A relação
entre tecnologia e educação básica é permeada de grandes projetos e
grandes
decepções. Em nenhuma outra área da educação, passamos da euforia ao
desapontamento em tão pouco tempo. Basta que uma reportagem ou programa
de
governo aponte os potenciais transformadores de um novo dispositivo,
para que
em alguns poucos anos, novas investigações solicitem prudência e
cautela. É um
ciclo que se repete há décadas. Desde a década de 1990, acompanhamos a
promoção
da criação de laboratórios de computadores em escolas públicas. Desde
então,
colecionamos histórias que relatam que os equipamentos chegam ao seu
destino,
mas ficam meses em suas caixas, por falta de infraestrutura, falta de
apoio
técnico, entraves políticos, entre outros fatores. A pergunta que fica,
então,
é: por que investimos tantos recursos orçamentários em grandes projetos
de
integração de tecnologia na educação básica se temos alcançado tão
poucos
resultados sistemáticos? As razões são várias 1,
mas ressalto aqui três elementos, a partir da experiência brasileira.
Antes,
porém, algumas considerações.
Tomando como ponto de partida o
tema desta edição da ComCiência e
para efeito de argumentação, vou dividir a tecnologia educacional em
tecnologia
simples e complexa. Denomino de tecnologia simples a
tecnologia como
dispositivo: são os computadores, celulares, calculadoras e outros
equipamentos
utilizados por muitas pessoas no cotidiano. A tecnologia complexa, por
sua vez,
compreende todo o sistema de pessoas e recursos que se reúnem ao longo
do tempo
para que os dispositivos cheguem às mãos dos usuários, aliados às
relações e
condições que os sustentam.
Seguindo uma tendência mundial, o
governo brasileiro investe crescentemente na integração de tecnologias
em
escolas públicas. Programas como Proinfo e TV Escola contemplam não
somente
infraestrutura e equipamentos, mas também formação de professores,
gestores e
produção de recursos didáticos. Felizmente, não há mais a noção pueril
de que a
simples entrega de computadores à escola vai transformar a prática
escolar. Os
investimentos de grande porte na educação básica são feitos na
perspectiva de
uma tecnologia complexa. Um exemplo mais recente é o programa UCA – Um
Computador
por Aluno –, que contemplou a compra de seiscentos mil laptops para uso
em
escolas públicas (Pregão 57/2010). Já temos na linha do horizonte o
programa
UTA – Um Tablet por Aluno –, pegando
carona nos incentivos fiscais a empresas produtoras de tablets no
Brasil. Outros projetos de grande porte acontecem por
iniciativa de governos estaduais e municipais.
Raramente
um projeto de grande escala é promovido com
base em iniciativas anteriores bem sucedidas. Na maioria das vezes, a
integração de tecnologias na educação é feita somente com base em seu
“potencial” educativo e nas análises de impacto de curto prazo que, em
geral,
focam na relação entre o dispositivo e melhorias escolares ou
aprendizado dos
alunos. Como exemplo, projetos que fazem uso de laptops na educação
tendem a
ressaltar o crescente interesse dos alunos pela escola. Como
consequência da
introdução de laptops na sala de aula, alunos faltam menos e participam
mais
nas aulas. Essa relação simples e direta entre dispositivo e melhorias
educacionais proporciona um elemento confortável para quem analisa,
porém os resultados são de pouca utilidade prática. O interesse do
aluno, quase
sempre, é pelo dispositivo ao qual ele não tem acesso em casa. Mas se
não for
sustentado por práticas educacionais coerentes, o interesse é efêmero e
pouco
se relacionará aos objetivos educacionais propostos. Em educação, só
existe
tecnologia complexa. É aquela que não passa a esmo de entraves que
historicamente rondam a relação entre mercado, políticas públicas,
políticas
educacionais e inovação tecnológica. Ignorar esses fatores é promover
uma
implementação roleta-russa. Não é surpreendente, portanto, que os
problemas
enfrentados pelos projetos de larga escala no ensino básico público se
repitam:
falta envolvimento dos atores escolares no planejamento e execução,
existe
pouco entendimento da real situação da rede escolar, a implementação
raramente
segue conforme planejado, e o uso efetivo no espaço educativo raramente
segue o
cenário imaginado por quem planejou o projeto. Como resultado,
observamos um
conjunto de problemas históricos recorrentes que testemunhamos nos
projetos de
grande escala no Brasil (Cysneiros, 2001;
Sorj e Lissovsky, 2011).
Em outras
palavras, pouco sabemos sobre a relação entre tecnologia e educação,
porque
apesar de entendermos que os projetos de larga escala se dão no âmbito
da
tecnologia complexa, sistematicamente promovemos e investigamos a
tecnologia
simples. Se os professores já sabem disso na prática, a filosofia já
nos
alertou há muito tempo que a essência da tecnologia não pode ser
investigada
partindo da tecnologia em si (Heidegger). Ocorre, então, um desalinho
entre as
nossas expectativas e o que a tecnologia pode proporcionar em seu
enlace com a
educação. Vamos, então, a três elementos que, julgo, contribuem para
esse
problema.
