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Artigo
Paternidade e masculinidade
Por Paulo Roberto Ceccarelli
11/05/2015
O Dicionário Houaiss da língua portuguesa define masculinidade como "a quantidade de masculino ou de másculo". E "masculino" como "relativo ou pertencente aos animais machos; que têm masculinidade, virilidade, força". A paternidade é definida como a "qualidade ou condição de pai; vínculo sanguíneo que liga pai e filho(s)". Entretanto, tais definições não se sustentam quando comparadas a outras culturas.

Somos de tal forma impregnados pelo sistema de valores da cultura ocidental, que tomamos a nossa organização familiar por universal. Muitas vezes, nosso etnocentrismo reluta em admitir que outras culturas tenham outras formas de definir família, e possam conceber as relações de parentesco, de paternidade e de masculinidade de maneira totalmente diversa da nossa. Estudos antropológicos mostram que o significado atribuído aos conceitos de família, paternidade e de masculinidade não são únicos, mas, antes, construções arbitrárias em ressonância com o sistema de valores da cultura na qual o sujeito se encontra inserido. Como observa a antropóloga Françoise Héretier(1), "embora todo mundo acredite saber o que é uma família, é curioso constatar que, por mais vital, essencial e aparentemente universal que a instituição possa ser, não existe, como é também o caso para o casamento, uma definição rigorosa".

A família é um arranjo no qual a paternidade se organiza. Essa última, por sua vez, é um sistema que atribui a criança aos pais e, ao mesmo tempo, pais à criança. Os elementos de base desse sistema divergem segundo as culturas e as épocas. A História da Família(2) nos informa como cada sociedade, dentro do universo discursivo que lhe é próprio, atribui os lugares simbólicos de "pai" e "mãe" das formas mais variadas, deliberando quem são os pais e a quem os filhos devem ser confiados: são fenômenos históricos e contingentes. Embora a referência invariável seja a aliança matrimonial, cuja definição é imprecisa, os arranjos que dissociam o sexo dos progenitores de suas condições de pai e mãe, assim como a realidade biológica da concepção e da filiação, são múltiplos. Algumas sociedades conferem vários pais e mães à criança: a adequação "natural" genitor/pai e genitora/mãe não é norma, e as incidências no simbólico daí advindas são inúmeras.

Toda essa vasta gama de possibilidades sobre a paternidade pode ser igualmente observada em relação às representações de gênero relativas à masculinidade. Não existe uma definição única para o que seria masculino. Em algumas culturas, ser masculino é ser calmo, pacífico e evitar conflitos. Refletir sobre outras organizações simbólicas é questionar a solidez da nossa, assim como a paternidade e a masculinidade.

Na família ocidental "tradicional", homens e mulheres tinham lugares e funções bem definidos. O pai – cabeça da família – era o provedor que detinha um poder inquestionável. Os cuidados da casa, o necessário para o bem-estar de todos, eram garantidos pela rainha do lar. Neste arranjo, todos pareciam felizes e tudo concordava com uma ordem imutável. Unidos para sempre, "para o melhor e para o pior", pelos laços sagrados do matrimônio, as desavenças do casal não constituíam ameaças à estabilidade do lar. Sob o mesmo teto, pais e filhos perpetuavam uma ordem moral e valores sociais que pareciam inquestionáveis, quando não sagrados. As pessoas que escapavam a esse padrão – algumas ligadas à arte, boêmios ou simplesmente os/as que se separavam, fundando ou não uma outra união – eram vistas com desconfiança e considerados, por muitos, imorais ou portadores de algum problema psíquico. Dependendo do contexto social, essas pessoas eram excluídas da comunidade e, não raro, impedidas de participar em atividades coletivas, e até mesmo proibidas de entrarem em lugares santos. (Até hoje, muitos defendem esse modelo como o único capaz de sustentar a ordem social e de produzir subjetivações sadias).

Nesse modelo, que perdurou até os anos 50-60 do século XX, paternidade e masculinidade guardavam uma relação íntima, sobretudo para os casados, pois na união monogâmica e heterossexual, a paternidade confirmava a masculinidade do sujeito: "fazer filhos" era prova de potência, de virilidade. Criá-los, educá-los e sustentá-los eram provas de responsabilidade: o pai responsável. Quando o filho era problemático, a culpa era atribuída ao pai: "esse menino não teve um pai para educá-lo!" Para o homem, ser estéril, não produzir filhos, estava associado à impotência, logo, uma ameaça à virilidade. (Para as mulheres, a esterilidade era uma ameaça à feminilidade, pois ela não estava cumprindo a sua "vocação" de mãe).

