As recentes vitórias do Brasil contra os Estados Unidos, no caso dos
subsídios ao algodão, e União Européia, relativamente aos subsídios
concedidos ao açúcar, reforçaram a percepção em diversos setores da
sociedade brasileira, bem como da de outros países emergentes, da
importância do sistema de solução de controvérsias da Organização
Mundial do Comércio (OMC) para o desenvolvimento equilibrado do
comércio internacional.
O leading case,
no entanto, aquele que pavimentaria o caminho para que essa
participação mais efetiva pudesse ser possível, foi, sem dúvida, o que
envolveu as empresas Embraer e Bombardier, as quais, pelo mecanismo da
proteção diplomática, tiveram seus interesses defendidos pelos governos
de seus países. Como se sabe, apenas os países membros da OMC (com
exceção e alguns casos especiais como o de territórios aduaneiros) é
que têm legitimidade processual para agir perante o Órgão de Solução de
Controvérsias da organização.
Curiosamente, o caso teve início quando, em meados da década de 90, se
implantavam no Brasil alguns dos princípios do “Consenso de
Washington”, tão ardorosamente apoiados à época pelos países
desenvolvidos, como o Canadá. Após bem-sucedido processo de
privatização, a Embraer tornou-se uma empresa bem mais competitiva,
mas, ainda assim, precisava de algum tipo de apoio governamental para
poder concorrer em melhores condições com os grandes players
do mercado de aviões de médio porte. Com os incentivos recebidos por
meio de um programa de exportação do governo brasileiro denominado
Proex, a Embraer venceu, em 1996, uma concorrência internacional para a
venda de um número significativo de aeronaves para companhias aéreas
dos Estados Unidos. A grande derrotada nessa concorrência foi a
Bombardier, detentora na ocasião de mais de 50% do mercado mundial
dessas aeronaves de porte médio.
Inconformada com a derrota, afinal o valor da concorrência atingia a
cifra de aproximadamente U$ 4 bilhões, a Bombardier pressionou o
governo canadense a iniciar consultas junto ao governo brasileiro, com
o objetivo de apurar se, de fato, como alegava a empresa canadense, a
Embraer havia recebido subsídios governamentais do tipo “apoio à
exportação”. O governo brasileiro negou que tivesse concedido qualquer
forma de subsídio contrária às regras da OMC, previstas no “Acordo de
Subsídios e Medidas Compensatórias” (ASMC).
O Canadá não aceitou os argumentos apresentados pelo Brasil e, em
conformidade com as disposições do “Entendimento sobre Solução de
Controvérsias” (Anexo 2 do Acordo da OMC), requereu a instalação de um
Painel para analisar o caso. Para o governo canadense, o Proex
constituía um subsídio vedado pelo ASMC, já que funcionava como um
indisfarçável e direto incentivo às exportações da Embraer. Ainda que
houvesse no ASMC previsão para tratamento especial a países emergentes,
ou seja, a possibilidade de, em algumas situações, tais países adotarem
instrumentos de políticas de desenvolvimento, o Brasil, na visão
canadense, não poderia se beneficiar desse mecanismo, pois havia
concedido subvenção de valor expressivo, isto é, muito superior ao
limite normalmente aceitável.
O Brasil, em sua defesa, não contestou se tratar o Proex de um tipo de
subsídio. Um subsídio, porém, perfeitamente de acordo com o ASMC para
um país em desenvolvimento. Em linhas gerais, o Proex consistia em um
programa de equalização das taxas de juros cobradas por instituições
financeiras internacionais em contratos de financiamento à importação
de produtos de países emergentes, em virtude de seus riscos e
instabilidades políticas e econômicas. Assim, por exemplo, companhias
aéreas interessadas em importar aviões de uma empresa de país
desenvolvido, como a Suécia, ao buscarem financiamentos internacionais,
com o apoio e a intermediação da empresa exportadora, pagariam taxas de
juros comparativamente baixas, uma vez que a Suécia é um país de risco
próximo a zero. Por outro lado, a taxa de juros para o financiamento à
importação cobrada dessas mesmas companhias aéreas, caso desejassem
importar aviões de um país emergente, como o Brasil, seria muito mais
elevada, em face do denominado “risco país”.
No caso específico da concorrência internacional vencida pela Embraer,
esta conseguiu apresentar um “pacote de financiamento” bastante
atrativo para as companhias aéreas dos Estados Unidos. Como se tratava
de financiamento de importação para aquisição de bens de um país menos
estável como o Brasil, as instituições financeiras cobrariam, como de
praxe, taxas de juros mais elevadas. Pelo mecanismo de equalização, o
governo brasileiro comprometia-se a cobrir essa diferença na taxa de
juros. Imagine-se que, para o financiamento concedido a importações de
aviões da Bombardier, do Canadá, a taxa de juros cobrada fosse de 2%, e
que, para o mesmo tipo de financiamento concedido a importações de
aviões da Embraer, a taxa de juros fosse de 10%. A diferença de 8%
seria coberta pelo governo brasileiro.
O Brasil sustentou, portanto, que a equalização visava tão-somente
corrigir uma distorção de mercado que levava uma empresa de país
desenvolvido a ficar em condições artificialmente mais competitivas.
