Na proposta de Plano Nacional de
Educação (PNE) enviada pelo governo ao Congresso Nacional, em dezembro de 2010, a meta número 3 versa
sobre a universalização, até 2016, do atendimento escolar para toda a população
de 15 a
17 anos. Essa meta, provavelmente, visa contemplar, no ensino médio, a determinação
da emenda constitucional nº 59/2009, de tornar, até 2016, a educação básica
obrigatória àqueles que tenham de 4
a 17 anos. Essa meta, juntamente com as
demais alterações constitucionais, representa, certamente, conquistas, mas com
limitações². Por
prescrever o atendimento em termos de faixa etária e não de etapas da educação
básica, estudantes com defasagem idade-série ou que evadam da escola em algum
momento, podem atingir a idade limite sem concluir a educação básica. Portanto,
a medida pode ser inócua para uma população com trajetória escolar irregular,
que tende a compor o grupo atendido pela educação de jovens e adultos (EJA). Mesmo
fomentando programas de EJA para os jovens nessa idade que estejam fora da
escola, uma vez ultrapassada, a essa faixa etária, a oferta educativa fica
condicionada exclusivamente à demanda da população. Sem a obrigatoriedade, não
existe um dispositivo de pressão e de constrangimento do Estado.
A ampliação da abrangência dos
programas suplementares para todas as etapas da educação básica visaria
assegurar as condições de permanência na escola e, assim, se diminuir a evasão
e a distorção idade-série, induzindo a que a população complete o ensino médio
até os 17 anos. Cumprir-se-ia, assim, a pretensão seguinte dessa mesma meta, de
se elevar, até 2020, a
taxa líquida de matrículas³ no
ensino médio para 85% na referida faixa etária. Propostas de emenda ao plano já
demonstram ser essa meta insuficiente, devendo-se retificá-la para 70% em 2016
e 90% em 2020.
A educação profissional e programas de diversificação
curricular são estratégias previstas contra a evasão. O que se quer é tornar o
ensino médio interessante aos jovens, atendendo aos seus interesses
individuais. Mas permanece a questão de como educar os interesses desses
jovens. Afinal, a formação científica e cultural não deveria lhes interessar
profundamente? A proposta de plano sugere, ainda, que a baixa matrícula no
ensino médio na faixa etária considerada adequada decorre, dentre outros
aspectos, da defasagem gerada no ensino fundamental. É virtuosa a valorização
de programas e ações de correção de fluxo nessa etapa, por meio do
acompanhamento individualizado do estudante com rendimento escolar defasado e
pela adoção de práticas como aulas de reforço, estudos de recuperação e
progressão parcial. Trata-se, entretanto, de medidas denatureza exclusivamente
pedagógica, difíceis de serem implantadas com êxito frente às condições
inadequadas das escolas dos sistemas públicos de ensino, e frente à falta e às
condições de trabalho de professores.
Sendo essas questões resultantes
da desigualdade socioeconômica de nossa sociedade e do insuficiente financiamento
da educação, somos obrigados, novamente, a nos remeter à necessidade de
ampliação do investimento na educação para, pelo menos, 10% do PIB, assim como
para o problema estrutural da distribuição de renda. As políticas educacionais
têm suas finalidades e estratégias específicas, mas não são independentes de
políticas macroestruturais que implicam o modelo de sociedade e de desenvolvimento
socioeconômico.
Outra estratégia é consolidar o
Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) para acesso ao ensino superior. Não
negligenciando o acesso a esse nível da educação como um direito de todos e a
necessidade de políticas que o garantam, discussões sobre a natureza e o
propósito do ensino médio superam a função meramente propedêutica desse ensino.
Há que se registrar, ainda, que a possibilidade de o estudante com idade
superior a 18 anos ter a certificação de conclusão do ensino médio mediante o
êxito no Enem reitera a lógica dos exames de suplência como meio de elevar a
escolaridade de jovens e adultos a despeito do acesso e da permanência na
escola. Se, por um lado, o reconhecimento de conhecimentos construídos pelos
sujeitos por diversos caminhos é legítimo, por outro lado, isso não pode
significar uma estratégia de compensar a ausência de políticas de acesso e permanência
dessa população na escola.
A proposta do plano prevê, ainda,
o fomento da expansão das matrículas de ensino médio integrado à educação
profissional, porém, sem a referência às redes públicas de ensino. Essa
omissão, vista em conjunto com outras estratégias, levanta suspeitas sobre o
uso de recursos públicos para financiar vagas de educação profissional em
instituições privadas. Tal proposta já se configurou como fato com o lançamento
do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico (Pronatec), prevendo “soluções”
para ampliar o acesso da população à educação profissional, aos moldes do que
foi feito para o ensino superior, a saber: ampliação do acesso ao ensino
superior via Financiamento Estudantil (Fies) e Programa Universidade para Todos
(Prouni).
A vinculação com a atividade
profissional parece adquirir mesmo importância nesse Plano, pois a expansão do
estágio para estudantes da educação profissional técnica de nível médio e do
ensino médio, “visando ao aprendizado de competências próprias da atividade
profissional”, é também prescrita como uma estratégia para a elevação da taxa
líquida de matrículas.
