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Reportagem
Ciência e guerra: era uma vez a internet
Por Gabrielle Adabo
10/05/2014

O mundo está em guerra, dividido em duas grandes facções coordenadas, cada uma, por uma nação. A cada dia uma nova arma é criada e a ameaça de um conflito direto se torna mais iminente. Os limites da Terra são ultrapassados e a disputa agora toma as dimensões do espaço. Os países investem na ciência e na tecnologia e surgem invenções para permitir a defesa das informações. Esse bem que poderia ser o enredo de uma ficção científica, mas é um relato que faz parte da história do surgimento de muitas das tecnologias que nos cercam, como o próprio mecanismo que torna possível que este texto chegue até o leitor: a internet.

A origem do sistema que conecta em rede os computadores de todo o mundo remete ao período que começou logo depois do fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945. A Guerra Fria, então estabelecida entre os Estados Unidos e a União Soviética, levou ao desenvolvimento de tecnologias nas corridas armamentista e espacial. Em 1957, a União Soviética lançou os satélites Sputnik 1 e 2 e, como resposta, o Departamento de Defesa dos Estados Unidos criou a ARPA (Advanced Research Projects Agency), agência por meio da qual o governo norte-americano incentivou a pesquisa em tecnologias de computadores nas universidades.

“Essa Agência, em convênio com algumas universidades escolhidas a dedo, investiu milhões de dólares em diversos projetos, entre os quais estava a criação de uma rede que pudesse conectar os diferentes computadores, distantes e isolados entre si, das universidades patrocinadas, de maneira a compartilhar e otimizar o uso desses caríssimos recursos, além de desenvolver conhecimento nessa área”, explica o arquiteto de tecnologia da informação Marcelo Sávio, professor adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), que traçou, em sua dissertação de mestrado, a história do surgimento da internet e a trajetória da rede no Brasil . “Essa rede, que veio a ser chamada de Arpanet, entrou em operação em outubro de 1969, expandiu-se ao longo dos anos 1970 e desvinculou-se dos militares na década de 1980, quando integrou-se com outras redes acadêmicas existentes (NSFNET, CSNET etc.) dando origem ao que hoje chamamos de internet”, continua.

De acordo com os historiadores Asa Briggs e Peter Burke, no livro Uma história social da mídia, a visão do Pentágono era que a Arpanet seria um importante mecanismo de defesa: ainda que os computadores ou mesmo a infraestrutura de comunicação fossem destruídos em um ataque nuclear do rival soviético, a rede ainda seria mantida. A visão da universidade, segundo esses autores, no entanto, era de uma rede de acesso livre a pesquisadores e professores, por meio da qual eles poderiam se comunicar. A rede criada quebrava as informações enviadas em partes que eram codificadas e unidas novamente no computador receptor. Um dos principais usos da Arpanet era a troca de mensagens. Briggs e Burke contam que as primeiras convenções de símbolos na internet começaram nessa troca: o @ já aparecia nos endereços de e-mail. Em 1986, surgem as abreviações “com” para comércio, “mil” para forças armadas e “edu” para educação.

Do militar ao civil

A relação entre ciência e militarismo esteve presente não apenas no nascimento da internet, mas desde a criação da informática. O período das duas grandes guerras, paradoxalmente, foi especialmente frutífero para o desenvolvimento de tecnologias que mais tarde ganhariam uma importância social gigantesca e se tornariam indispensáveis na vida atual. A historiadora Aracele Torres, ativista do software livre, defende em sua dissertação de mestrado sobre o projeto GNU que é necessário conhecer o contexto histórico no qual essas ferramentas de comunicação foram concebidas, para desnaturalizá-las e compreender que elas surgiram como tecnologias de guerra. Os computadores nasceram com a reputação de máquinas ligadas aos conflitos e esse estigma só iria se transformar, segundo ela, na década de 1970 nos Estados Unidos, graças à atuação de grupos dos quais faziam parte hackers, acadêmicos e hippies, em São Francisco, na Califórnia.

