Desde o ano de 2004, quando iniciei as pesquisas sobre museus de história natural e ciências, devido, em especial, aos projetos de investigação desenvolvidos no Museu Dinâmico de Ciências de Campinas e no Museu de Zoologia1 da Universidade de São Paulo, este último coordenado pela professora Martha Marandino, nas diferentes visitas técnicas que fiz a museus europeus e norte-americanos, chamou-me a atenção a presença crescente e expressiva de nós, os humanos, apresentados em objetos expositivos.
As questões de investigação, e orientadoras das visitas, giravam ao redor de temas sobre biodiversidade, mas a “presença humana” sempre foi uma linha de fuga dos meus olhares por entre os demais seres vivos e as suas relações ecológicas. Essa condição atravessava transversalmente a análise do papel da educação na constituição de sentidos de diversidade biológica.
Visita após visita a esses espaços de educação e comunicação das ciências, não perdi a sensação da estranheza dos encontros com “o humano” em museus cuja centralidade são os discursos que contextualizam a vida no planeta Terra e que são apresentados em imagens, legendas, experimentos, vídeos e principalmente instalações.
Duas imagens, mesmo acontecimento? Na intenção de compor uma escrita deste artigo que também provoque sensações, proponho inicialmente que os leitores passeiem os olhares por entre duas fotografias. A primeira delas, datada de setembro de 2005, foi feita no Museu da Ciência em Barcelona, Espanha. Nesse museu, existem várias encenações da vida dos homens e mulheres “primitivos”, apresentando rituais cotidianos marcados por diferenças de gênero.
A segunda foi feita em abril de 2007 no Museu de História Natural de Nova Iorque, Estados Unidos2. A vitrine fotografada dispõe-se em uma ala do Museu sobre Evolução Humana, aberta ao público no início de 2007, e que contém variados arranjos entre imagens, objetos, informações escritas e dioramas à busca de encontrar os “elos perdidos” entre nós e nossos ancestrais primatas. O diálogo com a genética e biotecnologias é intenso em algumas instalações. À esquerda, Museu da Ciência. À direita, Museu de História Natural.
Cada uma das fotografias apresenta um dos objetos que compõem determinada seção dos museus dedicada à nossa história, e expressam a locomoção bípede como sendo um dos acontecimentos marcantes e característicos de nossa humanidade.
Ambas localizam-se em destaque e ao centro do conjunto dos demais artefatos expositivos, e têm como outra característica comum a busca da figuração do humano por traçados físicos, de vestimenta, de postura e por detalhes anátomo-morfológicos possíveis de serem criados com base em registros fossilíferos. Esta figuração do humano imprime na forma física, orgânica e tridimensional – corpo humano – fragmentos de uma versão de nossa história para a qual é fundamental a diferença com os demais primatas.
A terceira imagem apresentada neste artigo é quase um lugar comum, consolidado pelos manuais didáticos do ensino médio e superior, ao tratarem do evento histórico de nossos ancestrais conseguirem andar apoiados apenas nos dois pés. Está também no Museu da Ciência de Barcelona, e localiza-se ao lado da réplica do registro fóssil da marca da “pisada humana” no chão, instalação que também se compõe com a figura da fêmea de Australopithecus afarensis. Juntamente com a legenda “Esta fêmea de Australopithecus afarensis está brincando de pisar sobre as pegadas do macho que a precedeu. Por isso seu semblante é irônico“, permite que a história seja narrada em um contexto que busca relacionar realidade e verdade. A primeira prova de locomoção bípede. Pegadas descobertas em 1979 em Laetoli, Tanzânia. Crédito: Museu de la Ciència
Nesse museu, a composição narrativa aproxima-se das principais orientações para produção de todas exposições. Segundo os coordenadores da área científica e do setor educativo, em entrevista realizada em 2005, a produção que articula ciência e arte nesse museu objetiva proporcionar ao visitante algumas formas de como pensar cientificamente semelhantemente aos cientistas, apresentar o objeto real recusando-se à virtualidade e estimular a construção de explicações. A observação de objetos reais, da natureza, é considerada fundamental no projeto museográfico do Museu da Ciência, e é levado ao limite em algumas instalações como o bosque inundado - réplica miniatura da floresta tropical brasileira - ou na existência de animais vivos em terrários, aquários e de fragmentos de rochas oriundos de várias partes do mundo.
