O ano é 2030. A bióloga marinha italiana Chiara é pesquisadora em um laboratório na ilha de Santorini, na Grécia. Para além da pesquisa de campo que desenvolve com sua equipe na investigação da qualidade da vida marinha, Chiara dedica o restante de seu tempo de trabalho conectada ao Lab, um ambiente virtual de pesquisa que permite que qualquer um possa compartilhar informações relacionadas à ciência. Um único dia de trabalho nesta rede a coloca em contato com parceiros de todos os continentes. São pesquisadores, professores de ciências, curadores de museu, blogueiros e empreendedores com os quais compartilha relatórios de pesquisa, bancos de dados, imagens, procedimentos, avaliações e combina encontros e projetos futuros.
Este é o relato coletivo produzido por representantes da comunidade científica europeia de um dos possíveis cenários do mundo da ciência nas próximas décadas. Pagar para publicar ou acessar um artigo e guardar a sete chaves bancos de dados de pesquisa não fazem mais parte da rotina do cientista em tempos da ciência aberta.
A ciência aberta (open science) é um movimento que vem ganhando cada vez mais adeptos dentro e fora da academia e que propõe um novo jeito de fazer ciência: colaborativo, compartilhado e público. Metodologias, levantamento de dados, uso e criação de softwares e hardwares, notas de pesquisa e relatórios, todas as etapas da produção do conhecimento ganham uma versão open. O acesso online e livre às publicações científicas (open access) é a modalidade mais popular dentro desse movimento. Hoje, são inúmeras as experiências de repositórios e redes de compartilhamento de artigos que podem servir de exemplo, como arXiv, PubMed, PLoS, Redalyc, SciELO e ResearchGate. Para saber mais sobre o acesso aberto, leia a reportagem Os (des)caminhos da publicação científica de Tassia e Thais.
Mas a ciência aberta é muito mais do que acesso aberto. Há quem a entenda como uma revolução no método científico em decorrência da expansão da internet e das novas tecnologias de informação e comunicação. “Acredito que o processo da ciência – como as descobertas são feitas – mudará mais nos próximos vinte anos do que mudou nos últimos 300 anos”, afirma Michael Nielsen, famoso ativista da ciência aberta, no livro Reinventing discovery: the new era of networked science”, de 2011.
Dados abertos e tecnologia livre
A disponibilização dos dados levantados e produzidos pelas pesquisas (open data) é uma das condições para a realização de uma ciência verdadeiramente aberta. O objetivo é permitir que essas informações sejam livremente usadas, reutilizadas e compartilhadas por outras pessoas. Plataformas como Dataverse e Figshare surgiram exatamente para servir como repositórios de bancos de dados e conectar pesquisadores e interessados. Mas quanto mais avançam a ciência e a tecnologia, maior é o acúmulo de informações. Falar sobre dados abertos na era da Big Data é um grande desafio.
O acordo “Open Data in a Big Data World”, tornado público no final de 2015 e que está em fase de busca de assinaturas, foi firmado para tentar estabelecer as diretrizes mínimas para o compartilhamento de dados científicos. Encabeçado por importantes organizações internacionais, ele determina as responsabilidades de pesquisadores, universidades, editores, agências de fomento e outros atores da comunidade científica para estimular os dados abertos. “Acredito que este vai ser o maior acordo feito no mundo para promover o fluxo de dados científicos”, aponta Jorge Machado, professor da USP e um dos defensores dos dados abertos no Brasil.
Mais recente ainda, em abril, a Comissão Europeia apresentou seu planejamento para a implantação da Open Science Cloud, um grande banco de dados em formato de nuvem que conectará diversas bases e repositórios científicos europeus. Prevista para entrar em funcionamento nos próximos anos, ela oferecerá um ambiente virtual para armazenar, compartilhar e reutilizar dados. Qualquer semelhança com a realidade da personagem Chiara não é mera coincidência.
O ambicioso projeto faz parte das ações do programa Horizonte 2020, lançado em 2013, que define a política científica da União Europeia para esta década. Os cerca de €80 bilhões de seu orçamento fazem dele o maior programa de pesquisa e inovação já desenvolvido no mundo. Para além da grande quantia investida, o que chama a atenção nele é o papel central reservado à ciência aberta. “Estou convencido de que a ciência excelente é o fundamento da prosperidade futura e que a abertura é a chave para a excelência”, disse Carlos Moedas, responsável pela área de Pesquisa, Ciência e Inovação da Comissão Europeia, em conferência no ano passado.
