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Editorial
O lixo e as últimas coisas
Por Carlos Vogt
10/02/2008

Thomas Malthus (1766-1834) estabeleceu a equação demo-econômica-religiosa da catástrofe do planeta: os meios de subsistência, nas condições mais favoráveis, só aumentam em progressão aritmética; a população, entretanto, aumenta em progressão geométrica. Quer dizer, enquanto a produção de alimentos cresce na escala 1>2>3>4>5>6..., a população humana cresce na escala 2>4>6>8>16>32>....Moral da história: é preciso controlar o crescimento da população na Terra. Ao menos, é o que tem se tentado fazer já há uns bons anos, com resultados, contudo, que não deixam dúvida quanto, de um lado, ao esforço das políticas públicas para fazê-lo e, de outro, quanto à eficácia de um crescimento, sob vários aspectos, até agora, incontrolável, embora contido, se é que essa palavra pode ser aplicada com propriedade, quando se considera o número crescente de vidas humanas no planeta, reforçado pelo tempo médio de existência, também crescente, mesmo em países ditos emergentes, como o Brasil.

Estamos a caminho de termos proximamente 7 bilhões de pessoas habitando o planeta, contra 2 bilhões no início do século XX, que já refletia um grande crescimento populacional em decorrência da revolução industrial e de suas conseqüências altamente urbanizadoras e de progressiva concentração metropolitana.

A população cresceu e com ela cresceu a fome de parcelas enormes da população, resguardados, contudo, vastos territórios de consumo constante e também crescente. À catástrofe da falta de alimentos e de bens de consumo juntou-se a catástrofe da sobra do consumido, o lixo da consumação.

A contribuição ativa do lixo produzido pelo consumo dessa enorme população para a poluição não menos ativa das condições e da qualidade da vida no planeta é impressionante: é lixo orgânico, lixo inorgânico, lixo reciclável, lixo reciclando, lixo ameaçador, lixo que é também meio de vida e modo de produção.

Em 22/12/07 o jornal O Globo on-line noticiava, às 15h9m que o presidente Lula, “em cerimônia organizada pelos Movimentos dos Catadores de Materiais Recicláveis e da População de Rua, pela Organização de Auxílio Fraterno e pela Rede Rua, recebeu agradecimentos pelo apoio que o governo tem dado aos grupos”.

A mesma notícia traz também a informação de que “o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) liberou R$ 21 milhões para os programas sociais mantidos pelas cooperativas de catadores”.

Lula, ainda segundo o jornal, em discurso aos catadores de material reciclável, em São Paulo, fez uma dura crítica contra pessoas que jogam lixo na rua:

“_ Tem gente que pensa que é melhor do que vocês,
mas jogam lixo na rua e não fazem reciclagem.
Se não existissem esses “sugismundos”, não precisaria de catador.”

A ser isso verdade para onde iria o lixo e como viveriam os que do lixo vivem? E se eles se organizam em cooperativas de outras associações de trabalho, e se um banco oficial de financiamento apóia as suas atividades é porque estão inscritos na lógica de produção dos serviços necessários ao funcionamento e à dinâmica de nossas relações sociais.

Quanto crescerá essa atividade e que grau de importância terá no processo de “limpeza” da sujeira que produzimos, ou quanto será um meio e um fim de sobrevivência inevitáveis e impositivos num mundo estruturalmente “lixado” e sucumbido ao lixo de seu próprio consumo, é uma questão a ser ainda dimensionada com mais clareza pelo andamento dos fatos e dos processos de produção, consumo, sobra, excesso, falta, escassez, abundância de poluição.

Paul Auster, no livro In the country of last things (No país das últimas coisas), desenha um cenário feito só de sobras, de resíduos da civilização e no qual a sobrevivência é absoluta, já que a vida, ela própria, ficou limitada ao que sobrou de si mesma, pura sobrevida em meio aos escombros políticos e à devastação social.

Aqui o lixo tem também um papel absoluto. Tudo é lixo: o que se “produz”, o que se troca, o que se transforma, o que se consome, o que se compra, o que se vende, o que para, o que movimenta, o que condena, o que salva, o que perde, o que redime.

O livro foi publicado, originalmente, em 1987, às vésperas, portanto, da queda do Muro de Berlim e nele há também a construção de uma obra semelhante, isolando, nesse caso, o mar do acesso da população por ventura desejosa de partir do mundo de escombros das últimas coisas.

O empreendimento, como outros, monumental, não é levado a termo, pela instabilidade política dos quadros dirigentes, sempre distantes, desconhecidos e incompetentes. Ainda assim, ninguém consegue sair da clausura da desolação.

Esse, aliás, é um tema recorrente na obra do autor americano e, no caso, a recorrência, além de ser de conteúdo, é também formal.

Em um romance mais recente de 2006 – Travels in the scriptorium |Viagens no escritório (de convento)|, o protagonista encontra-se, já velho, encerrado num quarto, sem poder sair e sem explicações para o confinamento. Várias personagens do romance de 1987 reaparecem nessa última obra, inclusive Anna Blume, a protagonista encerrada no país de ruínas por entre as quais vagueia na busca vã de seu irmão, jornalista para aí enviado, segundo os elos de sugestão entre os dois livros, pelo mesmo indivíduo para sempre condenado a viajar, confinado, pelas terras da imaginação e da leitura, no romance de 2006.

Auster é um autor experimentalista com uma capacidade tal de fabulação que sua obsessão com a obra dentro da obra, dentro da obra... não perde, contudo, a dobra do tempo e o fio de histórias tecendo e lendo o enredamento de quem abre os livros e neles mergulha pelo fascínio de suas construções.

Mas essa é uma outra história. A que nos interessa aqui, dado o nosso tema, é a que monta a alegoria de nosso apriosionamento ao sem fim dos resíduos que vamos produzindo como sobras, como rejeitos, dejetos orgânicos e inorgânicos da combustão da vida em situações-limite e dos limites da vida, queimando as fronteiras do equilíbrio das civilizações.

Em si o lixo é um problema prático, teórico, conceitual, simbólico, metodológico e existencial de dimensões gigantescas. É como um Pantagruel submetido a uma espécie de engenharia reversa. O que nele impressiona é a infinita capacidade de descomer e desperdiçar, fazer sobrar, exceder sem, contudo, interessar-se efetivamente por suprir o que falta, onde falta, quando falta, para quem falta e por que falta.

O lixo, que é muitas coisas que sobram, é também matéria prima que falta à construção do “país das últimas coisas”.