O sociólogo inglês John B.Thompson escreveu que só poderíamos entender
o impacto social das redes de comunicação se superássemos a idéia de
que os meios de comunicação servem para transmitir informações entre
indivíduos cuja relação permaneceria inalterada. Deveríamos, sim,
entender como a utilização dos meios de comunicação tem implicado na
criação de novas formas de ação e interação, novos modos de
relacionamento e até mesmo de relações sociais.
Neste
sentido, o texto aqui pretende observar algumas tendências, nascidas no
terreno tecnológico, que estão alterando a comunicação e,
provavelmente, implicarão em profundas mudanças nos modelos de negócios
consolidados e nas relações socioeconômicas. A idéia de
compartilhamento do conhecimento tecnológico, espalhada pelo movimento
do software livre, chegou ao terreno cultural e tem gerado inúmeras
iniciativas, como o movimento de licenciamento flexível de obras
artísticas denominado “Creative Commons”. Recentemente, a proposta de
compartilhamento atingiu o campo das telecomunicações, ou seja,
questiona-se o modo de como estamos ocupando o espectro radioelétrico,
espaço por onde as ondas de rádio transitam e viabilizam a chamada
comunicação digital, a era da informação e a sociedade em rede.
O
professor de direito norte-americano, Yohai Benkler, em 1998, publicou
o artigo "Overcoming agoraphobia: building the commons of thedigitally
networked environment". Benkler advogava a necessidade de transformar o
espectro radioelétrico em um espaço comum, em bem efetivamente público,
superando o modelo de ocupação privada ou licenciada das frequências de
transmissão. A tese defendida baseava-se no avanço tecnológico que
permitiria repensar a tecnologia de transmissão-recepção e superar a
idéia de que a esfera de frequências é limitada e escassa.
Diante
da ocupação do espectro eletromagnético pelo licenciamento
governamental ou pela privatização de frequências, Benkler propôs uma
terceira alternativa: a regulação de transmissões wireless
como "espaço comum", espaço público, tal como nós regulamos hoje nosso
sistema de rodovias e nossas redes de computador. Isso porque os
desenvolvimentos tecnológicos no processamento digital de informação e
na tecnologia de comunicações wireless
tornaram possível uma forma de regulação alternativa. Benkler advoga a
possibilidade de regular as comunicações wireless do mesmo modo que é
regulada a internet - com protocolos que estabelecem um padrão mínimo -
ou como no sistema de rodovias, definindo regras governamentais básicas
sobre como trafegar.
A argumentação de Benkler é esclarecedora. Para ele, a nossa capacidade de pensar sobre o regulamento de comunicações wireless é obscurecida pela linguagem que usamos para discutir o problema. Quando falamos em regular comunicações wireless,
nós estamos falando em controlar "um recurso", o chamado "espectro
eletromagnético". Em seguida, pensamos em soluções do mercado para a
gerência do recurso e, conseqüentemente, quando nos deparamos com o
problema procuramos uma solução sobre a qual possamos exercer direitos
de propriedade para serem negociados no mercado. Todavia, Benkler
adverte que não existe uma "coisa" chamada "espectro". Não há nenhum
"recurso físico finito" que necessite ser alocado.
"O gerenciamento do espectro" poderia ser entendido também como a
regulação sobre como essas pessoas deverão usar seus equipamentos.
Benkler
aponta que "a alocação do espectro", a partir do licenciamento ou de
licitações, é uma prática por meio da qual o governo resolve o problema
da coordenação do espaço radioelétrico ameaçando a maioria de pessoas
na sociedade com a tomada de suas antenas e com o confisco de seus
transmissores, caso tentem se comunicar umas com as outras usando o
equipamento de rádio sem permissão. Assim, somente algumas empresas -
licenciadas ou proprietárias do "espectro" - podem comunicar-se ou se
oferecer para intermediar a comunicação entre as pessoas.
Para Benkler, os efeitos retóricos de tratar o espectro como "um
recurso" obscurecem a escolha mais importante a ser adotada com
respeito a radiocomunicação: se sua regulação deve ser realizada
centralizando o controle ou estabelecendo meios que permitam aos
usuários coordenarem multilateralmente suas transmissões pelas ondas do
rádio. Benkler acredita que se compreendemos que a pergunta é como
regular o uso do equipamento, e não como regular o "recurso", nós
encontraremos modelos de regulação alternativos em nossa sociedade. No
caso dos carros ou das redes de computadores, que envolvem problemas
similares da coordenação, nossa escolha social não foi dar a um pequeno
número de usuários uma licença exclusiva ou um direito de propriedade
para controlar o uso eficaz do equipamento. Em vez disso, no caso dos
automóveis, escolhemos permitir que qualquer pessoa possa comprar e
usar o equipamento. O governo exige que as pessoas cumpram as regras
para o uso das vias públicas. Com isso, permitem que os usuários do
equipamento coordenem o seu uso evitando choques de uns nos outros. No
caso das redes de computadores, Benkler descreve que a regulação foi
confiada primeiramente à indústria e nos comitês de fixação de padrões,
sendo que a evolução de determinadas regras deu-se na competição dos
mercados de equipamentos e serviços.
