REVISTA ELETRÔNICA DE JORNALISMO CIENTÍFICO
Dossiê Anteriores Notícias Reportagens Especiais HumorComCiência Quem Somos
Dossiê
Editorial
Economia digital - Carlos Vogt
Reportagens
Política rege concessões de rádio e TV
Rodrigo Cunha
Os donos da bola
Yurij Castelfranchi
A briga pela TV Digital agora é no campo jurídico
Carolina Cantarino
Comunicação livre: delito ou direito?
André Gardini
Internet sem fio em benefício de quem?
Flávia Gouveia
Artigos
A sociedade dos poetas vivos
Takashi Tome
TV Digital: atropelos e mitos de um processo que não terminou
Michelle Prazeres
Espectro aberto e compartilhamento
Sérgio Amadeu da Silveira
Papel e a contribuição social da TV pública
Beth Carmona
TV pública e o trabalho da TV Cultura
Jorge da Cunha Lima
Resenha
Sob fogo cerrado
Susana Dias
Entrevista
Eugênio Bucci
Entrevistado por Marta Kanashiro. Foto: Pablo Lorenzzoni
Poema
Guerra Santa
Carlos Vogt
Humor
HumorComCiencia
João Garcia
    Versão para impressão       Enviar por email       Compartilhar no Twitter       Compartilhar no Facebook
Artigo
A sociedade dos poetas vivos
Por Takashi Tome
10/10/2006

Para muitos pesquisadores brasileiros, 2005 será um ano inesquecível. Foi quando, atendendo a uma convocação feita pelo ministro Miro Teixeira, das Comunicações, dois anos antes, cerca de mil pesquisadores de 77 instituições brasileiras se reuniram em um esforço inédito na área de engenharia, para conceber e construir uma nova proposta de sistema de TV Digital.

Mas o que é um sistema de TV Digital? Alguns imaginam que se trata apenas de uma "TV enriquecida com uma melhor imagem, ou com alguns objetos para se clicar na tela". Mas uma TV Digital é, ou poderia ser, muito mais que isso. Conforme os estudos da relação Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS) têm identificado, a construção de um artefato tecnológico sempre acaba por congelar, nesse artefato, uma série de potencialidades e regras sociais (Winner, 1986; Pinch e Bijker, 1989; Feenberg, 1992; Dagnino, 2002). Nos termos do Decreto 4.901/2003, que o criou, o SBTVD deveria ter, como seu objetivo primeiro, a promoção da inclusão social, da diversidade cultural e a democratização da informação (art. 1°, inciso I).

Foi pensando nesses termos que se iniciaram as pesquisas do SBTVD. Durante um ano, os pesquisadores brasileiros se lançaram com entusiasmo a um trabalho fantástico, onde foram geradas soluções tecnológicas para as diversas partes que compõem um sistema de TV Digital.

Para ficar em apenas um exemplo: o serviço de correio eletrônico via TV. Esse serviço funcionaria de modo dual: se o usuário tiver conexão a um canal de interatividade (por exemplo, uma linha telefônica), ele funciona como um e-mail convencional, com a TV no papel de monitor. Entretanto, embora a TV esteja presente em 94% dos domicílios brasileiros, apenas 62% desses possui linha telefônica. Uma forma de se atender à parcela excluída, então, seria de alguma forma prover o serviço sem a necessidade do canal de interatividade. A solução concebida pela equipe da UnB e Brisa (uma entidade de pesquisa e desenvolvimento) foi a de enviar as mensagens em forma de datagramas. Entretanto, como esses datagramas seriam transmitidos em um canal (de televisão) específico, eles não podem ser transmitidos aleatoriamente: é necessário assegurar que, no momento da transmissão, o receptor esteja ligado e sintonizado exatamente naquele canal em particular. A solução concebida foi a de se realizar essas transmissões em um horário pré-determinado da madrugada, quando o receptor é automaticamente "acordado" pelo sistema operacional e sintonizado no canal desejado, passando a capturar as mensagens que lhe são destinadas. Assim, o sistema operacional e o middleware (desenvolvido pelas equipes da USP, UFPB, PUC-Rio, Unicamp e RCAsoft) têm que atender a essa necessidade. E como os datagramas são transmitidos para todos, existe a necessidade de mecanismos criptográficos, como os desenvolvidos pela equipe do CESAR (Centro de Estudos e Sistemas Avançados do Recife).

