Na primeira metade do século XX, o Brasil recebia a visita de muitos estrangeiros que vinham realizar expedições científicas. Nesse período de institucionalização das ciências no país, a presença dos cientistas viajantes influenciava o estabelecimento de práticas científicas nas instituições nacionais por meio do intercâmbio de informações, materiais e pesquisas, provocando inclusive mudanças na legislação federal.
Preocupados com a presença desses estrangeiros e com a consequente coleta indiscriminada de artefatos etnológicos, artísticos e espécimes naturais, o governo federal passou a criar, a partir da década de 1930, inúmeros conselhos e grupos para proteger e conservar o patrimônio nacional. Nesse contexto foi criado o Conselho de Fiscalização das Expedições Artísticas e Científicas do Brasil – CFE (1933-1968), com o objetivo específico de fiscalizar e licenciar a atividade desses expedicionários. Passou-se a exigir também duplicatas dos materiais coletados para que fossem encaminhadas às instituições científicas nacionais, o que contribuiu significativamente para o crescimento de acervos em museus brasileiros, especialmente o Museu Nacional do Rio de Janeiro, principal receptor dos materiais interceptados pelo CFE.
Além de informações gerais sobre as expedições científicas e estrangeiros que visitaram o país nesse período, a documentação do CFE abriga também informações sobre as atividades de mulheres – cientistas, artistas e viajantes – que se profissionalizavam cada vez mais em diferentes áreas e campos disciplinares, mas foram pouco mencionadas pela historiografia das ciências, o que faz com que sua participação permaneça bastante invisibilizada. Essa falta de representatividade influencia até hoje a relação entre as mulheres e as ciências, pois elas encontram poucos exemplos em que possam se inspirar, e desconhecem as diversas formas pelas quais nossas antepassadas se engajaram nessas atividades, inclusive viajando para destinos distantes, com o objetivo de realizar estudos e pesquisas.
Em um levantamento realizado nessa documentação foram encontrados 38 nomes de mulheres que pediram autorização ao CFE para realizar algum tipo de viagem ou atividade exploratória no Brasil, entre 1933 e 1968 (Sombrio, 2014). Relatos dessas viajantes registrados em cartas, diários, relatórios ou outros documentos permitem conhecer seus trabalhos e evidenciam experiências que iam muito além da pesquisa científica. Conheciam pessoas, cidades e lugares, estabeleciam redes de relações, anotavam suas impressões sobre os costumes e a cultura do Brasil em meio aos dados da pesquisa, e esses relatos são capazes de revelar um amplo conjunto de informações sobre a época, as viagens, as ciências e as mulheres.
Dessas 38 mulheres, nem todas queriam, de fato, realizar expedições científicas. Entre os requerimentos de licença analisados, 11 estavam relacionados a pedidos para exportação de material artístico, por exemplo. Porém, os registros que revelam histórias de mulheres que viajaram pelo Brasil são muito interessantes. A maior parte dessas expedições eram da área de etnologia, ciência que estava em ascensão na primeira metade do século XX e contava com a presença de muitas mulheres (Corrêa, 2003). Mas havia também botânicas, zoólogas, geólogas, arqueólogas e astrônomas atuando em diversas expedições científicas no país.
As primeiras mulheres que vieram realizar trabalho de campo na América Latina encontraram muitas das conhecidas barreiras às mulheres profissionais, além dos desafios de lidar com ambientes e culturas desconhecidas. Elas tinham que enfrentar o senso comum que caracterizava os trópicos como um lugar inapropriado para as mulheres e cercado por uma aura romântica de lugar ainda “selvagem” não domesticado pela sociedade industrial moderna (Henson, 2000). Apesar disso, muitas se engajaram em viagens de exploração em países distantes dos seus próprios e, assim, transcenderam as expectativas sociais que as consideravam inadequadas para tal função. Mulheres viajantes e exploradoras fizeram, sim, parte da história das ciências.
O caso da herpetóloga Doris Cochran
Doris Cochran (1898-1968) foi uma dessas mulheres. Herpetóloga do Instituto Smithsonian (EUA), veio ao Brasil pela primeira vez em 1935 para estudar anfíbios anuros (sapos e rãs). Para organizar sua viagem, contou com a ajuda de outra cientista brasileira, Bertha Lutz (1894-1976), com quem já se correspondia há alguns anos. Foi Bertha Lutz quem arrumou um lugar para Doris Cochran se hospedar no Rio de Janeiro, um apartamento no mesmo prédio onde morava, e também a acompanhou nas expedições para coletar espécimes.
Doris Cochran permaneceu 8 meses no Brasil e escreveu um diário no qual registrou observações e dados da pesquisa. Ela inclusive tentou publicá-lo em forma de livro depois que voltou aos EUA, mas acabou não conseguindo fazer isso. Hoje o texto datilografado encontra-se no Arquivo Institucional do Smithsonian, junto a seu acervo pessoal.