“ Todas as tecnologias, quando nascem, são caracterizadas por um uso inicial específico, mas esse uso pode variar (e geralmente varia) com o passar do tempo. Foi isso que aconteceu com o computador e a internet, uma ressignificação desse uso”, explica Torres. O computador, segundo ela, foi criado como uma máquina de calcular para uso militar que, mais tarde, passou a ser vendida a civis e usada por empresas para o processamento de informações. A produção das máquinas pelos próprios usuários levou ao surgimento dos primeiros computadores pessoais na década de 1970.

“Essa trajetória do computador do ambiente militar até o ambiente doméstico demonstra como as ferramentas tecnológicas podem variar de função de acordo com as nossas demandas sociais. Com a internet, ocorreu o mesmo. Inicialmente, ela era usada apenas para a comunicação entre cientistas; depois, com o passar do tempo, os usuários foram atribuindo a ela outras novas funções, uma rede de pesquisa se tornou uma rede social que liga pessoas do mundo inteiro e onde é possível comprar, jogar, namorar, estudar, fazer política etc.”, afirma a historiadora.

Consolidação e formatação

A partir dos anos 1980, a internet se consolida e ganha mecanismos que foram essenciais para formatar a rede como a conhecemos hoje. Mas já na década de 1970, havia surgido um conjunto de protocolos chamado de TCP/IP (Transmission Control Protocol/Internet Protocol) que hoje é responsável por permitir a comunicação entre os diferentes tipos de computadores e a transmissão de dados entre eles. O TCP garante que as informações cheguem inteiras do emissor ao receptor. Já o IP é a identificação do computador, um endereço único de cada máquina para que ela possa enviar e receber informações.

De acordo com Marcelo Sávio, da Uerj, o TCP/IP surgiu com o objetivo de interconectar a Arpanet com outras duas redes mantidas pela Arpa (a PRNET, via rádio, e a Satnet, rede por satélite) e substituiu o protocolo NCP (Network Control Protocol), o primeiro protocolo de comunicações da Arpanet, utilizado até 1983. O pesquisador explica que o IP só se tornou um protocolo independente no final da década de 1970; no início, as funções do IP estavam embutidas no TCP. No início da década de 1990, o TCP/IP estava disponível para praticamente todos os computadores do mercado norte-americano.

Um passo fundamental, de acordo com Briggs e Burke, para transformar um sistema de comunicação de elite em comunicação de massa e em uma rede de abrangência mundial, aconteceu em 1989, com a criação da world wide web pelo físico e então consultor de informática de um dos projetos do Cern (chamado Conselho Europeu para Pesquisa Nuclear à época e, hoje, Organização Europeia para Pesquisa Nuclear) Timothy Berners-Lee.

De acordo com a história descrita por Marcelo Sávio em sua dissertação de mestrado, o consultor do Cern passou a desenvolver, para facilitar seu trabalho, sistemas que permitissem o acesso, por uma rede de computadores, de dados do laboratório no qual atuava e, para isso, usou o hipertexto, uma tecnologia que permitia que dentro dos documentos houvesse referências para outros documentos, os hiperlinks. O principal desafio de Berners-Lee era desenvolver uma ferramenta de hipertexto que funcionasse para a internet. Com o auxílio do engenheiro de computação belga Robert Cailliau, ele obteve o apoio do Cern ao projeto e codificou a world wide web. Entre os principais elementos da web que Berners-Lee desenvolveu estavam a linguagem HTML (Hypertex Markup Language), que foi baseada em uma linguagem para marcação de documentos, a SGML (Standard Generalized Markup Language), e o protocolo HTTP (Hypertex Transfer Protocol).

A internet para os brasileiros

O primeiro acesso à internet no Brasil ocorreu em 1991, através da rede ANSP (Academic Network at São Paulo) da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp)”, conta Marcelo Sávio. A implantação da comunicação de dados no país, no entanto, de acordo com o pesquisador, começou como um assunto de Estado na década de 1980, ainda durante o regime militar, e estava ligada à ampliação da competitividade da indústria nacional e, inclusive, a questões estratégico-militares. “ A indústria nacional alcançaria um maior desenvolvimento tecnológico se estivesse em sintonia com o que estava acontecendo nos países desenvolvidos e, uma vez que o Brasil era governado por militares, as questões geopolíticas decorrentes das telecomunicações eram estratégicas para a autonomia e a segurança nacionais”, explica.