Em síntese, a mensagem é que o
ensino médio que interessa aos estudantes é aquele que prepara para o mercado
de trabalho. Se não negamos que a produção da existência por meio do trabalho
na sociedade capitalista impõe as contradições da inserção no mercado de
trabalho, isso não é o mesmo que reduzir a finalidade do ensino médio a tal
ponto. A concepção de ensino médio integrado que defendemos aponta em outra
direção, pois não tem o mercado de trabalho como fim – ainda que a formação de
qualidade proporcione o enfrentamento dessa realidade – mas sim o
desenvolvimento intelectual e ético-político de jovens, pela mediação do
conhecimento científico, da formação cultural e da compreensão do sentido dos
sentidos e finalidades do trabalho.
Em razão do exposto, levantamos
alterações na meta número 3 que contribuiriam para colocar o Plano em condições
de enfrentar o problema do atendimento obrigatório, universal e de qualidade no
ensino médio à população brasileira:
1– Reiterar a meta de se
universalizar, até 2016, o atendimento escolar para toda a população de 15 a17 anos e, até 2020, ao
conjunto da população brasileira, independentemente da idade, elevando-se a
taxa líquida de matrículas no ensino médio na faixa etária de 15 a 17 para 70% em 2016 e 90%
em 2020.
2– Definir como estratégia a
construção de uma política curricular no ensino médio e na educação
profissional guiada pelo princípio da integração entre trabalho, ciência e
cultura como fundamentos epistemológicos e pedagógicos do currículo que visa à
formação omnilateral e politécnica da
classe trabalhadora.
3– Excluir, como estratégia, a
utilização do Enem como critério de acesso à educação superior – avaliando-se
em que medida cabe como estratégia relativa ao ensino superior – dada a lógica
subjacente de vincular qualidade com avaliação, abstraindo-se as mediações que
constituem a qualidade, assim como a necessidade de se assegurar o direito ao reconhecimento
de conhecimentos construídos por outros meios sem que isso signifique a
privação do direito ao ensino médio escolar.
4– Retificar a estratégia 3.4, no
sentido de se fomentar a expansão das matrículas públicas de ensino médio
integrado à educação profissional, observando-se as necessidades das populações
do campo, dos povos indígenas e das comunidades quilombolas.
5– Excluir a estratégia 3.5,
negando-se a expansão da educação profissional com o financiamento público de
vagas em instituições privadas e visando à sua consolidação nas instituições
públicas, principalmente de forma integrada à educação básica.
6– Rever a estratégia 3.6, no
sentido de se reconhecer o estágio como momento de formação orientada e
supervisionada, necessariamente previsto no projeto do curso, considerando-o
como oportunidade educacional de contextualização curricular e de compreensão
de contradições das relações sociais de produção. Para além dos estágios,
parece-nos importante considerar também as atividades de extensão e de
iniciação científica como propícias à formação integrada dos estudantes, assim
como uma abordagem que relacione as particularidades dessas atividades com o princípio
educativo do trabalho.
7– Rever a estratégia 3.10, no
sentido de se desvincular a educação de jovens e adultos de “programas”,
consolidando-a como direito à educação básica e continuada, assim como
estendê-la para além da faixa etária de 15 a 17 anos, como meio de se buscar a
realização da meta de universalização da educação básica a toda a população
brasileira, independentemente da idade. *As reflexões aqui apresentadas constam, originalmente, do texto “Ensino médio e educação profissional nos anos 2000: contribuições para a análise da proposta de PNE 2011-2021”, da mesma autora, a constar de publicação do Inep organizada pelo Cedes/Unicamp.
Marise Ramos é
doutora em educação pela Universidade Federal Fluminense, professora adjunta do
Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana e da
Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e do
Programa de Pós-Graduação em Educação Profissional em Saúde da Escola
Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
²Outra questão a ser debatida é a relação entre a
ampliação da oferta educacional com as necessidades orçamentárias. Certamente, o fim da desvinculação de receitas da União (DRU)
deve ser vista como uma conquista nesse sentido. Mas não se pode esquecer que
esses recursos reforçam o orçamento da União e não dos estados e municípios,
instâncias responsáveis por atender à demanda educacional. Assim, é fundamental
que os recursos advindos dessa medida venham a complementar o Fundeb, de modo a
beneficiar a educação básica e viabilizar a qualidade na ampliação de sua oferta.
Na prática, o fim da DRU, sozinho, não garante que os desafios sejam superados
integralmente. Por isso, é fundamental a proposta do Plano Nacional de
Educação, que destina pelo menos 7% do PIB à educação, considerando que hoje
esse percentual não ultrapassa 5,1%..
³Taxa que expressa o número de crianças
matriculadas em um nível de ensino, que pertencem ao grupo etário
correspondente ao nível de ensino em questão, dividido pela população total do
mesmo grupo etário. (cf. .Estatísticas educacionais. Fontes em educação: guia
para jornalistas. Brasília: Fórum Mídia & Educação, 2001.)
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