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Artigo
A contribuição das ciências e do movimento social para a agroecologia no Brasil
Por Lucimar Santiago de Abreu, Stéphane Bellon e Tércia Zavaglia Torres
10/10/2016
A evolução da agroecologia depende da força da interação entre movimentos sociais, redes científicas e construção de políticas públicas.

1. Introdução

Agroecologia apresenta um quadro conceitual para o desenho da agricultura que concilia metas de produção com objetivos ecológicos e sociais (justiça social, geração de emprego, qualidade de vida das populações, segurança alimentar, relações harmônicas entre produtores e consumidores etc.) (Wezel et al., 2009). A trajetória de movimento da agricultura ecológica no Brasil tem sido estudada por diversos autores, dentre os quais Brandenburg (2002), que identificou três importantes fases: i) a emergência de um movimento contra a industrialização da produção agrícola; ii) o surgimento de novos grupos e de formas de organização social; e iii) a institucionalização da agricultura ecológica, acompanhada por uma diluição parcial de seus princípios. Contudo, atualmente, observamos um quarto momento de redefinição e de recomposição de diferentes versões da agricultura alternativa, no qual a agroecologia ocupa um lugar importante e influencia o desenvolvimento rural (Abreu & Bellon, 2013). Trata-se de um processo de reagrupamento progressivo das agriculturas alternativas sob o “guarda-chuva” da agroecologia, cuja concepção é defendida por inúmeros atores sociais (instituições, movimento social e redes técnicas e científicas).

A agroecologia é fonte de inspiração para a construção de sistemas agroalimentares ecológicos e, a partir de 2003, foi fortalecida através de políticas públicas. É atualmente legitimada pelo movimento social, redes científicas e técnicas, num cenário de tensão permanente e de convivência com a agricultura denominada convencional ou produtivista. A agroecologia é entendida por diversos atores do mundo rural como uma proposição científica, um conjunto de práticas e um movimento social (Wezel et al., 2009), que busca promover mudanças no processo de produção da agricultura convencional a partir de uma abordagem interdisciplinar e do estabelecimento de pesquisas participativas (interação com os atores do desenvolvimento e produtores rurais), privilegiando a valorização do saber ou do conhecimento local.

O desenvolvimento da agroecologia diz respeito a diferentes atores sociais (produtores, cientistas, técnicos do governo, pesquisadores, consumidores e setores interessados da sociedade, governos locais, estaduais e federais etc.). Neste sentido, o tema da agroecologia enquanto projeto social para uma agricultura contemporânea e respeitosa do meio ambiente tende a contribuir para a centralização das questões agrárias, uma vez que propicia ambiente favorável para a construção de soluções inovadoras de problemas cruciais ligados ao emprego e às migrações (internas e externas), à soberania alimentar e à preservação dos distintos biomas deste imenso continente. O desenvolvimento da agroecologia pode estar contribuindo para que a agricultura convencional possa repensar seu modelo, através da demonstração de exemplos bem sucedidos. Portanto, o argumento que defendemos é que o desenvolvimento da agroecologia depende da interação entre movimentos sociais, redes científicas e construção de políticas públicas.

Admite-se que os diferentes estilos de agricultura ecológica e de práticas visualizadas empiricamente no Brasil estão relacionados às concepções e correntes teóricas que influenciam os agentes e atores locais, em um contexto onde as redes científicas e sociais dedicadas à agroecologia estão em permanente interação e evolução. Assim, a ideia é tecer algumas racionalidades, a partir da literatura e de documentos combinadas com a reflexão sociológica de material oriundo de situações estudadas precedentemente (Abreu & Bellon, 2013), para compreender como a agroecologia no Brasil vem se constituindo como um campo interdependente e capilar que requer múltiplos olhares. Este artigo está estruturado da seguinte forma: na seção seguinte analisa-se o contexto, a história e a evolução da agroecologia no Brasil; a contribuição das ciências e as estratégias de desenvolvimento da agroecologia são os objetos de discussão da terceira seção; a quarta seção apresenta reflexões em torno do tema.

2. Contexto, história e evolução da agroecologia no Brasil

A partir da década de 1970, com a emergência de críticas sobre a revolução verde, a agroecologia passou a ser construída como disciplina científica e, no início na década de 1980, ela surge gradualmente como movimento social associado a um conjunto de práticas agrícolas. O movimento agroecológico diz respeito tanto aos grupos de agricultores que buscam segurança, soberania e autonomia alimentar, como aos movimentos sociais que reivindicam políticas públicas comprometidas com a aplicação de seus princípios. Mas a agroecologia ainda é observada em movimentos de grupos de agricultores que se dedicam à agricultura alternativa, por meio de parcerias sociais, para melhor responder aos desafios ecológicos e ambientais de produção agrícolas altamente especializadas – esse é o caso de produtores da Califórnia nos Estados Unidos (Wezel et al., 2009).