No Museu de História Natural de Nova Iorque, a vitrine com o casal - que juntos traçam o caminhar – comunica-se com uma série de outras instalações, no estilo de dioramas tridimensionais, em que são representadas situações da nossa história de humanos em distintas épocas, aproximando-se da atualidade, em que é discursivamente poderosa a condição de conquista do ambiente de forma colaborativa e em grupos. Não existem legendas explicativas ou esquemas complementares. As narrativas compõem-se na intensidade dos valores sócio-culturais liberais, pautados por exemplo, na competição, relação entre sobrevivência e força, trabalho em equipe. A constituição de sentidos homogêneos para família heterosexual também é reforçada nas montagens dessa seção sobre "Evolução Humana".
A revista desse Museu – Natural History - publicada em fevereiro de 2007, em várias páginas dedica-se à matéria de capa "Faces of human past". É, em suma, a apresentação de como foram realizados os estudos de paleoarte para a produção dos artefatos que estão na exposição; além disso, salienta como essa área, dentro dos estudos sobre primatologia, é importante para se aproximar ao máximo da visualização de como éramos em outras épocas. Ou seja, também nesse museu é intensa a articulação entre ciência e realidade, a partir da composição de narrativas imagéticas. As técnicas de reconstituição da face são especialmente enfatizadas nessa matéria, inclusive como uma importante condição para que se encontrem os elos perdidos da evolução humana, destacados em publicações do evolucionista Charles Darwin.
É possível reconhecer a recontextualização da locomoção bípede, considerada como um fato histórico, a partir de aspectos culturais específicos e distintos de ambos países, adensando as imagens pelas relações de gênero e apresentando-as em redes de poder cuja realidade é, no seu limite, efetuada nas identificações subjetivas da e do visitante. Essa explicação é passível de aceitação, se considerarmos que as instalações em ambos museus representam um fenômeno estudado por campos e áreas das ciências, e os signos das culturas compõem as suas explicações, juntamente com os conceitos científicos e os diversos aparatos técnicos, artísticos e estéticos que permitem a figuração do humano.
As relações de poder ou campo de força são expressões que afirmam o homem, sua existência, sua identidade. Com essa lembrança potente, revivemos no eterno retorno a questões fundamentais, essenciais, representacionais. Desta maneira, também trabalham as instalações de ambos os museus. Recorrendo a uma lembrança pulsante, transformada em nosso desejo desenfreado pelas memórias, por aquilo que perdemos, e que tem que ser resgatado, reatado, colocam-nos como portadores de história em camadas das culturas.
Diferenciações no mesmo
O trabalho com as imagens que venho realizando nas minhas pesquisas associa-se fortemente com as potencialidades de compreensão das imagens articuladas à idéia de realidade como atualização do virtual, desviando da referência dos estudos culturais à centralidade da representação e dos jogos de significação. Conserva-se, neste deslocamento que provoco, a relação entre Ser e Tempo; entretanto, enfatizando a duração e subtraindo a história. O que importa é pensar o desdobramento criador da multiplicidade virtual, da diferenciação. Nesse plano, o feixe de forças do humano que cada instalação é, pode ser pensado como um leque de tendências, como um campo problemático a partir do qual emerge uma solução, inventa-se uma forma, cria-se um acontecimento.
Na composição desse estilo de pensamento, são ricos e potentes os encontros com os escritos do filósofo francês Gilles Deleuze, e tenho também como interlocutores alguns de seus leitores-traidores.
