Fruto do seqüenciamento do genoma humano, a farmacogenética e a farmacogenômica,
áreas que estudam a relação dos fatores genéticos com os medicamentos,
ganham destaque no Brasil e no mundo, com promessas de reduzir os
efeitos colaterais por meio de um tratamento individualizado. Se por um
lado essas tecnologias podem representar um avanço no modo de lidar com
as enfermidades, elas também suscitam debates acerca de sua aplicação e
de questões éticas.
A
área de pesquisa, ainda bastante recente, deixa espaço para vários
debates. Dentre eles, nota-se a falta de unanimidade sobre o conceito:
farmacogenômica ou farmacogenética. De acordo com Guilherme Suarez-Kurtz, pesquisador do Instituto Nacional do Câncer (Inca) e coordenador da Rede Nacional de Farmacogenética (Refargen), farmacogenética
e farmacogenômica podem ser usadas, de forma geral, como conceitos
sinônimos. No entanto, Andréa Guerra, médica geneticista da Unicamp, os
diferencia, admitindo que a farmacogenética, termo cunhado em 1959,
consiste no estudo das reações indesejadas determinadas por alterações
no metabolismo de origem genética, provocadas pelo uso de drogas. Já a
farmacogenômica busca, nos genes de indivíduos ou de grupos, marcadores
genéticos relevantes que permitam prever efeitos tóxicos, efetividade
clínica de determinados medicamentos. Ela pretende direcionar o
tratamento a ser utilizado, visando à medicina personalizada. Apesar da
diferença pontuada, Marco Aurélio Romano-Silva, que pesquisa
farmacogenética da esquizofrenia, na Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG) acredita que em breve não haverá mais diferenciação entre
esses conceitos.
Guilherme Suarez-Kurtz explica
que o mesmo fármaco, ou a mesma droga, podem ter efeitos diversos em
pessoas diferentes e a farmacogenética procura investigar a relação
dessa diversidade com a influência de fatores genéticos na
metabolização da droga. A partir do mapeamento genético de populações, seqüenciamento de DNA, análise da expressão gênica e testes clínicos de drogas, os
pesquisadores esperam conhecer as relações entre genes e processos de
metabolização das drogas, podendo chegar a novos remédios ou a
prescrições que atendam especificidades genéticas de determinados grupos de pacientes, obtendo assim mais eficácia e menos reações adversas.
Segundo
o coordenador da Refargen,“existem hoje medicamentos no tratamento do
câncer que têm efeitos somente em pacientes com determinada alteração
genética. O trastuzumab (nome comercial Herceptin), indicado para
pacientes com câncer de mama, é um exemplo disso, pois sua utilização é
restrita a pacientes que apresentam uma alteração genética específica,
observada somente em 15% a 20% do total de casos da doença”, explica
ele.
Kurtz
sinaliza que a preocupação em apontar os fatores genéticos que devem
ser considerados quando se escolhe um medicamento ou a dose mais
indicada para cada paciente caracteriza melhor a pesquisa da área no
Brasil. No entanto, essa idéia de individualização do tratamento deve
ser vista com cautela. Apesar da divulgação corrente na mídia de que
cada pessoa poderá ter um tratamento individualizado, isso não
significa, na opinião de Kurtz, que cada um vá receber uma nova droga
em uma dose diferente. “Considero muito irreal que daqui a dez anos as
pessoas irão ao médico para serem receitadas a partir das suas
características genéticas. A idéia vai se aplicar a apenas alguns
medicamentos”, argumenta.
Foco sobre a diferença
Na
farmacogenômica e na farmacogenética, o foco na diferença genética vai
além da variabilidade de reações de pessoas portadoras de determinada
patologia a uma droga, chegando a diferenças étnicas, gerando muita
polêmica e embaralhando conceitos como raça e etnia.
Antonio Carlos Camargo, diretor do Laboratório Especial de
Toxinologia Aplicada, do Instituto Butantan, explica que existem
diferenças genéticas importantes entre grupos étnicos, porque
indivíduos de etnias diferentes podem ter um sistema de metabolização
das drogas distinto. “Assim, algumas drogas que podem ser usadas para
os europeus, oferecem riscos para os africanos. Portanto, para usar uma
droga da mesma categoria farmacêutica para o negro é necessário fazer
modificações nas moléculas para evitar efeitos colaterais”, esclarece.