A tradição de manter diários de expedições é antiga e usual entre cientistas. Nesses cadernos eles/elas frequentemente registravam, além de suas anotações de pesquisa, relatos pessoais sobre situações que viveram, observações e impressões gerais sobre os lugares visitados. Doris Cochran incluiu em seu diário detalhes sobre a viagem de navio até o Brasil, que durou 13 dias, o cotidiano que viveu embarcada e as observações que fez de “peixes voadores” durante o trajeto, para ajudar um colega do aquário de Nova Iorque interessado no assunto. Descreveu também minuciosamente as coletas que realizou, muitas na Floresta da Tijuca (RJ) com auxílio de Bertha Lutz e do assistente Joaquim Venâncio. Deslumbrava-se com a diversidade de anfíbios e plantas que encontrava. Escreveu notas sobre o carnaval naquela cidade que, com um olhar soberbo e conservador, considerou pouco divertido e “selvagem”. Descrevia a aparência das ruas, casas, pessoas e instituições científicas que conheceu no Rio de Janeiro e relatou também as experiências em outras cidades que visitou, como Niterói e Petrópolis, Belo Horizonte, Lagoa Santa, Ouro Preto, entre outras.
No caso de Doris Cochran, é possível perceber que a viagem ao Brasil era um desejo longamente cultivado e permeado pelo imaginário do encontro do/a pesquisador/a com uma natureza exótica e cheia de mistérios a serem revelados. Palavras de admiração sobre as paisagens naturais e espécimes, tão diferentes das que ela conhecia na América do Norte, são comuns em seu diário.
De todo o material que coletou deixou duplicatas em instituições brasileiras, entre elas o Instituto Oswaldo Cruz e o Museu Nacional do Rio de Janeiro. Não existe exemplar de sua licença do CFE no arquivo, provavelmente pelo fato de ter feito a expedição por intermédio de Bertha Lutz, que era funcionária do Museu Nacional e a acompanhou nas excursões. Juntas coletaram sementes, plantas, bulbos, mudas e pequenos animais em diversas regiões do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Doris Cochran levou muitos exemplares também a Washington-DC, ajudando a aumentar o acervo do Instituto Smithsonian.
Além dos textos científicos baseados em suas pesquisas de campo, Doris Cochran publicou também um grande número de artigos populares e livros sobre herpetologia, o mais importante sendo Living amphibians of the world (1961), que foi traduzido para seis línguas. Ela também concedia frequentemente entrevistas a rádios e falava publicamente sobre répteis e anfíbios em clubes nos EUA.
As muitas reportagens publicadas sobre Doris Cochran em jornais americanos apontam o reconhecimento que recebia da comunidade científica. Entre os títulos das notícias, encontramos representações significativas de sua imagem pública e de seu trabalho: “Frog Lady” (The American Magazine, august, 1956) “Snakes alive! Here’s woman who prefers em that way” (Minneapolis Morning Tribune, nov-2-1953), “Women scientist back with ton of specimens” (Washington Post, aug-15-1935).
Algumas delas falavam sobre a peculiaridade de sua situação, uma cientista mulher que preferia viajar aos trópicos para fazer pesquisa de campo a aprender as ciências domésticas, como a publicada pelo jornal Washington Post em 1935, citada acima. Esta reportagem informava que Doris Cochran era uma das poucas cientistas mulheres no Instituto Smithsonian, assim como uma das únicas que havia sido enviada em uma expedição. Ainda ironizavam dizendo que ela era também uma das poucas que não se importava em brincar com cobras e sapos.
Apesar das oportunidades desiguais entre homens e mulheres, algumas conseguiam profissionalizar-se e realizar viagens científicas, prática fundamental ao desenvolvimento da ciência moderna.
As expedições etnológicas de Wanda Hanke
Assim como Doris Cochran, a etnóloga austríaca Wanda Hanke também veio ao Brasil para realizar expedições científicas. Porém, contava com menos apoio institucional e financiava a si própria com a venda de coleções etnológicas que reunia sem a autorização do CFE. Apesar de dois pedidos enviados por ela, em 1933 e 1940, o órgão nunca lhe concedeu a licença para as pesquisas. Depois das primeiras expedições, que realizou entre 1934 e 1936, deixou de vez o continente europeu e se mudou para a América do Sul, onde permaneceu por 25 anos viajando e pesquisando até falecer em 1958, na cidade de Benjamin Constant (AM), durante uma de suas expedições.
Ela publicou artigos sobre os diferentes grupos indígenas que visitou e reuniu coleções etnológicas para museus da América do Sul e da Europa. No Brasil, ela colaborou principalmente com o Museu Paranaense, em Curitiba, onde há uma grande quantidade de fontes materiais e documentais sobre seus trabalhos.
Em 1934, Wanda Hanke permaneceu por um mês em Buenos Aires estudando espanhol, e depois seguiu ao norte do país para conhecer e estudar os índios Cainguá. De lá, foi para o Paraguai e trabalhou por um tempo como médica para financiar suas expedições entre os povos Guayaki. Era formada em medicina, direito e filosofia, e foi somente depois dos 40 anos de idade que passou a se dedicar aos estudos etnológicos de povos indígenas da América do Sul.