Na Europa esse movimento se fortalece a partir da Universidade de Córdoba, na Espanha, com o surgimento do Instituto de Sociologia e Estudos Camponeses (Isec). A evolução do trabalho empírico realizado no Isec decorreu da articulação de um programa científico, no campo das ciências sociais, e da introdução de metodologias participativas e interdisciplinares nos cursos de pós-graduação. A mudança de paradigma se deu a partir da necessidade de compreender a natureza da agricultura convencional e seu impacto vis-à-vis os recursos naturais e a própria sociedade. Foi essa escola de pensamento que introduziu na agroecologia o sentido sociopolítico de desenvolvimento da agricultura, vinculando-o aos processos históricos, resultado da crítica social ao contexto do neoliberalismo e da globalização. A proposição teórica da agroecologia foi assim formulada.

Entretanto, a agroecologia vai além do estudo de agroecossistemas. Para Francis et al. (2009) a agroecologia é uma ciência que estuda todo o sistema de produção de alimentos. Nessa perspectiva, produtores e consumidores estão diretamente inter-relacionados. Consequentemente, o autor apresenta uma definição mais ampla da agroecologia. Trata-se do estudo que integra a ecologia de todo o sistema de produção de alimentos, incluindo também as relações sociais e institucionais vinculadas à produção, distribuição e consumo da produção. Ademais, a agroecologia não é vista por muitos autores apenas como ciência, mas também como movimento social e prática agrícola. Wezel et al. (2009) admitem que as três dimensões – política (relacionada a movimentos sociais), tecnológica (ligada à prática dos sistemas de produção) e a geração de conhecimento (vinculada às ciências) – estão presentes na agroecologia, embora não possam ser observadas em todos os países com a mesma intensidade.

A agroecologia elege como conceito chave a transição agroecológica expressa pela ideia de redesenho. Nas regiões desenvolvidas do país, em especial, a agricultura ecológica foi inicialmente conhecida com agricultura alternativa. O conceito era vago, significando simplesmente um conjunto de técnicas que deveria ser utilizado de forma integrada e em equilíbrio com o meio ambiente. Entretanto, as experiências práticas eram pouco significativas, foram inicialmente inspiradas nos seguidores da agricultura biodinâmica, baseada em ensinamentos de Rodolf Stneir e de Fukuoka e Mokiti Okada.

O conceito de agricultura alternativa foi gradualmente sendo substituído por agricultura sustentável e, depois, pelo conceito da agroecologia. A ideia de um sistema de agricultura focada em técnicas alternativas perde espaço quando ocorre uma ruptura cultural no movimento ambientalista. A visão agroecosistêmica emerge na América Latina, no final da década de 1980, com a contribuição de Altieri, em articulação com organizações não governamentais (ONGs) latino-americanas. O movimento ambientalista constituído por ONGs e profissionais da agronomia (associações de engenheiros agrônomos) se divide pelo fato de que existiam intensas críticas ao modelo da revolução verde, mas pouca experiência prática de agricultura de base ecológica.

Neste contexto, a construção de projetos junto às comunidades de produtores familiares foi crucial, sendo criadas estruturas de organização em diversos países latinos, o que resultou no aumento considerável de experiências no Brasil. Deve-se salientar o papel decisivo das ONGs, em particular da Agricultura Familiar e Agroecológica (AS-PTA), pelo seu protagonismo. Essa organização visava atingir os objetivos de controlar a expansão dos latifundiários e do êxodo rural apoiando os agricultores familiares; estimular o processo de organização e conscientização dos agricultores familiares; e promover a adoção de um novo modelo de desenvolvimento. Para tanto, adotava as seguintes estratégias de ação: i) local: construir novas alternativas para a produção rural; ii) global: revelar a situação dos produtores familiares latino-americanos; e iii) política: influenciar a formulação de políticas públicas.

Na década de 1990, o cenário é de evolução e redefinição de métodos e conceitos. Assim, o termo da agroecologia foi introduzido na América Latina num quadro de articulação e colaboração entre projetos alternativos. De acordo com entrevistas realizadas com Paulo Pertensen, uma das lideranças importantes do movimento agroecológico brasileiro, a noção de transferência de tecnologias deveria ser substituída pela ideia de processos sociais de inovação agroecológica. A tecnologia não é algo externo, mas notadamente o resultado de relações ecológicas e socioculturais. A adoção parcial da proposição da agroecologia passa a ser motivada por um conjunto de organizações políticas comprometidas com a construção de um modelo novo de sociedade, baseada em reivindicações por equidade e justiça social.