A bula do remédio Cozaar, vendido pela Merck Sharpe & Dohme, por
exemplo, contém uma advertência: “não se aplica a pacientes negros”,
por outro lado, o BiDil é indicado para tratamento de insuficiência cardíaca apenas em negros.
Apesar
de existirem linhas de pesquisa que focalizam a raça como forma de
particularizar o tratamento farmacológico, Guilherme Kurtz faz uma
ressalva: a diferença média populacional intercontinental é muito menor
que a diferença entre indivíduos do mesmo continente. Mesmo assim, há
variações genéticas que ocorrem quase que exclusivamente em africanos
ou asiáticos, e essas características devem ser consideradas. O
coordenador da Refargen ressalta, por outro lado, que diferenças
raciais não devem se sobressair em relação às genéticas. “É necessário
concentrar-se na variabilidade de genes. As populações muito
miscigenadas, como as do Brasil, são um motivo para isso”, argumenta
ele. Camargo concorda com a necessidade de relativizar diferenças
raciais.
Kurtz
ainda procura demarcar a questão afastando o que classifica como
“categorização racial” da “diferenciação a partir de parâmetros
genéticos”. “Quando se identifica o gene que confere a resposta ao
medicamento, não importa se está em uma brasileira ou em uma suíça. As
duas vão responder ao medicamento. É uma individualização do tratamento
independente da categorização racial”. No entanto, é importante
considerar que existem fatores genéticos e ambientais. “Há variáveis a
serem consideradas como a alimentação ou a interação com outros
medicamentos. Não há uma linha traçada de quando a interferência se dá
por fator genético e quando não é. Isso vai depender de cada
medicamento e de cada caso”, explica ele.
Com
relação à miscigenação da população brasileira, Kurtz anuncia a
pesquisa que desenvolve em colaboração com outros membros da Refargen,
entre os quais o geneticista Sérgio Danilo Pena, da Universidade
Federal de Minas Gerais: “Nós temos um projeto grande para definir
quais são as características principais da população brasileira em
relação a vários genes. Na literatura, é possível encontrar genes que
modificam a resposta a alguns medicamentos na população européia, mas
não na africana. Por isso trabalhamos para desvendar como o fator
miscigenação afeta a farmacogenética, que vem toda de fora”, afirma o
coordenador da Refargen.
Campo de testes
Kurtz
revela que a farmacogenética brasileira tem, sobretudo, componentes de
pesquisa clínica, porque como o que interessa é basicamente o uso no
homem, isso exige que sejam feitos testes clínicos.
Como o desenvolvimento inicial da farmacogenética no país não envolve a
formulação de novas drogas, Kurtz acredita que o custo será baixo. “Os
gastos nessa área, no Brasil, vão ser basicamente voltados à realização
de testes genéticos e com o avanço da tecnologia, o custo disso torna-se cada vez menor”.
Já
com relação a novas drogas, se a farmacogenômica seguir os padrões de
produção da indústria farmacêutica tradicional, procurará padrões
comuns em grandes grupos marcados por determinadas diferenças
genéticas. Nesse rumo o que
deverá valer, na opinião de Camargo, são substâncias capazes de atingir
o maior número de pessoas a partir de semelhanças entre os genomas
delas. A demarcação de grandes grupos também se relaciona com a
necessidade de realização de testes clínicos para aprovação e liberação
da venda de novas drogas.
Camargo também destaca o modelo que usa a identificação de novos produtos por meio da química combinatória e do high throughput screening (triagem
de alta velocidade) como insatisfatório em termos de inovações
farmacêuticas, em grande parte pelos efeitos colaterais. Segundo ele,
essa dificuldade tem levado à realização de simpósios internacionais e
críticas de grandes investidores na busca de alternativas ao alto custo
desse modelo. “Ele tem sido contestado não só pela baixa relação
custo-benefício, como pelo crescimento da necessidade de terapia
ajustada ao paciente. Mas, o modelo seguido pelas multinacionais
farmacêuticas nos últimos 15 anos deve servir para orientar novos
procedimentos terapêuticos como o desenvolvimento e utilização de
biomarcadores e outros recursos, que priorizam o tratamento do doente e
não a cura das doenças”, conclui ele.
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