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Reportagem
A luta contra o AVC no Brasil
Por Beatriz Abramczuk
e Edlaine Villela
10/06/2009

Dores de cabeça súbita e sem causa aparente, dificuldade de fala e dormência nos membros podem ser sintomas de uma catástrofe que ameaça o cérebro de milhões de pessoas e impõe restrições para o resto de suas vidas. O acidente vascular cerebral (AVC) é uma das doenças que mais matam no mundo. É a maior causa de incapacitação da população na faixa etária superior a 50 anos, sendo responsável por 10% do total de óbitos, 32,6% das mortes com causas vasculares e 40% das aposentadorias precoces no Brasil. O país está entre os dez primeiros com maiores índices de mortalidade por AVC.

A maior dificuldade para se fazer um retrato real do AVC no território nacional é a ausência de uma regulação federal a respeito de sua notificação. O Ceará é o único estado que tem uma política de governo específica para o AVC aprovada no Conselho Estadual de Saúde, e a Secretaria de Saúde do estado vem tentando torná-lo uma doença de notificação compulsória. Nos demais estados, a notificação dos casos de AVC não é obrigatória.

A cada ano, são registrados no Brasil aproximadamente 90 mil óbitos por doenças cerebrovasculares. O Sistema Único de Saúde (SUS) registrou no ano de 2008 cerca de 200 mil internações por AVC, que resultaram em um custo de aproximadamente R$ 270 milhões para os cofres públicos. Desse total, 33 mil casos evoluíram para óbito.

Região

Nordeste

Norte

Sudeste

Sul

Centro-Oeste

Taxa de mortalidade por AVC*

51,61

30,37

55,19

58,74

41,38

Porcentagem da população com 50 anos ou mais

16,93

12,97

21,60

22,08

16,82

* óbitos/100mil habitantes
Relação entre mortalidade por AVC e população com 50 anos ou mais (2006).
Fonte: Ministério da Saúde - Sistema de Informações Hospitalares do SUS (SIH/SUS).

Os dados são alarmantes, mas o Brasil vem seguindo uma tendência já observada nos países desenvolvidos de queda das taxas de mortalidade por AVC. Nas três últimas décadas, houve um declínio da taxa de mortalidade em todas as regiões do país, porém de forma desigual, sendo mais evidente nas regiões Sul e Sudeste, as mais ricas do país – responsáveis por 76% do produto interno bruto. Para se ter uma ideia, em 1996, as taxas de mortalidade por AVC nessas regiões eram, respectivamente, de 61,9 e 60,2 por 100 mil habitantes.

“O AVC, assim como as demais doenças cardiovasculares, é uma doença própria de ambientes que vão se desenvolvendo e apresentando redução das morbidades relacionadas ao subdesenvolvimento, como, por exemplo, desnutrição e doenças infecciosas. Isso explica as taxas de mortalidade por AVC mais elevadas nas regiões mais ricas do Brasil”, afirma Charles André, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Ao mesmo tempo, as regiões mais desenvolvidas são também as que apresentaram as maiores quedas na taxa de mortalidade por AVC ao longo dos anos, porque são locais onde surgem e primeiro se disseminam os novos métodos preventivos”, completa.

Apesar da redução na taxa de mortalidade para cada 100 mil habitantes, o total de óbitos atribuídos ao AVC, em números absolutos, tem aumentado nas três últimas décadas. “A aparente contradição se deve ao aumento da expectativa de vida da população. Como os idosos representam o grupo mais acometido pela doença, o número total de óbitos por AVC cresce em paralelo com o fenômeno demográfico”, explica o pesquisador da UFRJ.

Os números de casos de AVC não são homogêneos nas diversas regiões do país, podendo apresentar discrepâncias até mesmo dentro de uma mesma região metropolitana, como a de São Paulo. A cidade de São Caetano do Sul, por exemplo, registrou, em 2006, uma taxa de 69,8 óbitos por doenças cerebrovasculares para cada 100 mil habitantes, enquanto na cidade de São Bernardo do Campo essa taxa foi de 38,81 óbitos por 100 mil habitantes. Apesar de essas cidades serem próximas uma da outra, existe uma grande diferença na distribuição etária de sua população: os indivíduos com 50 anos ou mais correspondem a 33% dos habitantes de São Caetano e a 19% dos moradores de São Bernardo.

