Para muitos pesquisadores brasileiros, 2005 será um ano inesquecível.
Foi quando, atendendo a uma convocação feita pelo ministro Miro
Teixeira, das Comunicações, dois anos antes, cerca de mil pesquisadores
de 77 instituições brasileiras se reuniram em um esforço inédito na
área de engenharia, para conceber e construir uma nova proposta de
sistema de TV Digital.
Mas
o que é um sistema de TV Digital? Alguns imaginam que se trata apenas
de uma "TV enriquecida com uma melhor imagem, ou com alguns objetos
para se clicar na tela". Mas uma TV Digital é, ou poderia ser, muito
mais que isso. Conforme os estudos da relação Ciência, Tecnologia e
Sociedade (CTS) têm identificado, a construção de um artefato
tecnológico sempre acaba por congelar, nesse artefato, uma série de
potencialidades e regras sociais (Winner, 1986; Pinch e Bijker, 1989;
Feenberg, 1992; Dagnino, 2002). Nos termos do Decreto 4.901/2003, que o
criou, o SBTVD deveria ter, como seu objetivo primeiro, a promoção da
inclusão social, da diversidade cultural e a democratização da
informação (art. 1°, inciso I).
Foi
pensando nesses termos que se iniciaram as pesquisas do SBTVD. Durante
um ano, os pesquisadores brasileiros se lançaram com entusiasmo a um
trabalho fantástico, onde foram geradas soluções tecnológicas para as
diversas partes que compõem um sistema de TV Digital.
Para
ficar em apenas um exemplo: o serviço de correio eletrônico via TV.
Esse serviço funcionaria de modo dual: se o usuário tiver conexão a um
canal de interatividade (por exemplo, uma linha telefônica), ele
funciona como um e-mail convencional, com a TV no papel de monitor.
Entretanto, embora a TV esteja presente em 94% dos domicílios
brasileiros, apenas 62% desses possui linha telefônica. Uma forma de se
atender à parcela excluída, então, seria de alguma forma prover o
serviço sem a necessidade do canal de interatividade. A solução
concebida pela equipe da UnB e Brisa (uma entidade de pesquisa e
desenvolvimento) foi a de enviar as mensagens em forma de datagramas.
Entretanto, como esses datagramas seriam transmitidos em um canal (de
televisão) específico, eles não podem ser transmitidos aleatoriamente:
é necessário assegurar que, no momento da transmissão, o receptor
esteja ligado e sintonizado exatamente naquele canal em particular. A
solução concebida foi a de se realizar essas transmissões em um horário
pré-determinado da madrugada, quando o receptor é automaticamente
"acordado" pelo sistema operacional e sintonizado no canal desejado,
passando a capturar as mensagens que lhe são destinadas. Assim, o
sistema operacional e o middleware (desenvolvido pelas equipes da USP,
UFPB, PUC-Rio, Unicamp e RCAsoft) têm que atender a essa necessidade. E
como os datagramas são transmitidos para todos, existe a necessidade de
mecanismos criptográficos, como os desenvolvidos pela equipe do CESAR
(Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife).
Entretanto, existem mais desafios. Em um sistema de e-mail
convencional, a mensagem é enviada para um provedor (@algumlugar.com),
que é reconhecido nas tabelas de endereçamento da internet. No nosso
caso, o problema reside no fato de que a mensagem será transmitida ao
destinatário por uma emissora de uma localidade específica - e portanto
existe a necessidade de se identificar antes que localidade é essa.
Haveriam duas possibilidades: ou manter-se-ia uma imensa tabela
nacional, com o endereço físico de todos os usuários, ou teria que ser
concebida uma solução alternativa. Essa solução foi obtida com a ajuda
providencial do professor Gustavo Gindre, do Comitê Consultivo do SBTVD
e também membro do Comitê Gestor da Internet no Brasil. Por seu
intermédio, foi realizada uma reunião com o pessoal do CGI, e optou-se
pela adoção de um mecanismo de endereçamento baseado no IPv6. Com isso,
parte do endereço refletiria a identificação da localidade, e parte o
endereço inequívoco do usuário. As equipes do Terminal de Acesso (USP)
e sinalização da camada de transporte (Unisinos) foram acionadas para
detalharmos esse mecanismo.