Chegou a obter a cidadania paraguaia em 1942, e trabalhou como pesquisadora no Parque Nacional de Trinidad, em Assunção, até 1947. Uma característica singular da experiência de Wanda Hanke é o fato de ter viajado sempre sozinha, sem o auxílio de nenhum assistente, familiar ou grupo de cientistas, que eram as situações mais comuns para as mulheres em expedições naquele período. Era uma coletora autônoma e organizava toda a sua pesquisa de campo sozinha, o que fez com que enfrentasse também muitas dificuldades, principalmente com a falta de recursos financeiros.
Em 1939, Hanke visitou o estado de Santa Catarina para pesquisar a cultura e os costumes dos índios Botocudos e, apesar de não ter a licença do CFE, foi ajudada por funcionários do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), órgão hoje já extinto, que permitiram que ela se hospedasse em um dos postos do instituto próximo à aldeia. Lá, Wanda Hanke coletou objetos e dados antropométricos, registrou a língua e transcreveu um mito dos Botocudos. Seguiu então para Curitiba, São Paulo e Rio de Janeiro tentando resolver as questões de sua licença, sem sucesso. Apesar desse problema, ela nunca deixou de fazer suas viagens, o que se comprova pela grande quantidade de peças etnológicas que reuniu, artigos que publicou, cartas que enviava a amigos e colaboradores e referências sobre seus trabalhos.
Sua extensa correspondência com o diretor do Museu Paranaense na época, o antropólogo Loureiro Fernandes, indica que em 1941 ela esteve também na Bolívia, trabalhando na região de Santa Cruz de La Sierra entre os índios Sirionó. Em 1942, esteve entre grupos de Kadiweús e Terenos do Mato Grosso, tendo inclusive publicado um artigo sobre eles na revista do museu (Hanke, 1942). Em 1947, deixou de vez o emprego no Paraguai e continuou circulando entre o Brasil e a Bolívia. Registros de suas atividades em 1949 indicam que ela estava na região dos rios Madeira e Solimões procurando por etnias desconhecidas e foi também nesse momento que entrou pela primeira vez no rio Amazonas, um sonho longamente cultivado.
Entre 1952 e 1958, Wanda Hanke passou a se corresponder e negociar coleções etnológicas com o historiador boliviano Eduardo Ocampo Moscoso, na época diretor do Departamento de Cultura da Universidad Mayor de San Simón de Cochabamba, na Bolívia, formalizando um acordo para enviar-lhes arcos, flechas, tecidos, canoas e outros objetos fabricados pelos povos que visitava. Foi também até a universidade proferir palestras sobre seus estudos e sobre a causa indigenista.
Nesses últimos anos as condições de suas viagens haviam mudado muito. Enfrentava cada vez mais dificuldades com a falta de recursos financeiros e sofria com doenças como artrite, que dificultavam suas caminhadas e a permanência entre os indígenas. As cartas que escreveu à Moscoso nos últimos anos retratam bem essa situação, no entanto, ela continuou realizando suas expedições e acabou sucumbindo à malária na cidade de Benjamin Constant (AM), em 1958. Wanda Hanke se sentia bem entre os indígenas da América do Sul e preferia viver desse modo a permanecer nas cidades europeias, onde não gostava de ficar (Liener, 2010). Apesar das condições difíceis que enfrentou, viveu os últimos 25 anos de sua vida circulando entre países, cidades e aldeias indígenas da América do Sul.
Wanda Hanke e Doris Cochran são dois exemplos das já não tão poucas mulheres que sabemos terem se aventurado em expedições científicas ao redor do mundo na primeira metade do século XX. Nesse mesmo período, mudanças em práticas sociais e científicas proporcionaram cada vez mais a inserção de mulheres nessas profissões, o que pode ser notado, por exemplo, no número significativo de mulheres viajando pelo Brasil para realizar trabalhos de pesquisa e coletas (Sombrio, 2014). A profissionalização das ciências, a emergência de novas instituições, a demanda por cada vez mais cientistas e a influência dos diversos movimentos feministas são alguns dos fatores que impulsionaram essas mudanças ocorridas no decorrer do século XX.
Mariana M. O. Sombrio é pós-doutoranda do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, Departamento de Museologia.
Referências
Corrêa, M. Antropólogas e antropologia, Editora UFMG: Belo Horizonte, 2003.
Liener, S. M. Wanda Hanke (1893 – 1958) - Eine österreichische ethnologin in südamerika. Diplomarbeit - Universität Wien: Áustria, 2010.
Hanke, W. “Cadivéns y Terenos”. In: Arquivos do Museu Paranaense, vol. II, pp. 79-87, 1942.
Henson, P. “A invasão da Arcádia: as cientistas no campo na América Latina, 1900-1950”. In: Cadernos Pagu (15), Campinas, pp. 165-197, 2000.
Sombrio, M. M. O. “Em busca pelo campo: ciências, coleções gênero e outras histórias sobre mulheres viajantes no Brasil em meados do século XX”. Tese de doutorado, DPCT (IG), Unicamp, Campinas, 2014.
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