A distribuição geográfica do AVC é também influenciada pelas condições sociais e econômicas da população. “Uma carência de acesso a informações e ao sistema de saúde pode aumentar em até 20% a chance de acometimento por AVC”, estimou Rubens Gagliardi, chefe da clínica de neurologia da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, em palestra proferida em maio de 2009, durante o III Simpósio de AVC de Campinas (SP). Charles André, da UFRJ, reforça: “Quanto maior o nível educacional formal dos indivíduos, maior o nível de conhecimento sobre a doença e sobre seus inúmeros fatores de risco, e menores os índices de comportamentos de risco”.

Cidade

Taxa de mortalidade por AVC (óbitos/100mil hab)

Porcentagem da população com 50 anos ou mais

% analfabetos acima de 15 anos

Produto Interno Bruto per capita (R$)

Curitiba (PR)

48,57

16,51

3,38

8.087

São Paulo (SP)

56,05

17,51

4,89

12.154

Recife (PE)

68,52

17,11

10,55

6.585

Goiânia (GO)

43,18

14,25

5,18

5.392

Rio Branco (AC)

36,36

10,56

6,09

4.401

Relação entre taxa de mortalidade por AVC e indicadores sócio-econômicos em seis capitais brasileiras (2000).
Fontes: Ministério da Saúde – Sistema de Informações Hospitalares do SUS (SIH/SUS)
e Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)

Poucos sabem que o AVC pode ser tratado. O tratamento depende do tipo de AVC que acomete o indivíduo. O AVC isquêmico (AVCi) corresponde a 80% dos casos, sendo caracterizado pela interrupção do fluxo sanguíneo para o cérebro por um coágulo (trombo), o que leva a uma região de neurônios mortos e outra em que há interrupção de atividade elétrica – área de penumbra isquêmica –, mas sem que haja morte neuronal. O tratamento envolve a remoção do trombo para que o fluxo sanguíneo seja reestabelecido na área de penumbra isquêmica. Isso pode ser feito por meio de cateteres, que removem mecanicamente o coágulo (trombólise mecânica) ou através de medicamentos (trombólise química). O tratamento trombolítico endovenoso é utilizado desde 1995. Antes disso, era utilizado o ácido acetilsalicílico (AAS), que apenas diminui o risco de um novo AVC e, por isso, é tido como um método de prevenção secundária.

Cada caso de AVC deve ser considerado como potencial recebedor de tratamento trombolítico endovenoso, independentemente da região do cérebro afetada. A avaliação da neuroimagem é fundamental no processo, uma vez que a medicação não pode ser utilizada quando há sinais de hemorragia no cérebro ou quando a área isquêmica é maior do que um terço da área cerebral média.

Os outros 20% de casos de AVC são do tipo hemorrágico (AVCh), caracterizado por uma ruptura do vaso sanguíneo na região encefálica, formando um hematoma, com uma consequente inflamação. O tratamento envolve o manejo ideal da pressão arterial para conter a expansão do hematoma. Alguns casos com hemorragia podem ser tratados cirurgicamente. Entretanto, na maioria das vezes, a área afetada é de difícil acesso. Ainda são necessários mais estudos para investigar a vantagem do tratamento cirúrgico sobre o tratamento clínico.

Para o AVCi, é consenso ser ideal iniciar o tratamento terapêutico em até quatro horas e meia após o início dos sintomas, sendo, por isso, de extrema importância um atendimento emergencial rápido. Nos casos em que o paciente chega ao hospital após esse intervalo de tempo, é feito apenas um monitoramento na unidade vascular. Mesmo dentro desse prazo de quatro horas e meia, alguns casos, dependendo do tamanho do vaso obstruído, podem já ter uma área comprometida incompatível com a aplicação da medicação, reforçando a necessidade da avaliação por neuroimagem.