O
fundador do Supernova Group e ex-consultor do Federal Communication
Commission (FCC) dos EUA, Kevin Werbach, no mesmo sentido, escreveu uma
frase contundente e constrangedora: "quase tudo que você aprendeu sobre
o espectro (radioelétrico) está errado". Werbach defende que o espectro
aberto pode coexistir com o modelo de licenciamento exclusivo
tradicional. Há dois mecanismos para facilitar o compartilhamento do
espectro: espaços não regulamentados e underlay
(onde se utiliza baixa potência de transmissão). O primeiro envolve
faixas de freqüência alocadas sem que nenhum usuário tenha o direito
exclusivo de transmissão. Um conjunto muito limitado freqüências tem
sido designadas como não-regulamentadas. O wi-fi
utilizou deste espaço. Werbach quer a ampliação das frequências
não-regulamentadas. A segunda aproximação permite coexistência em
faixas licenciadas de usuários não licenciados que emitem sinais
não-intrusivos a outros usuários. Ambas as aproximações abertas do
espectro podem ser aplicadas e gerar a sua expansão, inclusive com a
adesão da indústria que venderia equipamentos adequados a essas
possibilidades. Para Werbach, ambos os caminhos deveriam ser
incentivados, uma vez que os riscos são mínimos e os benefícios
potenciais são extraordinários.
Werbach
busca demonstrar que com a tecnologia digital a melhor metáfora para a
comunicação sem fio não está na terra, mas nos oceanos. Milhares de
barcos atravessam os mares. Certamente há algum risco dos barcos
colidirem uns com os outros. Entretanto, alerta-nos Werbach, os oceanos
são gigantescos diante do volume do tráfego do transporte, além disso
os pilotos de cada barco, seguindo os protocolos de navegação,
manobrarão para evitar as colisões. Para assegurar a navegação segura,
nós temos uma combinação das leis e de normas de conduta definindo como
os barcos devem se comportar uns em relação aos outros. Um regime
regulatório que dividisse os oceanos entre as companhias de navegação
para facilitar o transporte seguro seria um exagero. Reduziria
enormemente o número dos barcos que poderiam usar os mares
simultaneamente, para Werbach seria um absurdo que somente elevaria o
preço do transporte oceânico.
Baseado
nesses fundamentos surgiu um movimento com vocação planetária
denominado Open Spectrum ou espectro aberto. A base desse movimento
está na possibilidade de eliminação ou redução da necessidade dos
governos regulamentarem as comunicações sem fio e, portanto, pedaços
significativos do espectro radioelétrico. O movimento pelo espectro
aberto pode ser interpretado como: 1) um ideal de liberdade no uso das
radiofrequências; 2) uma crítica a atual gestão do espectro; 3) uma
proposta que emerge das tendências de evolução dos rádios inteligentes.
Estas definições podem ser encontradas no site www.openspectrum.info .
Os governos têm imposto limites ao uso dos rádios e definido quem pode
transmitir e quem pode receber, quais frequências podem ser utilizadas
e como devem ser sua onda, sua potência, entre outros regulamentos. A
maioria das pessoas aceita essas normas para a transmissão e recepção
do rádio por acreditarem que são necessárias para evitar as
interferências. As pessoas aprenderam que o espectro precisa de
controle para evitar o caos. Entretanto, os rádios se tornaram
inteligentes e superaram a tecnologia do início do século XX. Estamos
no século XXI e a comunicação analógica perdeu hegemonia para a
comunicação digital e para rádios controlados por software.
Atualmente,
os telefones celulares GSM escaneam automaticamente a banda para
escolher um canal livre, viabilizando milhares de comunicações
simultâneas. Também assinalam dinamicamente as frequências quando os
telefones estão ativados, fixam os níveis de sinais para uma conexão
adequada. Os rádio receptores inteligentes podem separar os sinais
codificados inclusive quando estão ocupando o mesmo canal. Isso já está
acontecendo nos espaços não regulamentados, e isso já ocorre quando as
pessoas utilizam em suas casas um roteador wireless
para conectar um ou mais computadores. Segundo a Open Spectrum
Foundation, estudos recentes têm demonstado que as conexões estáticas
de radiofrequência estão gerando taxas de ocupação de banda inferior a
10%.
A
defesa do Espectro Aberto é a defesa do uso compartilhado de um espaço
vital para as comunicações. A proposta é regular o espectro como se
regula o ciberespaço, a internet. Ao invés de existir um controle
governamental sobre quem pode e quem não pode abrir um provedor de
acesso ou de backbone, um
site ou um portal, existem os protocolos e padrões de comunicação que
todos devem seguir. Estes protocolos foram desenvolvidos
colaborativamente por técnicos, empresas, pesquisadores e usuários de
modo aberto e não-proprietário. Sem dúvida, as possibilidades do
espectro aberto colocam em xeque também o modelo atual das concessões
de rádio e TV e podem ser utilizadas para discutir a democratização das
comunicações e permitir o surgimento de inúmeras novas estações de
rádio e televisão ou, no ambiente de convergência digital, até mesmo de
transmissão de videoblogs, webrádios e webTVs. Um dos grandes
defensores do Espectro Aberto é o jurista estadunidense Lawrence
Lessig, também um dos criadores do movimento Creative Commons.
Sérgio Amadeu da Silveira é professor do programa de mestrado da Faculdade Casper Líbero.
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