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A China e as tecnopolíticas - Carlos Vogt
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Editorial
A China e as tecnopolíticas
Por Carlos Vogt
10/04/2012

Minha experiência mais direta com a China restringe-se a duas visitas que fiz a Pequim em duas circunstâncias distintas.

A primeira dessas visitas deu-se em 1991 quando, reitor da Unicamp, integrei uma missão diplomática formada também por reitores de outras universidades, para tratar do acordo de cooperação da Capes, já vigente, visando ao intercâmbio acadêmico entre o Brasil e aquele país.

Era uma viagem programada para 15 dias, sendo a primeira semana em Pequim e o restante em outras cidades e regiões da China. Fiquei com o grupo só metade da viagem. Tive de regressar por causa de uma greve das universidades estaduais paulistas que se anunciava forte e que eu julgava necessário resolver no nível do Conselho de Reitores das Universidades do Estado de São Paulo (Cruesp) para evitar desgastes políticos e prejuízos acadêmicos para as instituições.

Como se tratava de missão oficial e como estava na China dos primeiros anos pós-revolução cultural, a autorização para interromper a minha participação na programação estabelecida e antecipar minha volta foi uma experiência que me fez vivenciar, mais de perto a realidade de um país altamente controlado, do ponto de vista social e político e extremamente hierarquizado nas funções do estado para com a regulação e administração desse controle.

Além dos trâmites junto à embaixada brasileira, tive de falar com um dos vários vice-ministros da pasta da educação e explicar-lhe a situação que me forçava a volta antecipada. Tudo isso num ritual de procedimentos que, de um lado, tornavam a experiência interessante e, de outro, esticavam a corda das dificuldades para minha liberação da missão que havia me trazido à China. Depois, enfim, de passar pela entrevista das poltronas, paralelas numa sala de audiências com várias outras poltronas acompanhando o quadrado formado pelas linhas das paredes, recebi, com a compreensão do vice-ministro, o meu passaporte que se encontrava, juntamente com os dos membros do grupo, com o pessoal que nos atendia e nos acompanhava nos nossos deslocamentos oficiais para cumprir a agenda protocolar de nossas visitações, encontros e audiências.

Ficamos hospedados num dos hotéis situados num dos grandes eixos das enormes avenidas da cidade que se estendiam na monotonia da arquitetura de inspiração realístico-soviética e que escondiam, logo atrás da linha reta do paralelismo que parecia infinito, aglomerados de residências exíguas, comprimidas e dispostas em torno de pátios, onde viviam famílias cuja renda familiar devia estar na margem dos 10 dólares, valor vigente do salário mínimo, na época. O Estado, teoricamente, provia a imensidão do resto: saúde, educação, moradia, segurança e bem-estar social.

A maior parte da população vestia-se ainda com o terninho clássico de Mao, usava bicicletas para a locomoção e o transporte de cargas, os ônibus e o metrô viviam abarrotados a qualquer hora do dia, num trânsito caótico, mas que parecia funcionar, a moeda era dupla, uma para dentro, outra para fora, o controle de natalidade era rigorosíssimo e o país parecia ensaiar os passos de uma nova situação em novos cenários de uma economia que se fazia pressentir mas que, ambígua e dissimuladamente, ainda se escondia, sem deixar de revelar-se em pequenos sinais, simbolicamente expressivos, contudo, como a presença da rede Mcdonald’s e da Pizza Hut, onde, em uma das lojas, fomos, cansados do gosto de gordura de pato de toda comida, parar uma noite com saudade do sabor fast-food de nossos hábitos ocidentais.

Pouco menos de uma década depois, em 1999, voltei a Pequim, dessa vez em viagem de passeio, acompanhado de minha mulher, depois de termos estado em Macau para o IV Congresso de Jornalismo de Língua Portuguesa. Fiz no Observatório da imprensa um relato dessa ida a Macau e das impressões que o ainda então território português despertara no professor apaixonado pela narrativa épica da viagem de Vasco da Gama contida na imortalidade dos versos de Luís de Camões em Os Lusíadas que por ali quase perdera o canto e também, a vida (“Aqui se fala português?”)

O que se via em Macau, prestes a ser reintegrado à China, já prenunciava o que veríamos em Pequim: grandes obras, grandes mudanças de cenário urbano e um cosmopolitismo neófito, mas seguro da escolha da nova profissão de fé.

Dessa vez, como as decisões eram pessoais, ao planejar a viagem, contratamos, através de uma agência de turismo, além dos bilhetes e do hotel, um serviço de carro e de um guia turístico para nos acompanhar, com a ideia de que, assim, poderíamos aumentar um pouquinho nossas chances de ter algum acesso, mesmo que pequeno e epidérmico a hábitos, costumes e valores dessa impressionante cultura fechada em segredos e aberta, milenarmente, em deslumbramentos.   

Acertamos na decisão e fomos sorteados com o guia que nos atendeu: uma moça falante fluente de espanhol que nunca saíra de seu país, mas que falava perfeitamente a língua que aprendera na universidade para o exercício competente de sua profissão.

Pudemos, assim, pouco que fosse, nos aproximar da malícia curiosa, da inteligência viva, do humor criativo e de uma propensão para dar um jeito nas coisas que nos fazia sentir familiarizados com traços culturais tão distantes e, ao mesmo tempo, tão evocativos de modos de ser que caracterizam nossa cultura. Impressões de viagem, ilusões de simpatia!?

Pode ser. O fato é nos sentimos mais “em casa” do que eu havia me sentido da primeira vez. Esse sentimento, é claro, talvez tenha também a ver com o fato de que Pequim era um canteiro de obras e uma cidade em transformação. Ruas, calçadas, prédios, lojas, restaurantes, tudo se modificava e dava bem a medida do processo que estava em curso para alterar a economia do país e transformá-la na segunda do mundo, desbancando o Japão e perseguindo tenazmente a liderança dos Estados Unidos.

Com uma tecnologia de governança capaz de dar nó em pingo d’água, de um lado pela concentração hierarquizada do poder político, que continua firme e, de outro, pelo jeito sagaz e pragmático de conciliar centralismo político com liberdade para o crescimento econômico, a China, a seu modo, não só avançou no crescimento de seu PIB, como também se constituiu no exemplo mais flagrante de uma nova realidade de gestão do capitalismo no mundo contemporâneo, aquela em que os agentes econômicos não tem interesse político, propriamente dito, pelo poder, mas sim um interesse técnico-pragmático pela eficiência e eficácia do modelo em produzir resultados de riqueza, crescimento e expansão.
Desse modo, poder-se-ia dizer que o modelo chinês instaura e inaugura um novo padrão de governança política baseado, além do fechamento e mesmo da clausura das decisões dos governantes, na comunicação constante e maciça que as novas tecnologias possibilitam como informação, como propaganda e como inclusão, ainda que virtual, num sistema cerrado e infenso a aberturas reais.

O que mais as tecnociências têm a ver com o desempenho emergente e hoje já espetacularmente emergido desse país líder nos Brics e maratonista no encalço dos EUA, é o que este número da ComCiência vem tentar elencar e buscar, junto com o leitor, compreender.