No censo de 2010, do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 84,4% da população brasileira já
era urbana. Para se ter uma ideia do que isso representa, no relatório das
Nações Unidas divulgado no 5º Fórum Urbano Mundial, realizado em 2010 no Rio de
Janeiro, a previsão é de que a população mundial seja 60% urbana em 2030. Mesmo
o Brasil sendo tão urbanizado, o censo escolar de 2011 registrou, segundo o
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), 70.822
estabelecimentos rurais de ensino fundamental em todo o país (48% do total). O
que os dados demográficos do IBGE apontam de mudanças nas últimas décadas que
afetam diretamente a educação e que retrato os censos escolares do Inep nos
permitem traçar da atual situação das escolas do campo e da cidade?
Nos anos 1980, a professora Ana
Maria ia para o trabalho à pé e não precisava sequer atravessar uma rua para
chegar à Escola Classe 415 Norte, no Plano Piloto de Brasília, para dar suas
aulas de língua portuguesa. A maioria dos alunos daquela escola pública também
residia naquela mesma quadra ou nas mais próximas. Hoje, os moradores de classe
média do Plano Piloto, mesmo que tenham estudado em escola pública, preferem
colocar seus filhos em escolas particulares. Enquanto a população brasileira
cresceu pouco mais de 1% na última década, as escolas particulares aumentaram
15%. A maioria dos que estudam nas escolas públicas do Plano vem das
cidades-satélites, que não conseguem atender toda a demanda de educação das
famílias de baixa renda que vivem ali e trabalham em Brasília. Das
satélites ao Plano, percorre-se um longo trecho de ônibus, um périplo diário
enfrentado em todos os grandes centros urbanos do país.
O desafio do acesso à educação é
ainda maior para aqueles que vivem em áreas rurais, como os moradores da
comunidade de Aracati, no Ceará, que estudam no município vizinho, Itaiçaba:
depois de um longo trecho à pé ou de bicicleta, eles atravessam o rio Jaguaribe
para chegar à escola Padre Abílio, de canoa ou passando pela barragem, quando o
nível da água está baixo. Apesar de 73% da população do Nordeste residir em
área urbana, cerca de 60% das escolas nordestinas de ensino fundamental são
rurais. Situação semelhante à dos alunos de Itaiçaba enfrentam os professores
do Colégio Paulo Freire, no assentamento rural entre os municípios de Tangará
da Serra e Barra do Bugres, no Mato Grosso: “O acesso mais fácil é pelo
município de Tangará da Serra. Até o assentamento, são 80 km de estrada sem
pavimentação. Assim, os professores que não são do assentamento devem ir para
lá e ficar os dias de aula, pois o transporte para ir e voltar não é simples”,
conta Ana Arnt, da Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat).
O contraste entre a situação nas
escolas públicas rurais e urbanas não se resume à questão do acesso. Ele existe
há décadas, e se torna maior à medida que a população das cidades aumenta. Parte
das mudanças que aconteceram na geografia da educação estão ligadas a duas tendências
demográficas que se iniciaram no Brasil na segunda metade do século XX: o censo
do IBGE de 1960 registrou uma queda na taxa média anual de crescimento da
população, a qual se acentuou nas décadas seguintes – de acordo com o censo de 2010, a população
brasileira ainda cresce, mas em um ritmo cada vez mais lento: a média anual da
última década foi de 1,17% de aumento. Já o censo de 1970 foi o primeiro a
registrar uma população urbana maior que a rural. O processo de urbanização foi
mais acelerado no Sudeste, mas aos poucos atingiu as demais regiões do país. No
censo de 2000, a
população urbana do Sudeste e do Centro-Oeste já superava os 80% do total. Como
se explica, então, que praticamente a metade dos estabelecimentos de ensino
fundamental esteja em área rural?
