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Entrevistas
Cristiano Monteiro
O apagão do Estado. É nessa tecla que o sociólogo Cristiano Fonseca Monteiro, do Pólo Universitário de Volta Redonda da Universidade Federal Fluminense (UFF), mais bate para falar da crise que aflige o setor de aviação brasileiro. Em sua opinião, a crise resulta de uma herança deixada pelas políticas neoliberais da década de 1990: flexibilização e crença na auto-regulação do mercado, somadas ao aumento de tributação e o parco investimento em infra-estrutura. Para ele, a fórmula simplista de que "o mercado funciona sozinho" não passa de um vôo cego. O motor de um bom funcionamento do mercado é o "Estado qualificado". Atuação do governo na crise, privatização e desmilitarização são ainda os tópicos desta instigante conversa.
por Susana Dias
10/02/2007 ComCiência - Atrasos. Cancelamentos. Consumidores descontentes. Desde o fim de outubro, depois do acidente com o vôo 1907 da Gol, que resultou na morte de 154 pessoas, o transporte aéreo deu sinais de funcionamento caótico. Pode-se dizer que a "crise na aviação" é um fato dado? Ou se trata de uma construção com a participação e interesse de diversos atores (do governo, das companhias aéreas, sindicatos e mídias)?

Cristiano Monteiro - Gostei da sua menção às mídias como "atores" dessa crise. Realmente, em alguns momentos houve uma certa sobrevalorização da crise. Atrasos por motivos meteorológicos ou problemas com aeronaves, assim como overbooking, acontecem com uma certa freqüência no mundo todo. Mas não é comum haver problemas na intensidade e na freqüência em que eles aconteceram no final de 2006 por aqui. Isto quer dizer que realmente houve uma crise, mas não podemos apenas dizer que ela é um "fato dado". Ela tem uma razão de ser, e na minha opinião, está relacionada à postura ambígua do governo diante do setor.

Ao longo de toda a década de 1990, o núcleo do governo (especialmente a área econômica) pressionou as autoridades aeronáuticas (o DAC e o antigo Ministério da Aeronáutica) e as empresas para flexibilizarem as regras (que eram muito rígidas até então) e aumentarem a concorrência, chegando a ameaçar com a abertura do mercado brasileiro às empresas estrangeiras. As autoridades aeronáuticas cederam pouco a pouco à pressão, em um jogo que eu chamei em minha tese de "resistência e adesão" à flexibilização, e o mercado foi ganhando um perfil mais competitivo. O problema é que as autoridades econômicas cobraram do mercado uma mudança de postura, mas foram conservadoras em relação ao papel do Estado. Acreditando na idéia de "mercado auto-regulado", que inspirou as políticas neoliberais na década de 1990, acharam que bastava que as empresas fossem mais competitivas e tudo se resolveria.

Enquanto isso, o mesmo governo aumentou de forma expressiva a carga tributária sobre as empresas. As reformas nos aeroportos brasileiros, que priorizaram a arquitetura dos terminais em detrimento da infra-estrutura de apoio ao vôo, por exemplo, foram todas feitas com um adicional de 50% cobrado das empresas justamente sobre as taxas de utilização dos serviços de infra-estrutura (pouso, permanência, comunicação). Assim, houve um aumento da competitividade do setor, do número de passageiros transportados e de vôos (o setor tem crescido muito acima do PIB, por exemplo), mas não houve uma contrapartida em termos de planejamento da infra-estrutura. Acompanhando as publicações especializadas, vemos muitas críticas às deficiências dessa infra-estrutura – que é de responsabilidade do Estado – apesar das taxas cobradas das empresas.

O "apagão aéreo" talvez seja uma ótima oportunidade para revermos de uma vez a posição que dominou as políticas governamentais pró-mercado na década de 1990, e que hoje vem sendo cada vez mais questionada: o mercado não funciona sozinho. A idéia de que basta retirar o Estado da economia para que ela cresça é uma fórmula muito simplista para problemas tão complexos. Não é a quantidade, mas a qualidade da relação entre Estado e mercado que importa. Assim, um Estado bem qualificado é essencial para o bom funcionamento do mercado.

