REVISTA ELETRÔNICA DE JORNALISMO CIENTÍFICO


Editorial
Algumas referências-guia para se escrever sobre a vida própria, a dos outros, e a própria vida
Por Carlos Vogt
10/02/2014
1. Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia,
Não há nada mais simples.
Tem só duas datas — a da minha nascença e a da minha morte.
Entre uma e outra coisa todos os dias são meus.
(Fernando Pessoa em Poemas de Alberto Caeiro)


2. Descansem o meu leito solitário
Na floresta dos homens esquecida,
À sombra de uma cruz, e escrevam nela:
Foi poeta — sonhou — e amou na vida.
(Álvares de Azevedo, “Lembranças de morrer”)

3. Quero antes de morrer voltar aos meus belos anos, explicar meu inexplicável
coração.
(François René de Chateaubriand, Memórias de além-túmulo)

4. O tempo é a imitação móvel da eternidade.
(Platão, Timeo)

5. O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência. Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo. O que aqui está é, mal comparando, semelhante à pintura que se põe na barba e nos cabelos, e que apenas conserva o hábito externo, como se diz nas autópsias; o interno não aguenta tinta. Uma certidão que me desse vinte anos de idade poderia enganar os estranhos, como todos os documentos falsos, mas não a mim. Os amigos que me restam são de data recente; todos os antigos foram estudar a geologia dos campos-santos. Quanto às amigas, algumas datam de quinze anos, outras de menos, e quase todas crêem na mocidade. Duas ou três fariam crer nela aos outros, mas a língua que falam obriga muita vez a consultar os dicionários, e tal frequência é cansativa. Entretanto, vida diferente não quer dizer vida pior; é outra coisa. A certos respeitos, aquela vida antiga aparece-me despida de muitos encantos que lhe achei; mas é também exato que perdeu muito espinho que a fez molesta, e, de memória, conservo alguma recordação doce e feiticeira. Em verdade, pouco apareço e menos falo. Distrações raras. O mais do tempo é gasto em hortar, jardinar e ler; como bem e não durmo mal.
(Machado de Assis, Dom Casmurro)

6. João Gostoso era carregador de feira-livre e morava no morro
da Babilônia num barracão sem número
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou

Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas
E morreu afogado.
(Manuel Bandeira, “Poema tirado de uma notícia de jornal”)

7. Que a trombeta do julgamento final soe quando quiser, eu virei, este livro na mão, apresentar-me diante do soberano juiz. Direi altamente: “Eis o que fiz, o que pensei, o que fui. Digo o bem e o mal com a mesma franqueza. Nada calei de ruim, nada acrescentei de bom, e se me aconteceu empregar algum ornamento indiferente, não foi senão para preencher um vazio provocado por meu defeito de memória; supus verdadeiro o que sabia poder ter sido jamais o que sabia ser falso, mostrei-me tal como fui; desprezável e vil quando o fui; bom, generoso, sublime, quando me ocorreu sê-lo: revelei meu interior como você mesmo o viu. Ser eterno, reúna em torno de mim a inumerável multidão de meus semelhantes; que eles ouçam minhas confissões, que eles gemam com as minhas indignidades, que eles enrubesçam com as minhas misérias. Que cada um deles descubra o seu coração ao pé de seu trono com a mesma sinceridade; e depois que um só lhe diga, se ousar dizer: eu fui melhor que este homem aí.”
(Jean-Jacques Rousseau, Confissões)

8. De tudo ficou um pouco
Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
ficou um pouco


Ficou um pouco de luz
captada no chapéu.
Nos olhos do rufião
de ternura ficou um pouco
(muito pouco).


Pouco ficou deste pó
de que teu branco sapato
se cobriu. Ficaram poucas roupas,
poucos véus rotos
pouco, pouco, muito pouco.


Mas de tudo fica um pouco.
Da ponte bombardeada,
de duas folhas de grama,
do maço
─ vazio ─ de cigarros, ficou um pouco.


Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio um pouco
ficou, um pouco nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.
Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.

Se de tudo fica um pouco,
mas por que não ficaria
um pouco de mim? no trem
que leva ao norte, no barco,
nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres,
um pouco de mim algures?
na consoante?
no poço?
 
Um pouco fica oscilando
na embocadura dos rios
e os peixes não o evitam,
um pouco: não está nos livros.

De tudo fica um pouco.

Não muito: de uma torneira
pinga esta gota absurda,
meio sal e meio álcool,
salta esta perna de rã,
este vidro de relógio
partido em mil esperanças,
este pescoço de cisne,
este segredo infantil...
De tudo ficou um pouco:
de mim; de ti; de Abelardo.
Cabelo na minha manga,
de tudo ficou um pouco;
vento nas orelhas minhas,
simplório arroto, gemido
de víscera inconformada,

e minúsculos artefatos:
campânula, alvéolo, cápsula
de revólver... de aspirina.
De tudo ficou um pouco.


E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.


Mas de tudo, terrível, fica um pouco,
e sob as ondas ritmadas
e sob as nuvens e os ventos
e sob as pontes e sob os túneis
e sob as labaredas e sob o sarcasmo
e sob a gosma e sob o vômito
e sob o soluço, o cárcere, o esquecido
e sob os espetáculos e sob a morte escarlate
e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes
e sob tu mesmo e sob teus pés já duros
e sob os gonzos da família e da classe,
fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão. Às vezes um rato.

(Carlos Drummond de Andrade, “Resíduo”)


 9. O bastão, as moedas, o chaveiro,
dócil encerramento, as tardias
notas que não lerão os poucos dias
que me restam, as cartas e o tabuleiro,

um livro e em suas páginas desbotada
violeta, monumento de uma tarde
sem dúvida inolvidável e já olvidada
o rubro espelho ocidental em que arde

uma ilusória aurora. Quantas coisas,
lâminas, umbrais, atlas, copos, cravos,
nos servem como tácitos escravos,

cegos e estranhamente sigilosas!
Durarão para além de nosso olvido,
não saberão nunca que teremos ido.
(Jorge Luis Borges, “As coisas”, trad. de Carlos Vogt)


10. Este livro deve ser egotista. Trata de assuntos que são importantes para mim e é sobre mim porque só posso tratar desses assuntos na medida em que eles me dizem respeito. Mas não é um livro sobre meus feitos. Não tenho desejo de desnudar meu coração e ponho limites na intimidade com que desejo que o leitor entre comigo. Há assuntos em que gosto de manter minha privacidade. Ninguém pode contar toda a verdade sobre si mesmo. Não é só a vaidade que preveniu de dizer toda a verdade aqueles que tentaram revelar-se a si próprios ao mundo; é orientação de interesse...
(W. Somerset Maugham, Confissões)

11. Vivos se exibirão meus defeitos e todos me verão na minha ingenuidade física e moral, pelo menos enquanto permitir a conveniência. Se tivesse nascido entre essa gente de quem se diz viver ou ainda na doce liberdade das primitivas leis da natureza, asseguro-te que de bom grado me pintaria por inteiro e nu.

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Quantas vezes, e quiçá tolamente, não ampliei meu livro fazendo com que falasse de si mesmo? Tolice, mesmo porque devia ter-me lembrado do que digo dos outros: “todas essas olhadelas na própria obra atestam que o coração sente por ela muita ternura; e mesmo quando a maltratam e fingem desprezá-la, na realidade não fazem senão disfarçar o amor materno”. É o que diz Aristóteles acrescentando que a estima e o desdém de si mesmo se traduzem com o mesmo ar arrogante. Tenho contudo uma desculpa: cabe-me o direito à maior liberdade, porquanto é precisamente de mim mesmo e de meus livros que trato neste livro; mas não sei se aceitarão a desculpa.
(Michel de Montaigne, Ensaios)