Em 2010, as escolas rurais de
ensino fundamental representavam 49,5% do total. No Nordeste, 63% das escolas
eram rurais, e no Norte, eram 74%. “A zona rural brasileira representa boa
parte do território nacional. Entretanto, apesar da grande extensão
territorial, a estrutura de povoamento e distribuição espacial da população no
Brasil faz com que o meio rural concentre pouco mais de 15% da população e dos
estudantes. Esta característica demográfica repercute diretamente na estrutura educacional.
A dispersão populacional e a extensão do território brasileiro explicam esses
dados. O que ocorre, entretanto, é que essas escolas têm características bem
peculiares, ou seja, são pequenas, em geral unidocentes (com apenas um
professor), algumas vezes multisseriadas e atendem, em média, poucos alunos”,
diz a assessoria de imprensa do Inep. Em 2010, a média nacional era
de 16 alunos para cada professor em escolas rurais de ensino fundamental, onde
os docentes representavam 18,5% do total do país. Enquanto no meio urbano o
número total de professores é 16 vezes maior que o número total de escolas, no
meio rural essa relação é quatro vezes menor. “O que se observa é que a
infraestrutura disponível é bem inferior quando comparada com a disponível na
zona urbana e não difere da infraestrutura do entorno em que está localizada”,
completa.
Escolas
rurais como essa, de Bom Jesus da Lapa (BA), sofrem com infraestrutura
precária. Foto: arquivo Secad/MEC.
Em 2007, o Ipea publicou o trabalho
“A infraestrutura das escolas brasileiras de ensino fundamental: um estudo com
base nos censos escolares de 1997
a 2005”,
de Natália Sátyro, do Ministério de Desenvolvimento Social, e de Sergei Soares,
do próprio Instituto. O estudo indicava uma melhoria considerável naquele
período avaliado, principalmente nas escolas rurais, embora estas ainda
permanecessem as mais representativas, em 2005, em termos de infraestrutura
precária: das 4.224 escolas sem nenhum tipo de fornecimento de água, 92,6% estavam
localizadas em áreas rurais; 25.831 escolas não eram atendidas por
abastecimento de energia elétrica, das quais 99,5% estavam em áreas rurais;
havia 14.226 escolas sem saneamento, sendo 98,7% em áreas rurais. De acordo com
o Inep, o quadro atual continua apontando a tendência de melhora sinalizada
naquele estudo, com uma queda, em seis anos, de 22% no total de escolas sem
saneamento e de 56% nas que não tinham energia elétrica. Mas a concentração dos
problemas permanece majoritariamente no meio rural: em 2011, a área rural detinha 98,1%
das escolas sem esgoto sanitário e 99,6% das sem energia elétrica. Apenas em
termos de abastecimento de água a situação piorou, aumentando em 85% o número
de escolas sem esse atendimento, das quais 97,9% eram estabelecimentos rurais.
Soares, do Ipea, acredita que parte
da razão pela qual as escolas rurais sempre terão menos infraestrutura é uma
questão de escala, ou seja, elas são muito pequenas para terem as mesmas
facilidades das escolas urbanas. “Frequentemente, uma escola rural com pouca
infraestrutura pode ter um custo/aluno superior ao custo/aluno de uma escola
urbana maior. Isso dito, é também verdade que as escolas rurais recebem pouco
dinheiro pelo pouco poder político que os pais de seus alunos têm”, explica.
Outro dado apontado naquele
estudo é que as escolas urbanas de ensino fundamental tinham mais de 60% dos
seus professores com curso superior, enquanto nas escolas rurais esse índice
estava abaixo dos 20%. O Colégio Paulo Freire, do assentamento rural de Mato
Grosso, é um exemplo disso. “Até 2007, a escola tinha poucos professores
formados em ensino superior, e não era em cursos de licenciatura (era em
engenharia, por exemplo), ou davam aula fora da área de origem. O restante dos
professores eram ex-alunos formados no ensino médio do próprio Paulo Freire,
que davam aula seguindo livros didáticos oferecidos pelo governo”, conta Ana
Arnt, da Unemat, que orientou uma pesquisa sobre esse tema e tem ex-alunas dando
aulas na escola rural. “Quanto ao acesso, era precário. Em função da escola
pertencer a um assentamento que faz divisa entre dois municípios (Tangará da
Serra e Barra do Bugres), a cada ano um dos municípios é responsável pelo
transporte escolar. Havia um ônibus que levava as crianças à escola quando não
estava estragado. Até onde a pesquisa atuou, tivemos pouco mais do que 100 dias
letivos em 2007, em função das condições da estrada”, relata.