Infelizmente, estamos aprendendo essa lição da pior maneira, já que tudo começou com um grave acidente. Mas a cultura aeronáutica pode ensinar algo aos nossos policy makers: em aviação, a investigação dos acidentes tem como objetivo principal entender as causas que levaram à tragédia, de forma a evitar que elas voltem a ocorrer. Uma “investigação” sobre os episódios recentes deve ter o mesmo objetivo, e na minha opinião, uma das conclusões a que deveremos chegar diz respeito à falta de iniciativas do próprio Estado, em função da falta de investimentos (apesar da alta tributação e das várias taxas) e de planejamento, para dar conta das mudanças que ele próprio forçou a acontecer.

ComCiência - O Senado e a Câmara dos Deputados instalaram comissões para discutir a crise nos aeroportos e propor medidas. No Natal e na passagem do ano novo o governo tomou algumas medidas para evitar novos problemas. Como o senhor avalia o funcionamento dessas comissões e as medidas tomadas pelo governo?

Monteiro - O Congresso tem sido palco de muitas discussões sobre a aviação. Foram criadas CPIs na década de 1950, a Constituinte discutiu a desmilitarização do setor e na década de 1990 houve várias audiências dedicadas ao tema. Em 2001, a comissão que discutiu a primeira versão do Projeto de Lei de criação da Anac fez um belíssimo trabalho que durou meses, com a participação de representantes do governo, das empresas e dos trabalhadores, no que talvez tenha sido uma das melhores oportunidades de se fazer uma discussão política e técnica sobre o setor, de caráter público e democrático. Infelizmente, na época, o governo retirou o projeto de tramitação e a criação da Anac só se deu cinco anos depois. De forma que, apesar da má fama, o Congresso tem sido um espaço importante de debate da aviação comercial.

A grande cobertura da mídia aos episódios recentes deu visibilidade aos problemas do setor mas gerou uma certa confusão, com muitas autoridades emitindo opiniões, nem sempre de forma coerente. Assim como os juristas são receosos com as propostas de endurecimento das leis que surgem em momentos de recrudescimento da violência, da mesma forma eu creio ser necessário um certo cuidado com as propostas que surgiram em meio ao apagão. A abertura do setor às empresas estrangeiras, por exemplo, sempre vem à tona, como se as empresas estrangeiras, só por sê-lo, fossem capazes de prestar melhores serviços.

A proibição pura e simples do overbooking é outro caso. Se as passagens aéreas fossem como as de ônibus – perdeu o horário, perdeu a passagem – poderia até ser o caso, mas isto não acontece. Os próprios deputados e autoridades governamentais que sugerem essas medidas muitas vezes contribuem para o problema: muitas vezes usam a passagem de tarifa cheia, que não paga multa se perder o vôo, e não comparecem (o chamado no-show). O overbooking é feito justamente para evitar que o vôo saia com lugares vazios, porque um certo número de passageiros com reserva não aparece na hora do vôo. Isso é feito a partir de estudos, enfim, não é aleatório, mas mesmo assim há casos de vôos em que “sobram” passageiros. Mas há multas e compensações previstas para isso, além do prejuízo à imagem da empresa. Talvez devêssemos cobrar mais fiscalização.

A proposta mais radical é a de desmilitarização do controle do espaço aéreo. Depois de abrir mão do modelo regulatório rígido, na década de 1990, e de perder o controle da aviação civil, sobrou aos militares o controle do espaço aéreo das rotas operadas pela aviação civil, sob o argumento da "segurança nacional" e da economia de recursos. Essa proposta pode e deve ser melhor discutida, mas não se pode perder de vista o patrimônio técnico dos militares. Por outro lado, é preciso considerar os inconvenientes da concepção que os militares têm do controle do espaço aéreo, como um problema de "segurança nacional", porque antes de tudo, é um problema de interesse público.

Simplesmente "aquartelar" os controladores para garantir o número adequado de profissionais no controle, como foi feito em determinado momento da crise, não é a melhor forma de garantir o funcionamento de um serviço tão crítico, que depende tanto da capacidade de concentração dos profissionais. Eles não são soldados numa guerra, são profissionais qualificados, com uma remuneração abaixo da responsabilidade que têm nas mão, e que precisariam de condições adequadas de trabalho, não de "ordens superiores" que devem ser cumpridas a qualquer custo.

ComCiência - Em meio à "crise da aviação" no país algumas companhias aéreas, políticos e representantes de sindicatos defenderam a privatização da Empresa Brasileira de Infra-Estrutura Aeroportuária (Infraero). O que implicaria a privatização desse setor para o controle do espaço aéreo? Já houve outras propostas similares na história brasileira? Em que elas resultaram? Como funcionam aeroportos privatizados em outros países?