Assim, são as condições de vida dos produtores familiares, associadas aos fatores ecológicos e técnicos, que configuram a dinâmica de emergência da agroecologia, fazendo com que agricultores empenhados com a transição em certas situações de uso da terra enveredem por trajetórias diferenciadas, formando um mosaico de produção ecológica. Esses coletivos de agricultores em certas localidades são apoiados por organizações, as quais estão envolvidas diretamente com os processos de desenvolvimento rural e com a institucionalização da agroecologia no Brasil. Essa força social é um dos elementos fundamentais da evolução intensa identificada no país nos últimos anos.

Esses coletivos lutam pelo reconhecimento dessas formas ecológicas de produção. Tais avanços são consubstanciados no quadro institucional, no caso brasileiro, no âmbito da legislação dos sistemas orgânicos, e em um conjunto de políticas que foram inspiradas no conceito e abordagem da agroecologia, uma vez que reconhecem a importância da integridade cultural das comunidades rurais, da equidade social, da valorização econômica das produções familiares e do respeito aos recursos naturais.

Para Miguel Altieri, a América Latina está promovendo uma revolução agroecológica sem precedente. Mas tal revolução nos parece altamente questionável, uma vez que agroecologia se desenvolve, evolui e convive (ora pacificamente, ora de forma conflituosa) com o modelo exportador. Para os autores, a revolução agroecológica depende do acesso de camponeses a terra, sementes, água, crédito e mercados locais, em parte através da criação de políticas econômicas de apoio, incentivos financeiros, oportunidades de mercado e tecnologias agroecológicas.  A nosso ver, para que tal mudança aconteça seria necessária estruturação institucional, profissional e científica capaz de oferecer a continuidade das ações e programas de governo dos últimos anos.

Na realidade, o desenvolvimento da agroecologia na América Latina e, em particular, no Brasil, pode estar limitado pelo forte crescimento da agricultura convencional e de exportação, que possui estrutura e recursos financeiros disponíveis e adequadamente organizados pelo Estado e por grandes cooperativas ou mercado que se apoiam em uma forte representação parlamentar. É necessário destacar que o setor agrícola convencional apoiado pelo Estado tem também aumentado a produção, atendendo aos interesses dos grupos econômicos (produtores de grãos e combustíveis) e exportadores. Tal modelo de produção tem sido muito criticado, na medida em que produz impactos negativos no ecossistema e problemas sociais, além de afetar a saúde humana, tendo em conta a incerta qualidade dos alimentos produzidos com agrotóxicos.

No Brasil, a produção de alimentos baseada em princípios ecológicos tem crescido nos últimos 20 anos. A origem desse modo de produção pode ser interpretada como parte da herança de modelos europeus (Brandenburg, 2002) adaptados ao contexto brasileiro, ao mesmo tempo em que convive com outras formas originais estabelecidas sob as condições específicas da realidade local.

Vale destacar que nesse cenário identificam-se estilos distintos de agricultura, onde constatam-se vários referenciais de conhecimento: biodinâmico, natural, orgânico, permacultura e sistemas agroflorestais, entre outros. Essa diversidade de formas de produção foi reconhecida pela legislação brasileira que regulamenta a produção de alimentos como sistemas orgânicos de produção. Esse aparato legal foi construído a partir de intensas consultas às partes interessadas. Portanto, é importante ressaltar a influência da agroecologia na construção da Lei da Produção Orgânica (Lei 10831, de 23 de dezembro de 2003, regulamentada em 2007), que reconhece a diversidade de sistemas de certificação como terceira parte, sistemas de garantia da qualidade participativa (SPG) e vendas diretas com controle social.

A proposição da agroecologia tem estimulado interações múltiplas entre sistemas agroalimentares de alta diversidade de produtos, práticas e experiências sociais que, contabilizadas somente as áreas certificadas, totalizam mais de 5 milhões de hectares, incluindo as áreas extrativistas. As áreas cultivadas com sistemas orgânicos de produção envolvem também, sob o plano produtivo, uma grande diversidade de produtos alimentares como mel, hortaliças, café, açúcar, palmito, soja, frutas, legumes, ovos, carne, leite, milho etc. É inquestionável, portanto, a contribuição da agricultura familiar para a segurança alimentar e nutricional e para a geração de renda e empregos, porque possibilita que milhões de pessoas tenham condições de acessar os alimentos.