Para estender esse pensamento com as imagens neste artigo, considerarei que, à semelhança de uma tela de pintura, os artefatos museográficos apresentados são obras artísticas. Sigo com essa idéia, auxiliado por um texto3 do pesquisador português, José Gil, produtor de conectores entre os conceitos filosóficos de Gilles Deleuze e o campo das artes e literatura. Para Gil, o que torna singular uma obra artística para além de sua composição, da organização de seus elementos e de seus “signos”, é uma certa qualidade de força que emana. Essa qualidade tem suas intensidades próprias, suas velocidades de cor e de profundidade. Ela possui, ao mesmo tempo, modulações infinitas de força, e uma singularidade que faz com que seja um nome. E isso acontece em pequenas percepções.
Nesse mesmo texto, José Gil trata de um exemplo que é primoroso para as imagens trabalhadas neste artigo. Escreve o autor: Tomemos um rosto e, sobre esse rosto, um sorriso. O sorriso se quer amistoso e, entretanto, percebemos nele um “não seio quê” que nos revela exatamente o contrário: ele esconde uma antipatia profunda, mesmo uma hostilidade.
Essa diferença de expressividade do sorriso é reconhecida graças às pequenas percepções: trata-se de um sorriso “imperceptivelmente” hipócrita. A percepção do sorriso nasce em uma perturbação, uma diferença interna que se dissolve em uma diferença em dois contextos: um, habitual, tornado virtual, o outro, novo, tornado atual – não tem forma visível, já que esta sombra de sorriso é apenas uma separação, uma diferença, um vazio. Porém, percebemos alguma coisa que se prende ao sorriso visível. José Gil a chama de o contorno do vazio.
Para ele, a comunicação precisa ser compreendida como mistura de vazios. Mistura de vazios das marcas pisadas em um chão, cujos indícios fossilíferos podem ser preenchidos por um sentimento de cinismo ou de companheirismo, de família, ação colaborativa ou de crueldade, desigualdade e vingança.
Esse pensamento, pautado na dessubstancialização da identidade, é o avesso dos efeitos da representação cultural. É uma possível ruptura com a Univocidade do Ser, ou seja, que o Ser é Voz, que ele se diz em um único e mesmo "sentido" de tudo aquilo acerca do qual ele se diz, como afirma Gilles Deleuze.
Embora os seres sempre sejam múltiplos e diferentes, disjuntos e divergentes, imagina-se Homem, por exemplo. A perda das identidades e de determinações, exigência da dessubstancialização e da desfiguração, é necessária para novas diferenciações, em um movimento de o mesmo ganhar a intensidade das multiplicidades, ou seja, de gerar no lugar do mesmo, pequenas percepções que fazem durar as diferenças.
Antonio Carlos Amorim é professor da Faculdade de Educação da Unicamp e bolsista Produtividade Nível 2 do CNPq. Email: acamorim@unicamp.br
Notas
1 Projeto “Educação não-formal em biologia: estudo sobre a práxis educativa em museus de ciências”, financiados pela Fapesp (processo 2003/01060-5)
2 Parte das atividades do projeto "Educação, ciências e cultura: territórios em fronteiras no Programa Biota-FAPESP" (Processo 2006/00752-9)
3 “As pequenas percepções” publicado em Razão nômade, livro organizado por Daniel Lins e publicado em 2005 pela Forense Universitária, Rio de Janeiro.
Para saber mais:
AMORIM, Antonio Carlos Rodrigues de. Nos limiares de pensar o mundo como representação. Pro posições. Campinas, v. 17, n.1 (49), jan./abr.2006. p. 177-194.
(http://mail.fae.unicamp.br/~proposicoes/edicoes/texto48.html)
MARANDINO, Martha. Transposição ou recontextualização? Sobre a produção de saberes na educação em museus de ciências. Revista Brasileira de Educação, Ago 2004, no.26, p.95-108.
(http://www.scielo.br/scielo.php/script_sci_serial/pid_1413-2478/lng_es/nrm_iso)
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