Assim,
um problema aparentemente simples - como enviar e-mails para pessoas
que não possuem linha telefônica - acabou resultando em uma solução
original, com a mobilização de pesquisadores de diversas instituições.
E qual a vantagem dessa solução? Afora o seu aspecto inédito, deve-se
considerar que grande parte das pessoas que não possuem linha
telefônica residem em áreas rurais, à margem de qualquer perspectiva
imediata de inclusão ao mundo da informação. Para essas pessoas,
receber mensagens como extratos previdenciários ou similares é de
imensa ajuda, pois não mais necessitariam deslocar-se quilômetros até a
cidadezinha próxima.
Outro
exemplo é o subsistema de modulação empregando uma nova estrutura COFDM
e mecanismo de equalização baseado em algoritmo de inteligência
artificial (PUC/RS), em complemento aos trabalhos com código Turbo
(Mackenzie), código LDPC e aproveitamento do multipercurso (Inatel).
Essas soluções possibilitariam a adoção de modulação diferente do
ISDB-T, que foi instituída pelo Decreto 5.280/2006.
Foi
desenvolvido também um codificador de vídeo MPEG-2, totalmente em
software, que opera em tempo real em computadores simples com sistema
Linux (Unisinos). Essa alternativa, de custo bastante reduzido,
possibilitaria a implantação maciça de pequenas emissoras, sejam
comerciais, públicas, educativas ou comunitárias. Foram também
estudados os algoritmos para codificação de vídeo escalável (Unisinos)
e o H.264 (PUC-Rio, UFRJ, UFRGS, Fitec).
Na
área de aplicativos também foram realizados importantes trabalhos. Um
deles, o Guia de Programas e Aplicativos (EPG/Portal) se assemelha, à
primeira vista, a um menu para troca de canais. Mas é muito mais que
isso. Ele permite estabelecer filtros, seja por assuntos, seja por
critérios como o de faixa etária. Mas além disso, ao conceber a TV
Digital não apenas como uma replicação da TV convencional e sim como um
novo meio de comunicação multimídia, existe a necessidade de uma
interface de interação, de busca e recuperação das diversas peças de
informação que podem compor um programa multimídia interativa. Assim,
esse subsistema, concebido pelas equipes da UFC, Unifor, Cefet-CE, IA,
Brisa, UFPE, Larc/USP e Unisinos integram aplicativos, middleware e
sinalização da camada de transporte, bem como uma proposta inicial de
padronização de metadados.
A
UFPR criou um sistema para TV em 3D, com um exemplo educativo (Museu
Virtual). Essa solução poderia ser empregada de forma ampla na criação
de programas educativos em forma de jogos, e também seria muito
interessante na área comercial, por exemplo para a venda de imóveis ou
indumentária. O serviço de saúde (UFSC), ao disponibilizar as
informações de forma interativa, coloca, ao telespectador leigo, noções
e cuidados para este melhorar a sua saúde, de forma divertida.
Diversos
outros trabalhos foram desenvolvidos: governo eletrônico (UFC, Brisa);
algoritmos de mapeamento de campos eletromagnéticos (PUC-Rio); técnicas
de canal de retorno via WiFi e WiMax (Unicamp, UFRJ, PUC-Rio);
segurança das informações (Genius, Fitec, CESAR). Os mecanismos que
possibilitariam uma TV mais ricamente interativa, como o middleware
(UFPB, Unicamp) e o sincronismo de mídias (PUC-Rio) receberam atenção
especial. Trabalhou-se com o conceito de programas não-lineares, que
foi trazida da área de programação de computadores, onde o paradigma de
objetos (não-linear) se contrapôs ao paradigma linear (início-meio-fim)
de linguagens antigas como o Fortran (Tome, 2001).