Tratava-se, pois, de subsídio especial, cuja concessão era permitida
para países emergentes nos termos do ASMC.
O Painel da OMC não entendeu desse modo. De acordo com seu relatório,
apresentado ao Órgão de Solução de Controvérsias (OSC) e distribuído às
partes, o subsídio do Proex era inconsistente com o ASMC, isto é,
tratava-se de subsídio ilegal em face dos dispositivos do ASMC. Como
era de se esperar, o Brasil recorreu ao Órgão de Apelação, o qual,
essencialmente, ratificou o teor do relatório do Painel. O Brasil
teria, portanto, de retirar os subsídios concedidos via Proex, sob pena
de o OSC vir a autorizar o governo canadense a adotar medidas
compensatórias contra o Brasil.
O Brasil não podia, evidentemente, retirar os subsídios já concedidos,
pois isso implicaria rompimento de contrato com as instituições
financeiras internacionais. O prejuízo para o país seria muito maior.
Uma situação bastante delicada e complicada. O governo brasileiro
tentou, então, apresentar uma nova versão do Proex, que foi igualmente
considerada inconsistente com o ASMC. Por ter o Brasil deixado de
cumprir, portanto, a determinação do OSC, este autorizou o Canadá a
adotar medidas compensatórias contra o Brasil, no montante aproximado
de U$ 3,6 bilhões de dólares.
Daí decorrem dois pontos importantes para reflexão. O primeiro é saber
em que medida é justo assegurar a países emergentes a adoção de
políticas comerciais, econômicas e financeiras que possam diminuir suas
assimetrias com relação aos países desenvolvidos. O Proex cumpria essa
finalidade? Em meu entender é justo e o Proex, em princípio, era um
instrumento adequado para tanto. No entanto, seria possível afirmar
também que a empresa canadense não tem qualquer culpa quanto ao fato de
o Brasil possuir uma carga tributária elevadíssima, um quadro
regulatório não muito transparente e outras deficiências estruturais
que levam ao encarecimento do crédito.
O segundo ponto relaciona-se à ineficácia de certas sanções adotadas
pelo OSC da OMC. Ninguém poderia esperar por parte do governo
brasileiro a adoção de uma insensata ruptura de contratos com
instituições financeiras internacionais, pois o prejuízo para o país
seria muito maior, a começar por sua imagem, o que enfraqueceria em
muito sua capacidade de atrair novos investimentos internacionais. Além
disso, o Canadá escolheu o setor têxtil para aplicar medidas
compensatórias, isto é, elevaria suas tarifas de importação sobre
produtos daquele setor, já que o Brasil à época recuperava sua
competitividade e voltava a ser grande exportador para o Canadá. Por
que razão os importadores canadenses de têxteis brasileiros teriam de
ser penalizados? Simplesmente, não faz sentido. Tanto que o Canadá
nunca chegou a aplicar tais medidas compensatórias.
O mais curioso estaria ainda por acontecer. Enquanto o Canadá acusava o
Brasil de conceder subsídios ilegais, estava fazendo exatamente o mesmo
com relação a Bombardier. Só que, talvez, de modo mais esperto. Por
meio de algumas instituições denominadas de fomento, como, por exemplo,
a Export Development Corporation,
repassava recursos àquela empresa, o que a levou, inclusive, a superar
a Embraer em nova concorrência internacional. O problema aqui é que o
funcionamento desses mecanismos de fomento talvez seja muito mais
complicado e difícil de ser identificado. No caso do Brasil, ao
contrário, as resoluções que criaram o Proex sempre estiveram
disponíveis, tendo sido até, possivelmente, publicadas no Diário
Oficial da União. Mesmo assim, o Brasil conseguiu reunir algumas provas
e, dessa vez, iniciou processo contra o Canadá na OMC. Argumentou que,
por meio dessas instituições de fomento, a Bombardier havia recebido
subsídios ilegais vis-à-vis o ASMC. O Painel deu razão parcial ao Brasil e determinou que parte dos subsídios fosse retirada pelo governo canadense.
O Canadá não apelou, mas se recusou a retirar os subsídios, razão pela
qual o governo brasileiro foi autorizado a adotar medidas
compensatórias contra aquele país no valor aproximado de U$ 270
milhões. Da mesma forma que o Canadá, o governo brasileiro não adotou
nenhuma medida compensatória. Ao longo dos últimos três ou quatro anos,
os governos dos dois países e os setores interessados, especialmente os
da indústria aeronáutica, têm negociado as condições que devem ser
aplicadas ao financiamento de importação.
O valor relativamente irrisório de US$ 270 milhões é o que menos conta.
O que teve importância mesmo foi o caráter simbólico da vitória. Foi
possível demonstrar, pela primeira vez de modo efetivo, que países
emergentes como o Brasil podem utilizar em seu benefício o OSC da OMC,
ainda que isso contrarie interesses de países desenvolvidos. Os
subseqüentes sucessos do Brasil nos casos do açúcar e do algodão são
exemplos eloqüentes disso.
Umberto Celli Junior é professor de direito internacional da USP.
Pesquisador e membro do Conselho Diretor do Instituto de Direito do
Comércio Internacional e Desenvolvimento – IDCID.
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