciência atingiria tal
meta. Nesse aspecto Couto também não era uma figura
isolada. Naquele momento, era generalizada a idéia de que o
conhecimento desprovido de metas práticas não passava
de uma quimera. A fé de Couto na ciência e na
educação/instrução era quase messiânica.
Embora tenha visto um território decadente, ele era um
otimista. Era possível levantar o território, fazê-lo
florescer e progredir por meio da ciência. A ciência
aplicada, por sua vez, só seria possível se os homens
fossem educados e instruídos na “arte” à qual se
dedicavam, fosse ela a mineração ou a agricultura.
Neste contexto, o papel do cientista era sempre muito relevante. Era
ele quem deveria redigir manuais práticos, administrar as
regiões mineiras, informar o Estado sobre a forma mais
racional de aproveitar este ou aquele recurso, sobre a melhor forma
de ocupar um território, etc.. Como a ciência deveria
ter um caráter prático, o cientista também
deveria ser um homem prático e experiente. Deveria sair de seu
gabinete, não somente para viajar pelos grandes centros
científicos do mundo, mas conhecer profundamente o território
onde praticava o seu trabalho.
Viagens
de João da Silva Feijó no Ceará
Também
as “viagens filosóficas” de João da Silva Feijó,
no Ceará, serão aqui consideradas como parte de um
amplo conjunto de práticas científicas realizadas no
espaço colonial que permitiram a institucionalização
das ciências naturais na América portuguesa. Nascido na
Capitania do Rio de Janeiro em 1760, seus biógrafos se dividem
quanto ao fato de Feijó ter ou não cursado a
Universidade de Coimbra, dado que seu nome não se encontra nas
relações de alunos formados na universidade. Porém,
a partir das leituras de suas “memórias”, não resta
dúvida de que o naturalista foi um dos discípulos de
Vandelli, qualquer que tenha sido a instituição em que
fez seus estudos. Em companhia de Alexandre Rodrigues Ferreira
realizou, em fins de 1778, uma diligência filosófica na
região de mineração de carvão de Buarcos,
em Coimbra, no âmbito dos treinamentos para as “viagens
filosóficas”. Feijó, que foi sócio
correspondente da Academia Real das Ciências de Lisboa,
empreendeu uma viagem filosófica pelas Ilhas de Cabo Verde,
onde teria permanecido de 1783 a 1797. Durante esse período,
manteve correspondência sistemática com Júlio
Mattiazi – responsável pelo Jardim Botânico de
Coimbra, e também da Ajuda – com Vandelli e outras
autoridades portuguesas. Elaborou diversos artigos posteriormente
publicados pela Academia Real das Ciências de Lisboa e outros
periódicos. As diligências filosóficas de Feijó,
tanto no Reino, como em Cabo Verde e no Brasil, inserem-se
em um contexto em que medidas de recuperação levadas a
cabo pelo Estado português eram fortemente informadas pela
ciência.
Depois
de retornar de Cabo Verde, Feijó permaneceu por algum tempo em
Lisboa realizando experiências com salitre que o preparavam
para sua vinda ao Ceará,
em outubro de 1799, para cumprir aquilo que lhe fora designado
em provisão de 25 de fevereiro de 1799, assinada por Dona
Maria I: estudar todas as potencialidades naturais da região.
As primeiras investigações do naturalista dão-se
em uma localidade denominada Tatajuba, onde havia informações
da existência de ocorrência de salitre. A dedicação
de Feijó e de outros naturalistas às investigações
sobre o salitre, essencial para a produção de
explosivos, explica-se pelo fato de que, nesse período, as
pesquisas sobre esse mineral se intensificaram devido à
conjuntura internacional que exigia investimentos na defesa das
nações e, no caso português, da sua principal
colônia. No contexto do que alguns historiadores chamam de
crise do Antigo Sistema Colonial, as ameaças constantes de
invasões ou de espionagem eram uma realidade sempre presente.