O único risco associado à trombólise endovenosa é de um aumento de 6,4% na chance de haver um sangramento cerebral. Entretanto, alguns fatores, como idade elevada, alta glicemia e edema na tomografia, podem ajudar a previsão dos prognósticos de sangramento. Por isso, cada caso deve ser avaliado de forma individual e a medicação deve ser sempre concomitante a um controle rigoroso dos parâmetros fisiológicos.

Embora o tratamento endovenoso seja o único tratamento medicamentoso eficaz para o AVCi, seu uso ainda é muito limitado no Brasil. “1200 pacientes receberam o tratamento endovenoso de 2002 a junho de 2008, em 14 hospitais públicos e 21 hospitais privados”, aponta Sheila Martins, coordenadora do programa Rede Nacional de Atendimento ao AVC, do Ministério da Saúde. Mesmo em países desenvolvidos, o uso do medicamento ainda não é muito difundido, por motivos que abrangem a falta de treinamento dos profissionais de saúde e a falta de organização entre os serviços de emergência e os hospitais. Nos Estados Unidos, menos de 4% dos pacientes de AVC recebem o trombolítico endovenoso. Em poucos centros de referência do mundo, como em Heidelberg na Alemanha, esses índices chegam a 15%.

A Rede Nacional de Atendimento ao AVC, um programa idealizado no fim de 2007 pelo Ministério da Saúde, tem como objetivo melhorar a qualidade do atendimento à doença, diminuir o número de pacientes incapacitados e mortos e diminuir o custo a longo prazo com internações e tratamentos. “O projeto prevê a criação de uma rede de assistência ao AVC em todos os níveis de atenção: reconhecimento da população, atendimento pré-hospitalar, hospitalar, reabilitação e prevenção”, diz a coordenadora. Atualmente, o programa conta com 45 centros especializados, localizados no Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Espírito Santo, Distrito Federal, Bahia e Amazonas.

Um paciente com AVC custa para o SUS, em média, R$ 6 mil, mas esse valor varia de acordo com a gravidade de cada caso. O paciente que recupera completamente o déficit neurológico terá necessidade de um período de internação curto (de 3 a 5 dias), a um custo de aproximadamente R$ 640. Porém, nos casos em que o paciente fica com sequelas graves, o período de internação pode ser de mais de um mês, gerando um custo de R$ 32 mil. Sheila Martins reforça a importância da trombólise endovenosa para diminuir os gastos do SUS: “O tratamento aumenta a chance de recuperação completa e, mesmo que seja um medicamento caro, certamente é efetivo”, avalia.

O levantamento dos dados de atendimentos por AVC pelos planos de saúde privados é dificultado pela não obrigatoriedade de notificação dos casos. Mas isso não significa que um plano de saúde tem a opção de negar atendimento a um paciente com AVC. A lei 9656/98 regulamenta os atendimentos dos planos de saúde privados, garantindo “cobertura assistencial médico-ambulatorial e hospitalar (...) das doenças listadas na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, da Organização Mundial de Saúde”, na qual está incluído o AVC. A lei também determina “carência máxima de 180 dias para exames e consultas e 24 horas para atendimento de urgência e emergência”. No caso de doença preexistente, a carência é de 24 meses, cabendo à operadora de saúde o “ônus da prova e da demonstração do conhecimento prévio do consumidor ou beneficiário”.

“Os planos de saúde privados têm investido na prevenção dos fatores de risco associados ao AVC”, afirma José Luiz Milani, auditor da Unimed de Jundiaí (SP). Ele menciona um protocolo de acompanhamento multidisciplinar para indivíduos obesos, implantado na unidade de Jundiaí com o objetivo de modificação de hábitos de vida, reeducação alimentar e perda de peso. “Após seis meses, já foi observada uma diminuição no número de consultas eletivas, de internações e de serviços por parte dos indivíduos incluídos no programa”, comenta o auditor.

O Brasil vem apresentando consideráveis avanços no atendimento aos pacientes com AVC, entretanto, ainda é necessário ampliar o atendimento para que um maior número de usuários seja beneficiado com o tratamento adequado. O melhor tratamento para o AVC ainda é a prevenção e esse deve ser o foco maior das atenções, tanto dos serviços públicos quanto do setor privado.