Primeiro,
a integração de tecnologias na educação está emaranhada em um discurso
que
destaca o papel da educação como motor do desenvolvimento econômico.
Apesar dos
méritos inerentes à oferta de uma educação de qualidade para todos, não
se pode
ignorar que o desenvolvimento econômico depende de uma série de outros
fatores (Cuban, 2004). A consequência de um
discurso focado na escola é que esta adquire cada vez mais
responsabilidades
que vão muito além do que sua estrutura e equipe podem fazer com
eficácia e
coesão. O ciclo é pernicioso. A escola recebe recursos atrelados a
demandas
crescentes e quando, em curto espaço de tempo, não corresponde às novas
expectativas, é considerada falha e faltante. Isolar a educação como um
fator
preponderante para melhoria econômica é ignorar as múltiplas barreiras
à
ascensão social, as incongruências da meritocracia que supervaloriza
diplomas e
credenciais, além da crescente competitividade na sociedade (Husen, 1986).
Não surpreende, portanto,
que pais cada vez mais busquem cursos de informática para seus filhos
desde o
ensino infantil, com vistas a um diferencial para o futuro mercado de
trabalho.
Essas incongruências nascem quando relacionamos o desenvolvimento
econômico à
educação, sem nos perguntarmos qual educação e qual desenvolvimento
queremos. É nesse vácuo que se inserem os projetos de
tecnologias educacionais que prometem preparar os alunos para o mercado
de trabalho e promovem a ascensão social através de competências
instrumentais
com a tecnologia.
Segundo,
é importante lembrar que a perspectiva de
transformação da educação por meio da tecnologia acompanha o nascimento
da
escola pública (Cuban, 1986). Caminha junto com a ideia de que a escola
precisa
espelhar a sociedade e a “realidade dos alunos” que, em geral, é pouco
compreendida por quem faz as políticas e promove (ou desenvolve) os
dispositivos. Tecnologias sempre trouxeram a promessa de inovações
educacionais; porém, organizações complexas, como escolas, tendem a
incorporá-las
de maneira a não modificar substancialmente
seu modo de trabalho (Papert, 1997). Quando chegam às escolas, os
recursos tecnológicos tendem a ser absorvidos e utilizados de maneira
complementar ou suplementar às práticas já existentes. A reflexão de um
educador nos anos 1950 já apresenta esse dilema:
“Projetores, televisores,
fonógrafos e gravadores estão encontrando seu espaço em escolas e
colégios americanos.
Recursos audiovisuais podem suplementar ou suplantar palestras,
demonstrações,
e livros didáticos. Ao fazê-lo, eles podem servir para uma função
exercida pelo
professor: eles apresentam material ao aluno, e quando obtêm sucesso, o
fazem
com tanta clareza e de maneira tão interessante que os alunos aprendem.
Há uma
outra função para a qual eles contribuem pouco ou nada. Isso pode ser
melhor
evidenciado na troca que acontece entre professores e alunos em
pequenos grupos
ou tutoria. Muito dessa troca já foi sacrificada na
educação americana para
que se possa ensinar grupos numerosos de alunos. Há grande perigo de
que essa
troca seja completamente obscurecida se a prática de usar equipamento
feito
simplesmente para apresentar material
se difundir. O aluno se torna cada vez mais um passivo receptor de
instrução”,
diz Skinner (1958, p. 969).
As transformações didáticas e
melhorias de aprendizado que esperamos em sala de aula são dependentes
das
reformas que acontecem não só dentro da sala de aula, mas também das
práticas
regionais e nacionais. O sucesso da implementação de um laboratório de
computadores em uma escola é tanto consequência das atitudes de um
professor
quanto da gestão que organiza o seu uso, e da política de Estado que
determina
seu financiamento e sustentabilidade. Ignorar esses fatores ou tomá-los
como
unidades isoladas e esperar resultados sofisticados nas práticas
educacionais
no prazo de alguns poucos anos é, no mínimo, ingênuo.
Terceiro, há um discurso que
promove a necessidade de incluir sempre “novas” tecnologias na
educação,
partindo da perspectiva da exclusão social, digital, ou tecnológica.
Prover
acesso à internet atingiu o discurso da universalidade, levando em
conta a
importância da participação ativa do cidadão através dos canais
digitais. É
importante, no entanto, desvincular o acesso à internet como ferramenta
de
inclusão social ao seu necessário papel no processo de ensino e
aprendizagem.
No passado, tomando o caso dos Estados Unidos, discussões sobre
equidade de
acesso foram feitas para promover o acesso às calculadoras e à
televisão a cabo
nas escolas – grandes promessas para melhoria de aprendizado que
trouxeram
poucos resultados (Light, 2001). A tendência é que a escola
esteja sempre em defasagem com relação às tecnologias disponíveis para
uso
pessoal, e isso não é necessariamente ruim (Amiel, 2006). O debate
sobre a
inclusão digital por meio da escola ainda preza a equidade de acesso e
não a
qualidade das atividades. É talvez por causa dessa assimetria entre os
objetivos de prover acesso às novas tecnologias em detrimento da
qualidade da
experiência que não temos o mesmo afinco em promover o cinema 2 na
educação e pouco se divulga sobre o seu impacto no aprendizado, apesar
de seu
enorme potencial educativo.