Diante desse quadro, uma intensa correspondência trocada entre
as autoridades coloniais e da Coroa recomendava explicitamente a
busca de depósitos de salitre e remetia livros sobre o
assunto.
Durante
seus 15 anos de permanência no Ceará, Feijó
cumpre seu ofício de naturalista na região, mapeando,
descrevendo e explorando objetos de história natural. Em suas
múltiplas incumbências, Feijó classificou plantas
e por diversas vezes enviou caixotes ao Real Jardim Botânico da
Ajuda e para a instituição congênere da Prússia,
em Berlim. Os conhecimentos por ele produzidos foram referência
para investigações em ciências naturais passados
mais de 30 anos de sua morte. A “Comissão Científica
de Exploração” (1859-1861), formada somente por
naturalistas nacionais – pois se inseria nos projetos de construção
do Estado Imperial e da nação – teve seus trabalhos
centrados na província do Ceará. No intuito de firmar
uma ciência nacional, os naturalistas da Comissão
resgataram trabalhos de história natural do final do século
XVIII, entre eles os de Feijó, que teria exercido influência
sobre a Comissão pelo seu profundo conhecimento sobre o Ceará.
Muitos dos dados deixados por ele foram usados pela Comissão,
ora para confirmá-los, ora para refutá-los. Os dados
reunidos por Feijó
também foram utilizados por Thomas Pompeu de Sousa
Brasil, figura de prestígio nos meios científicos,
políticos e sociais cearenses da segunda metade do século
XIX em seu Ensaio Estatístico da Província do Ceará,
de 1864.
A
documentação deixada pelos personagens aqui
considerados, revela os princípios teórico-metodológicos
que norteavam o trabalho dos naturalistas no Brasil e também
no Império português. No caso da mineralogia, além
de fazer levantamentos dos recursos, identificar, descrever
minuciosamente ou classificar as amostras recolhidas, com base em
seus caracteres externos e/ ou em análises químicas, os
materiais minerais deviam ser descritos também em suas
relações espaciais. Havia que se empreender a uma
descrição geográfica dos minerais. Estando
conscientes da finalidade prática de seu ofício, além
do trabalho científico propriamente dito, uma das tarefas dos
naturalistas que aqui trabalhavam era a de se deter naqueles produtos
que pudessem favorecer o crescimento do comércio, das
manufaturas e da indústria, sugerindo os meios para o seu
aproveitamento. Essa preocupação é marcante nas
“memórias” de Couto e Feijó. São inúmeras
as sugestões para o melhor aproveitamento do potencial mineral
do Brasil. Era importante fomentar a realização de mais
“indagações filosóficas” para a descoberta
de novos minerais, diligências que deveriam ser comandadas por
profundos conhecedores das ciências mineralógicas. As
“memórias” de Couto e Feijó, assim com as dos
outros personagens aqui destacados mostram que o saber dos
naturalistas era enciclopédico, típico do período
das Luzes.
O
trabalho de Feijó, no Ceará, o de Couto, em Minas
Gerais e o de seus contemporâneos em diversos pontos do
território colonial é prova contundente de que aqui se
praticou uma história natural em consonância com os mais
avançados princípios científicos e metodológicos
do período em questão. As “memórias” em
questão inserem-se no conjunto de escritos de cunho científico
do período, ao buscar “copiar” a realidade o mais
fielmente possível e ao utilizarem uma linguagem comum, numa
normatização científica que era possível
devido ao controle das atividades científicas nas terras
brasílicas exercido, ainda que à distância, pelas
diversas “instruções de viagem” do período.
Os
estudos sobre os viajantes naturalistas que aqui trabalharam a
serviço da Coroa, permitem afirmar que esses homens de ciência
estavam ao corrente do “estado de sua arte” e, respeitadas as
balizas coloniais praticaram, em termos de investigações
naturalistas, aquilo que se praticava no resto do mundo.
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