De algumas décadas para cá, temos assistidos grandes mudanças na paisagem social: as uniões livres, as produções independentes, as famílias monoparentais, as homoafetivas, as uniões temporárias e tantos outros arranjos familiares, têm permitido uma ligação afetiva entre sujeitos nos quais a forma de exercício da paternidade e da masculinidade foram recriadas. Junta-se a isso as mudanças que afetam diretamente as condições de procriação, tais como: gestação por substituição (barriga de aluguel), embriões congelados, procriação artificial com doador de esperma anônimo e, muito mais breve do que se pensa, a clonagem.

Embora alguns desses modos de procriação e de filiação sempre tenham existido, eles eram marginais em relação aos padrões oficiais ou, simplesmente, ignorados. Entretanto, na medida em que os protagonistas desses arranjos passaram a exigir seus direitos de cidadãos provocando visibilidade, começaram a surgir questões que nos obrigam a repensar tanto a noção de família, como de paternidade e de masculinidade, posto que, muitas vezes, os homens se tornaram supérfluos (uma nova técnica desenvolvida na Austrália permite a fecundação por meio de uma célula, não sendo mais necessário o esperma, o que significa que uma mulher pode fecundar outra mulher). No caso da procriação artificial com esperma anônimo, muitos homens a evitam por terem dificuldade em acolher como filho uma criança gerada pelo esperma que não o seu, o que pode afetar diretamente a masculinidade e a paternidade para esses sujeitos.

As reflexões apresentadas evidenciam o quanto a noção de família, paternidade e masculinidade são profundamente dependentes do momento sócio-histórico e da cultura analisada. A transformação dos genitores em pais não é atrelada ao fato físico que dá lugar ao nascimento de uma criança. Ou seja, nascer da união de um homem com uma mulher não basta para ser filho, ou filha, daquele homem e daquela mulher. Ou ainda: colocar uma criança no mundo não transforma os genitores em pais. O nascimento (fato físico) tem que ser transformado em filiação (fato social e político), para que, inserida em uma organização simbólica (fato psíquico), a criança se constitua como sujeito.

Esses três fatos – físico, social e psíquico – guardam cada vez menos relações de dependência entre eles. As técnicas atuais de reprodução assistida desvincularam radicalmente as relações entre nascimento e genitores. O fato social, o reconhecimento de uma linhagem, de uma filiação, não tem, necessariamente, que ser exercido pelos genitores biológicos, como é o caso, por exemplo, de uma criança adotiva. Se no modelo de família tradicional os agentes promotores do fato psíquico são um homem e uma mulher, nos novos modelos de família os envolvidos nesse processo são variáveis.

Pai, mãe, paternidade e maternidade são funções sociais, cujos conteúdos se redefinem ao longo do tempo e da história. A contemporaneidade tem, sem dúvida, nos levado a uma profunda revisão desses conceitos. Um dos principais promotores dessas transformações foram os movimentos feministas. A partir do momento no qual mudanças socioeconômicas levaram a um reposicionamento do papel social das mulheres nas relações sociais e de produção, o patriarcado passou a perder terreno, o que afetou as representações culturais do masculino e da paternidade.

Embora seja com dificuldade que mudamos os valores e teorias que há muito vimos usando para ler o mundo, pois toda mudança gera angústia e requer um trabalho de luto, o que se observa na contemporaneidade é que, paulatinamente, vem ocorrendo um distanciamento cada vez mais pronunciado entre masculinidade e paternidade. Onde, e como, situar a masculinidade e a paternidade em um casal homoafetivo composto por duas mulheres? E quem é mais masculino, mais viril, ou mais pai, em um casal composto por dois homens?

Todas essas mudanças têm levado ao que alguns chamam de "crise" da masculinidade, responsável pelo declínio do poder paterno. Entretanto, se nos determos nas transformações sócio-econômico-culturais que produziram o homem moderno, constatamos que o que está, de fato, em crise é aquilo que desde tempos imemoriais tem sido aceito como única possibilidade de subjetivação: a referência ao pai. Isso significa que o declínio do poder paterno é apenas o reflexo de algo ainda mais profundo: o declínio do patriarcado.

Os próximos anos e as futuras gerações nos dirão como serão construídas as relações familiares, de masculinidade e de paternidade. O que sabemos é que não podemos nos aferrar a definições de papéis não mais sustentáveis na contemporaneidade.

Paulo Roberto Ceccarelli é doutor em psicopatologia fundamental e psicanálise pela Universidade de Paris VII; pós-doutor por Paris VII; professor da PUC-MG, UFPA e UFMG; pesquisador associado do Lipis (PUC-RJ) e diretor científico do Centro de Atenção à Saúde Mental – Cesame (www.cesamebh.com.br).

Notas

1 – Heretier, F. Dictionnaire de l'ethnologie et de l'anthropologie. Bonte, P., & Izard, M. (org.), Paris, PUF, 1991, p. 273.

2 – Burguiere, A. ; Klapisch-Zuber, C. ; Segalen, M. ; Zonabend, F. (org.). Histoire de la famille, Paris, Armand Colin, 1986.