Por Cecília
Café-Mendes
“Acho
que vocês já assistiram a um dos nossos filmes. Vou explicar por que fazemos
isso, certo?”, anuncia Zezinho Yube, em língua nativa, aos indígenas da plateia
sobre a importância dos vídeos produzidos pelo projeto “Vídeo nas aldeias”. “Os
brancos são maioria. A língua e a cultura deles estão cercando as nossas e
estamos perdendo cada vez mais. Estamos acabando com nossa língua, com nossas
festas. E é isso mesmo que eles querem, que a gente substitua a nossa cultura
pela deles. Eles estão dando a língua deles pra gente. E eu acho que a gente
não pode se dividir. Tanto nós Huni kui do lado brasileiro, como do peruano,
temos que nos unir, fortalecer nossa língua, nossa cultura.” Um dos idosos do
povo complementa, com uma questão importante: “Se todo mundo virar crente,
esquecer nossa cultura, quem é que vai cantar nossas músicas?” Essas falas
estão presentes no documentário Cineastas indígenas
(2010/32 min).
O
projeto “Vídeo nas aldeias” teve origem em 1987 por iniciativa do indigenista e
antropólogo Vincent Carelli, em parceria com o Centro de Trabalho Indigenista
(CTI), na figura, principalmente, de Virginia Valadão e Dominique Gallois,
fundadoras desta ONG em 1979. A CTI atua no controle territorial e gestão ambiental, além de ações de
formação de pesquisadores indígenas e de fortalecimento cultural das
sociedades indígenas.
Um
vídeo marcante na história do projeto é o chamado Festa da moça (Vincent Carelli, 1987, 18 min). Nesse vídeo, Carelli
captou o ritual de iniciação feminina na aldeia Nambiquara, no norte do Mato
Grosso. Durante as filmagens, eles decidiram retomar seus costumes tradicionais
já abandonados, como a furação dos lábios e nariz dos jovens. O processo de
filmagem foi acompanhado pela comunidade, e o líder do grupo, Pedro Mãmaindê,
participou ativamente da direção desse documentário, apesar de nos créditos
oficiais do filme, não aparecer essa informação.
Com
essa experiência e as demais subsequentes, como em Pemp (1988) e O espírito da
TV (1990), a intenção primordial é fornecer um feedback para os próprios indígenas e, assim, auxiliar na
construção da sua identidade. E, com isso, também desconstruir estereótipos
difundidos na mídia.
A
partir de 1997, começaram as primeiras oficinas de formação audiovisual nas
comunidades indígenas e, assim, eles próprios passaram a se responsabilizar
pelos documentários produzidos. Essa oficina se realizou na aldeia Xavante de
Sangradouro (MT). Em 2000, o projeto “Vídeo nas aldeias” se constituiu uma ONG
e, assim, se tornou uma escola para produção audiovisual dos povos indígenas.
Hoje a ONG soma mais de 70 filmes, muitos deles premiados, além de mais de 127
oficinas realizadas.
Talvez
a grande inovação da ONG tenha sido permitir que os indígenas retratassem a si
mesmos, serem ativos na execução das filmagens. Como eles imaginam o seu
folclore? Como eles querem ser vistos e interpretados? Os vídeos são feitos
primeiramente por eles, para eles, e os “brancos” participam com a técnica e
equipamentos. Servindo como forma de denúncia, enriquecimento cultural ou
apenas entretenimento, a ONG executa diversos projetos e trás para o público o
lado ainda desconhecido dessa riqueza da nossa cultura que são os indígenas. A
ONG ajuda na formação de documentaristas indígenas e, após a realização de cursos,
a preocupação é de se retratar a realidade das aldeias e suas multifaces tanto
para o público interno quanto para a sociedade em geral.
Além de
auxiliar na manutenção de uma cultura que tem se perdido ao longo dos anos, os
filmes também aproximam aldeias distantes. Todos têm acesso aos vídeos
produzidos em outros grupos indígenas, permitindo, assim, essa troca cultural
entre as aldeias e mostrando que a riqueza cultural de uma aldeia também é
encontrada em outras, das mais vizinhas às mais distantes.
Pode
parecer estranho dizer que os vídeos produzidos nesse projeto sejam
fundamentais para disseminar a própria cultura indígena entre eles. A mistura
da cultura dita “branca” com a indígena ao longo das décadas mascarou e
transportou para segundo plano a língua nativa, as mitologias, as danças, os
trabalhos manuais, a alimentação e assim por diante. Essa tradição, passada aos
jovens pelos membros mais idosos das tribos, tem sucumbido à miscigenação
cultural. Isso não é difícil de acontecer se observarmos, por exemplo, dados do
último censo indigenista feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), em 2010, que aponta para uma população de 817.963 indígenas
em contraste com os atuais 189.931.228 de não indígenas.
O
site “Vídeo
nas aldeias”, ativo há quase 16 anos, dentro de um projeto que já
existe há quase 30 anos, permite a visualização de muitos dos vídeos produzidos
pela ONG, inclusive a um dos filmes mais comentados, Corumbiara, de Vincent Carelli (Brasil,
2009). Resumidamente, Carelli, entre 1986 e 2006, registrou em Corumbiara (RO)
vestígios de um massacre que teria sido praticado por fazendeiros da região em
resposta à tentativa da Fundação Nacional do Índio (Funai) de demarcar
territórios indígenas. Até hoje o caso Corumbiara ainda não foi completamente
esclarecido, mas certamente a denúncia levantada pelo filme não terá os
registros apagados como, aparentemente, aconteceu no caso real. O filme recebeu
vários prêmios, dentre eles os de melhor filme, melhor direção, melhor montagem,
no 37º Festival de Cinema de Gramado,
e prêmio de melhor documentário no 19º
Festival Présence Autochtone, em Montreal, no Canadá.
Além disso,
o site informa sobre oficinas de vídeo organizadas pelo projeto em diferentes aldeias, traz
artigos que discutem a função social dos vídeos, relatos de indígenas que
ingressaram no projeto “Vídeo nas aldeias”, além de outros que resenham os
documentários. Para os que desejam imergir em outras produções culturais
indígenas, o site também oferece links para redes de mídia indígena. Soma-se a
isso sites tanto de associações indígenas quanto ONGs parceiras do “Vídeo nas
aldeias”. Afora esses links fornecidos no site do projeto, em 2015, no Programa
de Pós-Graduação em Multimeios do Instituto de Artes da Universidade Estadual
de Campinas, foi defendida a tese intitulada “Cineastas indígenas, documentário
e autoetnografia: um estudo do projeto Vídeo nas aldeias”, por Juliano José de
Araújo, sob orientação do professor Marcius César Soares Freire.
A intenção do
site “Vídeo nas aldeias” é divulgar seus trabalhos relacionados a cultura e
direitos indígenas e a filosofia por trás deles. Uma vez que o projeto
intenciona discutir assuntos indígenas, ele poderia se tornar uma fonte
interessante de acesso a essas questões, uma vez que na mídia tradicional,
pouco ou quase nada se fala sobre isso. Questões indígenas só atraem a atenção
quando ocorrem massacres ou disputas por demarcação de terra. Seria uma fonte
interessante de pesquisa aos que se interessam por eles, em linhas políticas,
sociais e culturais.
Imagens: Vídeo nas aldeias
Mais filmes
O dia em que a lua menstruou (Nguné Elü) 2004
Cheiro de Pequi (Imbé Gikegü) 2006
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