Em 2013, ocorreu a construção participativa do Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Planapo), que envolveu diferentes órgãos de governo e representantes da sociedade civil. O Planapo integra, qualifica e articula diferentes políticas, programas e ações indutoras da transição dos sistemas agroalimentares de base ecológica, contribuindo para o desenvolvimento sustentável. Dentre o público beneficiado pelo Planapo constata-se a presença de agricultores familiares e não familiares, povos e comunidades tradicionais, juventude rural e suas organizações econômicas que buscam fortalecer ou modificar suas práticas produtivas para sistemas agroalimentares de base ecológica. Cabe verificar em que medida essa política pode impactar positivamente, contribuindo para a transição da agricultura. É cedo para analisar os efeitos do plano, uma vez que poucas ações foram implementadas no meio rural – e, tendo em conta a crise política e econômica atual, a incerteza predomina em torno das políticas públicas.

3. Agroecologia: aportes teóricos e estratégias de desenvolvimento

O aporte teórico da agroecologia recebeu influências da agronomia, ecologia, antropologia e sociologia (Altieri, 2002). A agroecologia é considerada como uma proposição científica emergente e um campo de conhecimento transdisciplinar. Do ponto de vista das estratégias de desenvolvimento, pode-se registrar que a agroecologia no Brasil evoluiu a partir das duas últimas décadas. Diversas universidades criaram cursos de graduação e programas de pós-graduação stricto senso em agroecologia. Centenas de ONGs têm se apropriado do paradigma da agroecologia para promover a agricultura sustentável. Nos últimos 14 anos, com o governo sob a liderança do Partido dos Trabalhadores (PT), o movimento agroecológico foi intensamente povoado de estudantes e profissionais que possuíam relações de militância ou técnica com movimentos sociais, chegando inclusive a ocuparem importantes cargos políticos no Ministério do Desenvolvimento Agrário. Esse fato lhes permitiu influenciar diretamente os programas públicos, em especial na área de extensão rural e pesquisa agropecuária.

As políticas de desenvolvimento rural em sentido amplo abriram espaços para ONGs e grupos independentes – alguns pertencentes ao movimento original da agricultura alternativa no Brasil, como a Associação Nacional de Agroecologia (ANA) – articularem e obterem acordos entre os diversos atores interessados na formulação de um Programa Nacional de Pesquisa em Agroecologia, criado pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).

As instituições públicas do Brasil têm integrado a perspectiva da agroecologia em suas estratégias de desenvolvimento rural. Recentemente movimentos rurais como Via Campesina, MST, Movimento do Pequeno Produtor Agrícola (MPA) etc. adotaram a proposição da agroecologia, incluindo em suas agendas o tema da soberania alimentar. É notório o quanto as instituições de ensino e pesquisa no Brasil, em especial as que atuam nas áreas das ciências agrárias e da terra, vêm desenvolvendo os profissionais para exercerem suas funções de forma interdisciplinar e comprometida com os princípios da agroecologia. Trata-se de preparar os profissionais para buscar conhecimentos e alternativas de soluções tecnológicas inovadoras e adequadas para a realidade e contexto em que os produtores familiares se inserem. Interessam-se também por estudar formas de inserir a produção gerada por eles em mercados locais alternativos. Essa preparação, sob a perspectiva da agroecologia, depende de uma interação forte entre os conhecimentos técnico-científicos e as experiências locais articuladas pelos produtores familiares em organizações de produtores de base ecológica.

O movimento brasileiro e latino-americano em defesa da agroecologia tem como objetivo influenciar a construção de políticas que estimulem a soberania alimentar e o desenvolvimento rural sustentável. Para preencher a carência de conhecimento científico, as instituições de PD&I, extensão rural e de educação formal colocam à disposição dos diferentes profissionais e agricultores um conjunto de processos educativos e de investigação. Uma das instituições que mais tem atuado para contribuir com o preenchimento dessa lacuna é a Sociedad Cientifica Latinoamericana de Agroecologia (Socla). Essa instituição trabalha em articulação com um conjunto de outras instituições não governamentais que se apoiam nos movimentos sociais. A construção do conhecimento científico foi estabelecida como missão privilegiada e estratégica de desenvolvimento sustentável na América Latina. Dentre os temas prioritários nesse campo encontram-se os da soberania alimentar, conservação de recursos naturais e diversidade biológica na agricultura.