Entretanto, existem mais desafios. Em um sistema de e-mail convencional, a mensagem é enviada para um provedor (@algumlugar.com), que é reconhecido nas tabelas de endereçamento da internet. No nosso caso, o problema reside no fato de que a mensagem será transmitida ao destinatário por uma emissora de uma localidade específica - e portanto existe a necessidade de se identificar antes que localidade é essa. Haveriam duas possibilidades: ou manter-se-ia uma imensa tabela nacional, com o endereço físico de todos os usuários, ou teria que ser concebida uma solução alternativa. Essa solução foi obtida com a ajuda providencial do professor Gustavo Gindre, do Comitê Consultivo do SBTVD e também membro do Comitê Gestor da Internet no Brasil. Por seu intermédio, foi realizada uma reunião com o pessoal do CGI, e optou-se pela adoção de um mecanismo de endereçamento baseado no IPv6. Com isso, parte do endereço refletiria a identificação da localidade, e parte o endereço inequívoco do usuário. As equipes do Terminal de Acesso (USP) e sinalização da camada de transporte (Unisinos) foram acionadas para detalharmos esse mecanismo.

Assim, um problema aparentemente simples - como enviar e-mails para pessoas que não possuem linha telefônica - acabou resultando em uma solução original, com a mobilização de pesquisadores de diversas instituições. E qual a vantagem dessa solução? Afora o seu aspecto inédito, deve-se considerar que grande parte das pessoas que não possuem linha telefônica residem em áreas rurais, à margem de qualquer perspectiva imediata de inclusão ao mundo da informação. Para essas pessoas, receber mensagens como extratos previdenciários ou similares é de imensa ajuda, pois não mais necessitariam deslocar-se quilômetros até a cidadezinha próxima.

Outro exemplo é o subsistema de modulação empregando uma nova estrutura COFDM e mecanismo de equalização baseado em algoritmo de inteligência artificial (PUC/RS), em complemento aos trabalhos com código Turbo (Mackenzie), código LDPC e aproveitamento do multipercurso (Inatel). Essas soluções possibilitariam a adoção de modulação diferente do ISDB-T, que foi instituída pelo Decreto 5.280/2006.

Foi desenvolvido também um codificador de vídeo MPEG-2, totalmente em software, que opera em tempo real em computadores simples com sistema Linux (Unisinos). Essa alternativa, de custo bastante reduzido, possibilitaria a implantação maciça de pequenas emissoras, sejam comerciais, públicas, educativas ou comunitárias. Foram também estudados os algoritmos para codificação de vídeo escalável (Unisinos) e o H.264 (PUC-Rio, UFRJ, UFRGS, Fitec).

Na área de aplicativos também foram realizados importantes trabalhos. Um deles, o Guia de Programas e Aplicativos (EPG/Portal) se assemelha, à primeira vista, a um menu para troca de canais. Mas é muito mais que isso. Ele permite estabelecer filtros, seja por assuntos, seja por critérios como o de faixa etária. Mas além disso, ao conceber a TV Digital não apenas como uma replicação da TV convencional e sim como um novo meio de comunicação multimídia, existe a necessidade de uma interface de interação, de busca e recuperação das diversas peças de informação que podem compor um programa multimídia interativa. Assim, esse subsistema, concebido pelas equipes da UFC, Unifor, Cefet-CE, IA, Brisa, UFPE, Larc/USP e Unisinos integram aplicativos, middleware e sinalização da camada de transporte, bem como uma proposta inicial de padronização de metadados.

A UFPR criou um sistema para TV em 3D, com um exemplo educativo (Museu Virtual). Essa solução poderia ser empregada de forma ampla na criação de programas educativos em forma de jogos, e também seria muito interessante na área comercial, por exemplo para a venda de imóveis ou indumentária. O serviço de saúde (UFSC), ao disponibilizar as informações de forma interativa, coloca, ao telespectador leigo, noções e cuidados para este melhorar a sua saúde, de forma divertida.