Igualmente
importante era garantir os aspectos de usabilidade (UFSC, CEFET-SC),
considerando o perfil da população brasileira. Coisas básicas, como a
padronização do lay-out do controle remoto, são necessárias para que a
TV Digital venha a ser uma ferramenta, e não um obstáculo digital. E
não devemos nos esquecer das pesquisas na área social, significativas
embora em menor número (UFMG, Unisinos, Unicamp). Enfim, foram diversos
os trabalhos, e qualquer que seja o critério de análise, corre-se o
risco de esquecer algum trabalho importante. O CPqD foi responsável
pela coordenação desses trabalhos e pelas análises regulatória,
econômica e de riscos e oportunidades.
Não
faltaram também os "causos" que farão parte do nosso folclore
técnico-científico. As equipes que trabalharam na parte de hardware
tiveram que adquirir placas de desenvolvimento com chips programáveis
(FPGA). Devido à complexidade dos algoritmos, as placas, mais
sofisticadas que o usual, tiveram que ser adquiridas junto a
fornecedores norte-americanos. Encomenda feita, pagamento em ordem, os
pesquisadores se depararam com um inesperado interrogatório do
Departamento de Estado, que questionava se essas placas não seriam
utilizadas para o desenvolvimento de armas nucleares. Ao cabo de
algumas semanas, a confusão foi desfeita, não sem antes provocar um
atraso no cronograma dos trabalhos.
Visto
em retrospectiva, é fantástico observar que, no curto período de um
ano, a comunidade científica brasileira logrou obter um acervo ímpar de
resultados. Será lamentável para a Nação se, nessa altura, esses
conhecimentos forem perdidos. Para tanto, é necessário que o processo
de detalhamento da tecnologia permita uma real participação de nossa
comunidade científica, no sentido de incorporar essa complexa teia de
soluções interligadas, e não apenas para ratificar um sistema
semi-definido.
De
minha parte, devo dizer que foi um prazer imenso trabalhar com essas
equipes. Conheci pessoas fantásticas, garotos que vararam três dias sem
dormir, para finalizar um código, ou que desataram a rir abobadamente
quando o osciloscópio mostrou um sinal estável, a ponto de pensarmos
ser necessário interná-los em uma clínica de repouso. A todos, a
começar pelos meus pares do CPqD, um parabéns emocionado. Fica a
certeza de que, se o governo acreditar, a comunidade científica
brasileira tem plenas condições de enfrentar qualquer desafio.
Takashi Tome é pesquisador da Fundação CPqD - Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações.
Referências
Dagnino,
R. A relação pesquisa-produção: em busca de um enfoque alternativo.
Revista Iberoamericana de Ciencia, Tecnologia, Sociedad y Innovación.
Ago/02. Disponível em
http://www.campus-oei.org/revistactsi/numero3/art01.htm. Acesso em
02/10/06.
Feenberg,
A. Subversive rationalization: technology, power and democracy. 1992.
Disponível em http://www-rohan.sdsu.edu/faculty/feenberg/Subinq.htm.
Acesso em 02/10/06.
Pinch,
T. e Bijker, W. The social construction of facts and artifacts: or how
the sociology of science and the sociology of technology might benefit
each other. In: Bijker, Hughes & Pinch: The social construction of technological systems. MIT Press, 1989. Pp 17-50.
Tome, T. Interactive television. Multimedia in XXIst century seminar. Anatel-ITU. Porto Seguro, 2001.
Winner,
L. Do artifacts have politics? Univ. of Chicago Press, 1986. Disponível
em
http://www-personal.si.umich.edu/~rfrost/courses/Women+Tech/readings/Winner.html.
Acesso em 02/10/06.
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