Monteiro - Há poucos aeroportos importantes no Brasil que são privatizados – me vem à cabeça apenas o de Porto Seguro. A Infraero sofre muitas críticas, como todas as empresas de infra-estrutura no Brasil, públicas e privadas. Sua privatização esteve em pauta no auge do processo de liberalização da aviação, na segunda metade dos anos 1990. Mas é um sistema muito grande, com poucos aeroportos lucrativos e muitos que dão prejuízo, portanto pouco atraente à iniciativa privada. A operação dos aeroportos de menor movimento depende dos recursos obtidos com os mais movimentados. Esses fatores, além do fato de que as privatizações de certa forma perderam o charme nos últimos anos, mantiveram a Infraero como estatal.

No mundo houve casos muito bem-sucedidos de aeroportos privatizados. O aeroporto de Lima, por exemplo; também na Europa e na Ásia. Mas o problema permanece: o capital privado só tem interesse naqueles aeroportos mais movimentados. Como ficam os de menor intensidade de tráfego? Alguns autores sugerem uma maior flexibilização das tarifas aeroportuárias para permitir que aeroportos de menor intensidade possam oferecer taxas menores e atraiam mais vôos, o que aconteceu na Inglaterra. Essa, talvez, seja uma maneira de oferecer melhores condições para as empresas voando para regiões distantes. Mas é preciso lembrar que dificilmente uma empresa decidirá voar para Rio Branco ou Boa Vista para aproveitar tarifas aeroportuárias mais baixas, se não houver demanda que justifique o vôo.

Sendo a infra-estrutura estatal ou privatizada, o problema para mim continua o mesmo: a capacidade gerencial e de investimento por parte do Estado. Nós não demos a devida atenção a isso nos últimos anos. Enquanto o Brasil acreditava ingenuamente que bastava retirar o Estado da economia para que alcançássemos um novo padrão de desenvolvimento, outros países – mesmo desregulamentando, fazendo privatizações – continuaram investindo no setor público. Então, apenas privatizar a Infraero, sem um upgrade no setor público, pode não só não resolver os problemas antigos, como criar novos.

ComCiência - Quais as diferenças entre desmilitarização e privatização? Em sua opinião a desmilitarização é uma saída para a "crise na aviação"?

Monteiro - "Desmilitarizar", no caso em questão, significa retirar do controle militar e passar para o controle civil. Foi o que aconteceu com a criação da Anac, um órgão civil que substituiu o DAC (que pertencia ao Ministério da Aeronáutica) na fiscalização e regulação do setor. Mas esse tipo de atividade é de responsabilidade do Estado, não pode ser privatizada. O controle do espaço aéreo também pode ser desmilitarizado, mas dificilmente privatizado. Nós vemos problemas sérios acontecendo com a privatização de atividades muito mais simples como coleta de lixo, o que dizer do controle do espaço aéreo! No caso da Infraero, empresa que foi criada pelos militares da aeronáutica na década de 1970, também caberia falarmos de algum grau de “desmilitarização”, especialmente em relação a seus dirigentes. Mas as atividades desempenhadas pela empresa não são de natureza militar, seus funcionários são civis. Nesse caso, como se trata de uma empresa, aí sim pode-se falar também em privatização.

Eu, particularmente, sou favorável à desmilitarização do controle sobre as atividades civis de um modo geral, aí incluídos os vôos realizados por aeronaves civis. O controle militar sobre o transporte aéreo fez parte da doutrina militar do “poder aéreo unificado”, forjada ainda na década de 1940, que entendia que as operações aeronáuticas em geral eram questão de segurança nacional. Além disso, era um sistema “eficiente” pela economia que representava, ao evitar a duplicidade de esforços, ainda mais num país carente de recursos como o Brasil.

O que a sociologia das organizações nos ensina, por outro lado, é que a definição das soluções tidas como "eficientes" é muitas vezes uma questão política, que depende de negociação entre interesses conflitantes. O interesse da "segurança nacional" não pode se sobrepôr ao interesse público sobre o controle do espaço aéreo, que precisa estar aberto ao escrutínio público e ao questionamento por parte das autoridades civis e da população em geral. A lógica militar, como sabemos, não prima por esse tipo de abertura.