Para Gilda Cardoso de Araújo, do
Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), a educação
rural precária oferecida aos moradores do campo também tem relação com a
distribuição do ensino entre os entes federativos e com as condições desiguais
de oferta educacional. Ela aponta que a partir da Constituição de 1988, acentuou-se
um processo de municipalização do ensino: de 1991 a 2000, as matrículas
no ensino fundamental cresceram 90% em escolas municipais, enquanto as escolas
federais, estaduais e privadas apresentaram queda. De 2000 a 2010, o maior aumento
percentual nas matrículas aconteceu nas escolas particulares – o que está
relacionado com o aumento da renda média dos brasileiros nessa década –, mas
ainda houve um aumento nas escolas municipais ante uma queda de 36% nas escolas
estaduais. “O texto constitucional aprovado em 1988 inovou ao incluir o
município como um terceiro ente federado autônomo, e ao atribuir-lhe
protagonismo na descentralização de competências, principalmente na área social”,
avalia. Mas ela considera que isso tornou ainda mais desafiadora a tarefa de
equalizar as diferenças entre regiões, estados e municípios. “Se, por um lado,
a inclusão do município como ente federado tem o potencial de ampliar a
participação direta do cidadão na administração dos serviços públicos, por
outro lado, significou também a ampliação das dificuldades na tentativa do
estabelecimento do equilíbrio federativo e de medidas de igualdade na prestação
dos serviços públicos à população, tendo em vista a heterogeneidade de demandas
e de capacidade orçamentária dos 27 estados e dos cerca de 5.600 municípios
brasileiros”, opina a pesquisadora.
A migração para a cidade e o envelhecimento da população
Uma terceira tendência
demográfica começou no Brasil a partir dos anos 1980: até então, a população
era predominantemente jovem, mas a base da pirâmide populacional por faixa
etária começa a diminuir a partir do censo de 1991, redução que se mantém nos
censos seguintes. A população até 14 anos de idade, que somava mais de 50
milhões no censo de 2000 (29,6% do total), chegou a 2010 com menos de 46
milhões (24% do total). Isso teve um reflexo direto nas estatísticas do ensino
fundamental: a partir de 2000, o número total de matriculados em escolas
brasileiras vem caindo ano a ano, pela crescente diminuição da população em
idade escolar. “Se compararmos o número de vagas existentes no ensino
fundamental com a população de 6
a 14 anos no Brasil, que é a população que deve estar na
escola, podemos observar que há mais alunos matriculados do que a população que
deveria estar no ensino fundamental. É preciso considerar que, se de um lado o
problema do acesso está parcialmente resolvido, de outro, as questões relativas
à distorção série-idade (alunos fora da faixa etária para o correspondente ano
do ensino fundamental), ao abandono e à reprovação ainda são muito graves no
Brasil. Os planos de educação precisam levar em conta esses problemas,
simultaneamente ao desafio maior, que é o de ofertar uma educação de qualidade
para todos os brasileiros”, avalia Gilda Cardoso, da Ufes.
A redução da população jovem associada ao aumento da
população urbana fez com que a queda média de matrículas entre 2000 e 2010 fosse
menor nas escolas urbanas (10%) do que nas escolas rurais (26%). A redução de
professores no ensino fundamental nesse período foi bem menor, mas aconteceu de
maneira acentuada nas escolas rurais das regiões Sul (28%) e Sudeste (26%). A
maior diferença, no entanto, ocorreu no número de estabelecimentos de ensino,
que aumentou 8% nos centros urbanos, especialmente no Sudeste – aumento
impulsionado pelo crescimento de 15% das escolas privadas do país ante a redução
das escolas públicas –, enquanto as escolas rurais diminuíram em média 34%, de
modo mais acentuado no Centro-Oeste (53%) e no Sul (51%).