Um dos principais papéis da Socla é contribuir para o desenvolvimento socioeconômico considerando os interesses sociais no que se refere à segurança alimentar e ao empoderamento das populações rurais. Para isso, desenvolve ações como congressos científicos, cursos de formação, produção de publicações e subsídio a estudantes, técnicos, pesquisadores e/ou organizações de agricultores envolvidos com a agroecologia no continente. Os resultados dessas ações têm sido encaminhados ao movimento social organizado e têm potencializado o desenvolvimento de alternativas tecnológicas, sistemas de comercialização mais justos, estratégias locais de desenvolvimento rural e construção de políticas para o fortalecimento dos sistemas alimentares sustentáveis.

Em suma, o desenvolvimento da agroecologia no país e na América Latina tem sido orientado por estratégias políticas de diferentes atores envolvidos e um interesse crescente da sociedade, em particular dos consumidores. Esse desenvolvimento fortalece os movimentos sociais e a construção de programas científicos interdisciplinares, além de disseminar práticas agrícolas mais sustentáveis. As práticas agrícolas e os programas científicos são construídos a partir de conhecimentos oriundos da interação de técnicos e pesquisadores, de diversas áreas de atuação, com distintos atores da agricultura de base ecológica. Busca, portanto, combinar uma diversidade de conhecimentos e domínios disciplinares.

4. Conclusão

A agroecologia se desenvolve ancorada em movimentos sociais e aborda questões de desenvolvimento através de redes sócio-técnicas que legitimam um conjunto de formas de agricultura, transformando a paisagem agrária contemporânea. A agroecologia desencadeia uma ruptura paradigmática e promove a emergência de debates e de críticas à agricultura convencional e, consequentemente, defende um conjunto de valores políticos e sociais associados ao ideário de uma sociedade justa e igualitária. A agroecologia é legitimada no Brasil e na América Latina por sua forte relação com o movimento social. O tema agroecologia coloca no debate público a questão do poder da ciência sobre o desenvolvimento da sociedade, destacando a natureza política do que está por trás das opções tecnológicas dos diferentes modelos utilizados na agricultura. Portanto, a agroecologia coloca a questão mais geral da importância da relação entre sociedade e ciência.

Em essência, o significado do movimento em defesa da agroecologia se traduz nos tempos atuais num processo de desenvolvimento rural de dimensões múltiplas que vem recompondo o mundo rural, na medida em que reconstrói paisagens preservando recursos naturais, resgata saberes associados à produção de alimentos, dinamiza a produção de fibras, artesanatos e moda ecológica usando energias renováveis e reinventa a consciência ética e humanista no espaço rural.

A agroecologia é resultado da ruptura cultural das comunidades científicas e de grupos interessados pela questão do desenvolvimento rural, ou seja, a crítica ao modelo produtivista mostra-se concretamente na busca de práticas agrícolas de natureza ecológica e na introdução de inovações alternativas como, por exemplo, o manejo ecológico dos solos e a aplicação de princípios sociais da agroecologia. Essa atitude social crítica, reflexiva, é necessária em contextos em evolução, em particular tendo em vista a regulamentação da produção em curso, que faz com que agroecologia passe a ser uma disciplina de referência do ponto de vista das práticas agrícolas e da busca por equidade social, podendo servir de exemplo para outras formas de agricultura. A análise indica que a evolução da agroecologia depende da força da interação entre os movimentos sociais, redes científicas e construção de políticas públicas, tal como demonstramos no caso brasileiro, com avanços, mas pleno de incertezas no campo político e institucional.

Entretanto, pouco se tem avançado no âmbito da abordagem que toma a agroecologia como sistema agroalimentar. Ou seja, questões relativas à transformação, conservação e sobre as diferentes formas de relação produtor-consumidor ocupam ainda pouco destaque nos programas e ações dos governos federal e estaduais. Assim, esta reflexão nos estimula a colocar algumas interrogações: seria a transição inspirada no conceito da agroecologia incerta, uma vez que, na atual conjuntura política e econômica do país, as forças do mercado passam a ocupar lugar central no discurso dos formuladores de políticas públicas? Sem dúvida, é preciso aprofundar o estudo sobre questões cruciais do desenvolvimento da agroecologia, em especial analisar em que medida no país a dimensão econômica e política, associada à reprodução social das famílias envolvidas, pode influenciar na consolidação dos sistemas alimentares agroecológicos.

5. Referências

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Lucimar Santiago de Abreu é pesquisadora da Embrapa Meio Ambiente (lucimar.abreu@embrapa.br); Stéphane Bellon é pesquisador do Institut National de la Recherche Agronomique (Inra, França); Tércia Torres é analista da Embrapa Informática.