A
inclusão de novas tecnologias na educação continua a
seguir a máxima – já desgastada – da tecnologia instrumental que aqui
categorizei como simples. É uma preocupação com o instrumento em
detrimento do
processo e dos fins a serem atingidos. Raramente vemos
propostas de projetos
que não explicitem claramente o dispositivo a ser utilizado, mesmo que,
em
princípio, uma gama de dispositivos possa ser utilizada para atingir um
mesmo
objetivo educacional. Para quem não sabe o que quer, qualquer
dispositivo é
viável. E para quem tudo quer, não há dispositivo que resolva. A
exclusão
digital não acontece por limitações de habilidades instrumentais que
dependem
de um só dispositivo. Aprender a usar o celular pode ser útil, mas é
somente um
objetivo inicial para quem está envolvido na educação. A tecnologia
educacional
deve ter como foco o desenvolvimento de uma fluência com o sistema
tecnológico em si. Isso significa fazer
uso e apreciar o desenvolvimento da digitalização, mídias,
conectividade, entre
outros temas, com clareza de propósitos e implicações. Ou seja, lucidez
sobre
toda a complexidade do sistema que o dispositivo carrega e acarreta. É
certo
que a tecnologia educacional não depende de um dispositivo específico
para
atingir os seus objetivos.
Não se pode negar que casos de
sucesso existem. São vários os professores e escolas que fazem uso
produtivo e
criativo de tecnologias educacionais no âmbito de um projeto educativo
condizente. Talvez os caminhos entre nossas expectativas e o que
efetivamente
acontece através do desenvolvimento tecnológico nunca se encontrem (Rescher,
1980). Mas podemos fazer com que
essas linhas se aproximem, diminuindo nossas expectativas e
reconhecendo que,
seguindo a lógica dos projetos de larga escala já implementados no
Brasil,
devemos suspeitar de qualquer promessa de transformação de sistemas
educacionais através da implementação de novas tecnologias.
Tel Amiel é doutor em tecnologia educacional pela
University of Georgia (EUA), pesquisador do Núcleo de Informática
Aplicada à Educação (Nied) da Unicamp, co-coordenador de projetos de
intercâmbio bi-nacionais focados em tecnologia, educação e cultura com
enfoque no ensino básico (Capes) e coordenador do grupo de trabalho
sobre Recursos Educacionais Abertos, da comunidade Educação
Aberta.
Referências bibliográficas
Amiel, T. “Mistaking
computers for technology: technology literacy and the digital divide”. AACE
Journal, v.
14, n. 3, 2006. Disponível em: <
http://www.editlib.org/index.cfm?fuseaction=Reader.ViewAbstract&paper_id=6155
>.Cuban, L. Teachers and
machines: the classroom use
of technology since 1920. New
York: Teachers College Press, 1986.
Cuban, L. The blackboard and the bottom line: why
schools can't be businesses. Cambridge,
MA: Harvard Universiy Press,
2004.
Cysneiros, P. G. “Programa nacional de informática na
educação: novas tecnologias, velhas
estruturas”. In: Barreto, R. G. (Ed.). Tecnologias
educacionais e educação a distância: avaliando políticas e práticas.
Rio de
Janeiro: Quartet, 2001.
Husen, T. The learning society revisted.
Pergamon Press, 1986.
Light, J. S. “Rethinking
the digital divide”. Harvard educational review, v.
71, n. 4, p. 709-733, Winter 2001
2001.
Papert, S. “Why school
reform is impossible”. The journal of the
learning sciences, v. 6, n.
4,
p. 417-427, 1997. Disponível em: <
http://www.jstor.org/stable/1466781
>.
Rescher, N. Unpopular essays on technological
progress. Pittsburgh: University of Pittsburgh Press,
1980.
Skinner, B. F. “Teaching
machines”. Science, v. 128, n. 3330, p.
969-977, 1958. Disponível
em: < http://www.jstor.org/stable/1755240>.
Sorj, B.; Lissovsky, M. Internet nas escolas
públicas: política além
da política. Centro Edelstein de Pesquisas Sociais. Rio de Janeiro,
2011.
1 Ressaltei
quatorze desses problemas pela perspectiva da pesquisa em tecnologia
educacional, em trabalho disponível em
http://educacaoaberta.org/rea/como-nao-pensar-em-tecnologia-e-educacao.
2 Dados
da Ancine (2010) apontam que dos 3.915 municípios com menos de 20 mil
habitantes, somente 8 têm salas de cinema. Dos municípios que têm entre
50 mil
e 100 mil habitantes, menos de 1/3 têm salas de cinema.
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