Fonte: Censos escolares de 2000 e
2010 (Inep/MEC)
“Claro que a redução no número de
escolas rurais e suas matrículas acompanha as mudanças demográficas mais amplas
em direção a uma população mais urbana, mas também reflete a política de
nucleação. Nela, admite-se que pequenas escolas rurais não têm como ser boas e
investe-se muito dinheiro em transporte para levar as crianças rurais seja a
escolas urbanas, seja a escolas rurais com características das escolas urbanas em
tamanho, escala, seriação”, afirma Sergei Soares, do Ipea. Segundo ele, há
muitos que se opõem a essa política, e que acreditam que não se deve desistir
das pequenas escolas rurais. Trata-se de uma polêmica também existente nos
Estados Unidos, na França e na Colômbia.
A maior mudança no período de 2000 a 2010, no entanto,
aconteceu no ensino médio. Enquanto o número total de matrículas no país
permaneceu praticamente estável nas escolas urbanas – apesar da queda de 13% no
Sudeste e de 8% no Sul –, nas escolas rurais de ensino médio o aumento foi de
190%, chegando a triplicar no Nordeste e a ficar quatro vezes maior na região
Norte. “Isso se deve a dois fatores: a ampliação da oferta, que pode ser
observada pelo número de escolas presentes nessas áreas, e o aumento do número
de alunos que concluem o ensino fundamental, aspectos que estão intimamente
relacionados”, explica a assessoria de imprensa do Inep.
Fonte: Censos escolares de 2000 e
2010 (Inep/MEC)
O número de estabelecimentos
rurais de ensino médio saltou de apenas 679, em todo o país, para 2.301 na
última década, chegando a 2.396 em 2011. Já o número de docentes apresentou
queda apenas nas escolas urbanas do Sudeste, em torno de 4%, aumentando 27% nas
escolas urbanas do Norte e 29% nas escolas urbanas do Nordeste. Mas o aumento
do número de professores nas escolas rurais foi generalizado em todas as
regiões do país, mais uma vez triplicando no Nordeste e multiplicando por
quatro no Norte. Outro fator que vem impulsionando o crescimento do ensino
médio, além do aumento do número de concluintes do ensino fundamental apontado
pelo Inep, é a aprovação, em 2009, de uma emenda constitucional que estende a
educação básica obrigatória e gratuita dos 4 aos 17 anos de idade.
O balanço da década revela, em
suma, que onde a população urbana já era maior, como no Sudeste ou na capital
federal, a diferença mais significativa foi o crescimento das matrículas no
ensino privado, que acompanharam o crescimento médio da renda dos brasileiros.
Já nas regiões menos densamente povoadas e menos desenvolvidas economicamente,
como o Norte e o Nordeste, houve um crescimento vertiginoso no número de
escolas, de professores e de alunos matriculados nas escolas rurais de ensino
médio. Esse crescimento, mais uma vez, traz à tona o debate apontado por Soares,
do Ipea, sobre apostar ou não nas pequenas escolas rurais.
“O campo não é apenas um espaço
não urbano, é o território das florestas, da pecuária, das minas, da
agricultura. É também espaço pesqueiro, caiçara, ribeirinho e extrativista.
Sendo assim, é um lugar que liga os seres humanos à produção de suas condições
de existência”, lembra Gilda Cardoso, da Ufes. “Entretanto, segundo dados
oficiais, três quartos dos pobres do planeta estão no campo. No Brasil, o
trabalho infantil ainda é fartamente utilizado no campo e a média de anos de
estudo ali é muito baixa. Nessas condições, a reforma agrária é uma medida
imprescindível para diminuir as enormes desigualdades socioeconômicas do campo.
Dessa forma, políticas educacionais específicas para o campo são dimensões
estratégicas extremamente relevantes. A educação do campo é uma forma de ação
política e social. Não pode ser concebida como empobrecimento da educação
oferecida nas áreas urbanas”, conclui.
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