Não faltam boas notícias para colocar o ensino técnico e profissionalizante no Brasil em polvorosa: de acordo com o “Mapa do Trabalho Industrial 2012”, publicado pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) em setembro do ano passado, a indústria brasileira precisará até 2015 de 7,2 milhões de profissionais de nível técnico para atuar em diferentes ocupações – com 1,1 milhão das vagas destinadas para jovens que nunca trabalharam. O maior peso na distribuição desses milhões de novos postos de trabalho vai para a região Sudeste, com 57,6% do total (4,13 milhões, sendo que 2,53 milhões serão criados só no estado de São Paulo – 35% de todo o país). Em seguida vem a região Sul, com 20,9% da demanda (1,5 milhão), o Nordeste, com 11,9% do total (854,5 mil), o Centro-Oeste, com 5,5% (383,5 mil) e o Norte, com 4,1% (294,8 mil).
O documento do Senai aponta, ainda, que a demanda estimada para 2012-2015 é 24% maior que a registrada para o triênio anterior, 2008-2011. Entre os profissionais mais cotados estão técnicos em eletrônica, eletricidade e eletrotécnica, técnicos em controle de produção e técnicos em operação e monitoração de computadores. Para postos profissionais com cursos de duração menor que 200 horas, a maior demanda é por cozinheiros industriais, padeiros, confeiteiros e mecânicos de máquinas industriais e veículos automotores. Mas há mais postos que precisarão ser preenchidos – e, de acordo com o Senai, com salário inicial de R$ 2 mil.
Diante disso, o Brasil está se preparando para responder à demanda – mas ainda tem muito em que trabalhar. De acordo com o secretário de Educação Profissional e Tecnológica (Setec) do Ministério da Educação (MEC), Marco Antônio de Oliveira, há quase 1,4 milhão de jovens matriculados no ensino técnico no Brasil hoje, 8,9% a mais que no ano passado. “54% desse número concentra alunos da rede pública – federal, estadual e municipal –, enquanto a rede privada, em especial o Sistema S (Senai, Senac, Sesi e Sesc) responde pelos outros 46%”, calcula. Em 2011, o governo criou o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec), no intuito de alavancar esses números. “O objetivo do Pronatec é ampliar a oferta de vagas no ensino técnico para fazer frente a essa demanda de 7,2 milhões de profissionais que o Brasil precisará em três anos”, conta o secretário.
O representante do MEC no Senai e no Senac, Garabed Kenchian, explica que o programa atua em seis frentes diferentes e tem por objetivo atender diferentes públicos, desde jovens ingressantes no ensino médio a trabalhadores com vários anos de carreira. Entre as ações estão a expansão da rede federal de ensino (principalmente através da criação de mais institutos federais), o Fies Técnico e o Fies Empresa (que visam financiar cursos técnicos e de formação continuada a estudantes e trabalhadores a serem oferecidos pelo Sistema S e por escolas técnicas privadas), o Bolsa-Formação (que oferece cursos técnicos gratuitos a estudantes de ensino médio e formação inicial e continuada para quem já está no mercado de trabalho) e o Brasil Profissionalizado (parceria das redes estaduais com o governo federal que propõe fortalecer a formação técnica integrada ao ensino médio).
Segundo Oliveira, desde a criação do Pronatec, em outubro de 2011, foram geradas até agora 956.715 vagas apenas em cursos técnicos de nível médio e estão em funcionamento 440 unidades federais de ensino técnico, com planos de expansão para 562 até 2014. “Ainda é cedo para falar de impactos mensuráveis, pois estamos falando de cursos de duração média de 1,5 a 2 anos, no caso dos técnicos”, ressalta. Mas ele lembra que, por outro lado, pode-se afirmar que existe uma demanda crescente por formação, particularmente por parte da indústria. “Ela tem feito um esforço não só em identificar a demanda mas também em dimensioná-la, o que é muito importante porque não basta apenas criar vagas, é preciso que elas reflitam a demanda dos setores produtivos de maneira que possamos formar pessoas com condições de ocupar vagas disponíveis no mercado de trabalho – ou atender setores da sociedade que têm gargalos importantes”, afirma. “Isto não é apenas uma exigência do mercado de trabalho, mas do processo de inovação tecnológica no país”, destaca.
Para além dos gargalos na formação
Apesar de todos os números, porcentagens e iniciativas, dados do Sesi mostram que, dos 24 milhões de jovens entre 18 e 24 anos no Brasil hoje, apenas 3,4 milhões entram para a universidade, totalizando menos de 15% – número que ainda é maior que os 6,6% de matriculados em cursos técnicos de nível médio no país. De acordo com Oliveira, esse é um gargalo que pode ser explicado, em parte, pela desvalorização da formação profissional face à “cultura bacharelesca que temos no Brasil, em que muita gente prefere fazer cursos de nível superior, mas com qualidade duvidosa, ao invés de um bom curso técnico. Isso acontece, em parte, porque muitos empresários, mesmo identificando a necessidade de pessoas com formação técnica de nível médio, acabam por preferir profissionais com curso superior”, avalia o secretário do MEC.