Diversos outros trabalhos foram desenvolvidos: governo eletrônico (UFC, Brisa); algoritmos de mapeamento de campos eletromagnéticos (PUC-Rio); técnicas de canal de retorno via WiFi e WiMax (Unicamp, UFRJ, PUC-Rio); segurança das informações (Genius, Fitec, CESAR). Os mecanismos que possibilitariam uma TV mais ricamente interativa, como o middleware (UFPB, Unicamp) e o sincronismo de mídias (PUC-Rio) receberam atenção especial. Trabalhou-se com o conceito de programas não-lineares, que foi trazida da área de programação de computadores, onde o paradigma de objetos (não-linear) se contrapôs ao paradigma linear (início-meio-fim) de linguagens antigas como o Fortran (Tome, 2001).

Igualmente importante era garantir os aspectos de usabilidade (UFSC, CEFET-SC), considerando o perfil da população brasileira. Coisas básicas, como a padronização do lay-out do controle remoto, são necessárias para que a TV Digital venha a ser uma ferramenta, e não um obstáculo digital. E não devemos nos esquecer das pesquisas na área social, significativas embora em menor número (UFMG, Unisinos, Unicamp). Enfim, foram diversos os trabalhos, e qualquer que seja o critério de análise, corre-se o risco de esquecer algum trabalho importante. O CPqD foi responsável pela coordenação desses trabalhos e pelas análises regulatória, econômica e de riscos e oportunidades.

Não faltaram também os "causos" que farão parte do nosso folclore técnico-científico. As equipes que trabalharam na parte de hardware tiveram que adquirir placas de desenvolvimento com chips programáveis (FPGA). Devido à complexidade dos algoritmos, as placas, mais sofisticadas que o usual, tiveram que ser adquiridas junto a fornecedores norte-americanos. Encomenda feita, pagamento em ordem, os pesquisadores se depararam com um inesperado interrogatório do Departamento de Estado, que questionava se essas placas não seriam utilizadas para o desenvolvimento de armas nucleares. Ao cabo de algumas semanas, a confusão foi desfeita, não sem antes provocar um atraso no cronograma dos trabalhos.

Visto em retrospectiva, é fantástico observar que, no curto período de um ano, a comunidade científica brasileira logrou obter um acervo ímpar de resultados. Será lamentável para a Nação se, nessa altura, esses conhecimentos forem perdidos. Para tanto, é necessário que o processo de detalhamento da tecnologia permita uma real participação de nossa comunidade científica, no sentido de incorporar essa complexa teia de soluções interligadas, e não apenas para ratificar um sistema semi-definido.

De minha parte, devo dizer que foi um prazer imenso trabalhar com essas equipes. Conheci pessoas fantásticas, garotos que vararam três dias sem dormir, para finalizar um código, ou que desataram a rir abobadamente quando o osciloscópio mostrou um sinal estável, a ponto de pensarmos ser necessário interná-los em uma clínica de repouso. A todos, a começar pelos meus pares do CPqD, um parabéns emocionado. Fica a certeza de que, se o governo acreditar, a comunidade científica brasileira tem plenas condições de enfrentar qualquer desafio.

Takashi Tome é pesquisador da Fundação CPqD - Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações.


Referências

Dagnino, R. A relação pesquisa-produção: em busca de um enfoque alternativo. Revista Iberoamericana de Ciencia, Tecnologia, Sociedad y Innovación. Ago/02. Disponível em http://www.campus-oei.org/revistactsi/numero3/art01.htm. Acesso em 02/10/06.

Feenberg, A. Subversive rationalization: technology, power and democracy. 1992. Disponível em http://www-rohan.sdsu.edu/faculty/feenberg/Subinq.htm. Acesso em 02/10/06.

Pinch, T. e Bijker, W. The social construction of facts and artifacts: or how the sociology of science and the sociology of technology might benefit each other. In: Bijker, Hughes & Pinch: The social construction of technological systems. MIT Press, 1989. Pp 17-50.

Tome, T. Interactive television. Multimedia in XXIst century seminar. Anatel-ITU. Porto Seguro, 2001.

Winner, L. Do artifacts have politics? Univ. of Chicago Press, 1986. Disponível em http://www-personal.si.umich.edu/~rfrost/courses/Women+Tech/readings/Winner.html. Acesso em 02/10/06.