O controle da comunicação de dados era, então, realizado pelo Ministério das Comunicações e pela Secretaria Especial de Informática (SEI). “A SEI possuía comissão especial para analisar o panorama da teleinformática nacional e orientar a si e também ao Ministério das Comunicações no direcionamento de uma política para o desenvolvimento do setor, que deveria, obviamente, estar integrada no quadro mais geral da Política Nacional de Informática”, completa Marcelo Sávio. Outra de suas funções era autorizar as comunicações de dados do Brasil com o exterior. A SEI havia sido criada em 1984, durante o governo do general Figueiredo, baseada em resultados de uma investigação do Serviço Nacional de Informações (SNI).

O monopólio da instalação e exploração dos serviços de comunicação de dados foi concedido pelo Ministério das Comunicações à Empresa Brasileira de Telecomunicações (Embratel). As empresas, também estatais, operadoras do sistema Telebrás ficaram com serviços de valor agregado. “Esses serviços (Transdata, Renpac, Cirandão, Videotexto), entretanto, tiveram pouca penetração no meio acadêmico e, até o final dos anos 1980, a comunidade acadêmica brasileira ainda estava, do ponto de vista da comunicação de dados, totalmente desintegrada entre si e com o exterior”, explica Marcelo Sávio.

Por volta da metade dos anos 1980, o Brasil ainda não possuía nenhuma rede nacional ou regional. “Havia mais de cinquenta redes acadêmicas em mais de trinta países e no Brasil não havia nada”, diz o pesquisador da Uerj. A ANSP, criada em 1988, foi a primeira rede acadêmica do país. “A conexão inicial era somente com a Bitnet, através de um circuito de 4800 bps (bits por segundo); depois, veio o tráfego Hepnet. Em 1991, as pressões pelo uso da internet, resultaram no primeiro acesso acadêmico à internet no Brasil, realizado em fevereiro de 1991, quando a Fapesp começou a transportar, na sua rede ANSP, o tráfego TCP/IP (além do tráfego Hepnet e Bitnet) e a ter acesso à rede Energy Sciences Network (Esnet), que estava ligada à NSFNET, a qual, por sua vez, fazia parte da internet”, relata. A conectividade foi ampliada e estendida para outras universidades brasileiras e incentivou a criação de redes internas.

“A organização do acesso à internet no Brasil, até o final de 1991, era eminentemente cooperativa, na qual cada instituição participante custeava sua ligação para São Paulo. A solução definitiva, que proporcionaria uma redução nos custos de conexão das universidades brasileiras e uma maior distribuição e otimização no uso dos recursos de rede remetia à implantação da RNP (Rede Nacional de Pesquisa)”, diz Marcelo Sávio. O projeto da RNP foi anunciado em setembro de 1989, durante o Congresso de Informática da Sociedade de Usuários de Informática e Telecomunicações (Sucesu), mas enfrentou diversos problemas até ser implementada em 1992, como a discussão sobre a utilização do TCP/IP, protocolo que era vetado pelo governo por não seguir o modelo OSI então adotado para protocolos de comunicação.

A década de 1990 marcou a expansão da internet no país por meio de sua comercialização. Marcelo Sávio lembra que, no final de 1994, o governo federal anunciou a intenção de promover o desenvolvimento da internet no país e deixou a cargo da Embratel a criação da estrutura necessária para sua exploração. Logo em seguida, iniciou-se o serviço de internet via linha discada em caráter experimental, com cinco mil usuários, e em maio de 1995 o serviço passou a ser oferecido comercialmente de forma definitiva.

“Em relação à organização da comercialização da internet, o feito mais relevante foi quando, em junho de 1995, o governo federal, na pessoa do (hoje falecido) ministro das Comunicações Sérgio Motta, anunciou que a internet era um serviço de valor adicionado onde não haveria monopólio e que as empresas de telecomunicações (na época ainda estatais) não poderiam prover acesso aos usuários finais. Em seguida, uma portaria interministerial (Ministério da Ciência e Tecnologia e Ministério das Comunicações) criou o Comitê Gestor da Internet, formado por representantes do governo, operadoras de backbones, provedores de acesso, comunidade acadêmica e representante dos usuários”, afirma Marcelo Sávio.