O diretor de Educação Profissional e Tecnológica do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (Cefet-MG), James Goodwin Jr, vai na mesma direção e diz que há uma excessiva valorização dada à cultura do “bel-letrismo” em detrimento à “mão na massa”: “A nossa sociedade despreza o trabalho braçal porque é visto como algo para quem precisa. Quem conseguiu escapar dele é que subiu na vida”. E, segundo ele, isso vem de muito tempo. Goodwin Jr conta que, quando o ensino técnico foi criado no Brasil, “a ideia principal era tirar o pobre do caminho da perdição e não tanto valorizar o trabalhador”. No documento-base de Educação Técnica de Nível Médio Integrada ao Ensino Técnico do MEC, de 2007, consta que D. João VI criou o Colégio das Fábricas no Rio de Janeiro e, depois desta, vieram outras instituições, direcionadas principalmente a ensinar ofícios manuais a “crianças pobres, órfãos e abandonados”. Cem anos depois, sob o governo de Nilo Peçanha, surgem as Escolas de Aprendizes Artífices – antepassadas dos Cefets que conhecemos hoje –, cujo intuito também era formar “pobres e humildes”.
A educação brasileira passou por sucessivas reformas e, na década de 1960, a separação formal entre liceu e formação técnica deixou de existir, ao menos no papel. Na década de 1970, o então 2º grau assumiu caráter profissionalizante e obrigatório – na prática, restrito ao ensino público, principalmente estadual e federal, já que no âmbito privado a formação continuava sendo voltada para a entrada no ensino superior. Nos anos 1980, a obrigatoriedade perde força e com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1996, se torna um apêndice que complementa o ensino básico e superior. O atual esforço do governo é integrar a formação regular e a profissional.
Não surpreendentemente, “no inconsciente coletivo do brasileiro, a universidade tem um valor muito forte e as pessoas não percebem que um formado em curso técnico pode ter uma carreira melhor que um diplomado”, conta Kenchian. Tanto ele quanto Goodwin Jr dizem que, em outros países, como os Estados Unidos, o ensino técnico oferecido por community colleges é considerado como um curso pós-médio e, sendo assim, tem status de ensino superior. Para Goodwin Jr, “ter políticas em grande escala que valorizem essa formação é um passo. Precisamos parar de ver os inventores como ‘professor Pardal’ e sim como pessoas que trazem soluções para a nossa vida cotidiana”.
Mas isso não é tudo
Para o pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Marcelo Manzano, políticas públicas são importantes na ampliação do ensino técnico e é preciso que ele se expanda – mas é preciso evitar a dicotomização entre ensino superior e técnico. “Faltam profissionais em ambos os níveis no Brasil”, sublinha. “Precisamos tanto de engenheiros quanto de advogados”, mas, citando um exemplo, Manzano conta que “no ano passado, pela primeira vez desde os últimos 30 ou 40 anos, o Brasil registrou um número maior de alunos em cursos de engenharia do que em direito, segundo o MEC”.
“O nosso desenvolvimento está comprometido por causa de um apagão de mão de obra? Não”, enfatiza. Para ele, falta de mão de obra qualificada nunca representou uma ameaça real ao crescimento econômico. “Em lugar nenhum do mundo um país deixou de crescer e de se desenvolver por falta de mão de obra qualificada. A própria dinâmica industrial acaba formando soluções para isso, formando, ensinando, criando processos internos dentro das empresas, das obras”, ressalta. Para ele, a ideia de apagão é muito enfatizada principalmente pelo segmento empresarial, “pois através dela se consegue alguns benefícios e reduções de custos laborais”. Ele exemplifica que “durante os anos 1950, 1960 e 1970, em que o Brasil cresceu muito, quando não tínhamos muita mão de obra formada, a própria indústria fez surgir ou ela mesma preparou esses quadros (em resposta à demanda)”.
Mas isso não significa que o governo tenha que deixar de ampliar a oferta. Manzano diz que “na Alemanha, 1/3 da população economicamente ativa está vinculado ao ensino técnico. No Brasil temos entre 3 e 5%. É muito pouco”. No entanto, ele afirma que isso não representa um entrave para a economia. “Ainda mais porque é muito difícil prever qual atividade será necessária no futuro”, por maior que seja o esforço do governo e das indústrias em traçar mapas conjunturais. “Podemos ter a noção de que demanda haverá no futuro, mas muita gente não vai se matricular nesses cursos, já que prefere formação para uma área em que haja vagas para preenchimento imediato”, diz, lembrando a experiência que teve quando trabalhava com qualificação profissional na prefeitura de Campinas (SP). Isso gera um desajuste conjuntural que, para o pesquisador, é normal e só se percebe quando a economia está crescendo. No entanto, “não há capitalismo que não tenha passado por isso. Mas isso não significa que não tenhamos que investir em qualificação, e o governo deu um passo importante com o Pronatec”, conclui.
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