Ao lado da disponibilização de bancos de dados científicos, a utilização de licenças livres para softwares e hardwares é outro caminho para tornar públicos os processos e produtos da ciência. A Bancada de Hiperobjetos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) é um exemplo do que vem sendo feito para garantir a abertura da ciência no âmbito da tecnologia livre. Voltada à produção de hardwares livres (open hardware), ela disponibiliza ferramentas para o desenho, produção e documentação de máquinas de fabricação personalizadas e abertas. “Estamos projetando uma série de máquinas de fabricação digitais, todas hardware aberto e livre, para facilitar a disseminação de instrumentos de laboratório abertos”, explica o professor Rafael Pezzi, coordenador do Centro de Tecnologia Acadêmica do Instituto de Física da UFRGS e responsável pelo projeto.
Cientista cidadão
Projetos como o Polymath, para a resolução de problemas matemáticos, e o GenBank, para o mapeamento do código genético humano, provaram que a colaboração entre pesquisadores de diferentes partes do mundo é uma das grandes contribuições que a internet e as tecnologias de comunicação trouxeram à ciência moderna.
E a colaboração na ciência pode ir além daqueles com título de doutor. A participação da sociedade, de não cientistas, na construção e análise de bancos de dados é outro terreno fértil dentro da ciência aberta. O site Galaxy Zoo é um dos empreendimentos mais conhecidos de ciência cidadã (citizen science). Lançado em 2007, ele recrutou voluntários para ajudar astrônomos a classificar galáxias por meio de imagens espaciais tiradas por telescópio. Apenas no primeiro ano do projeto, mais de 150 mil voluntários contribuíram para 50 milhões de classificações. Aquilo que pode parecer uma brincadeira para os participantes tem resultado em dezenas de publicações e estudos científicos para a equipe de astrônomos.
No Brasil, uma dessas iniciativas é o projeto SOS-Chuva, desenvolvido pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) em parceria com o Centro de Pesquisas Meteorológicas e Climáticas Aplicadas à Agricultura da Unicamp (Cepagri). A fim de aprimorar a capacidade de previsão de tempestades em curto prazo, ele contará com a participação de moradores da região de Campinas no levantamento de dados. Uma placa de isopor que funcionará como um medidor de granizo será entregue aos moradores. Quando houver ocorrência de chuvas fortes na região, basta que eles deixem a placa no ambiente externo e aguardem o granizo cair sobre ela. As marcas feitas pelo granizo servirão para a medição de seu tamanho. Um aplicativo permitirá que os usuários compartilhem não apenas esse cálculo, mas fotos e comentários sobre a situação do tempo em sua região.
Programada para começar em agosto, essa coleta coletiva se somará àquela realizada pelo radar meteorológico de alta resolução que vai ser instalado na Unicamp, em Campinas. E engana-se quem pensa que a coleta aberta tem apenas objetivo de divulgação científica. “Além de proporcionar o contato e a atuação da população frente a uma situação de risco, sua contribuição será importante para que possamos melhorar os modelos numéricos de simulação do tempo, a curtíssimo prazo, feitos a partir do radar e dos sensores. Não seria possível espalharmos pesquisadores em diversas regiões para realizar esse tipo de medição. Então, os participantes vão exercer o papel de observadores meteorológicos”, explica Ana Maria Ávila, pesquisadora do Cepagri e uma das responsáveis pelo projeto.
Uma nova cultura científica
Apesar das iniciativas inovadoras que têm surgido no país, a ciência aberta ainda é uma realidade pouco compartilhada na academia quando se fala em disponibilização de bancos de dados e construção colaborativa. Os pesquisadores que participam do movimento identificam barreiras institucionais e culturais a serem ultrapassadas para a expansão desse novo modelo de produção e divulgação do conhecimento. “Para que os pesquisadores passem a divulgar seus bancos de dados em algum repositório, há que se vencer uma resistência cultural de modo que as pessoas não tenham medo de expor esses dados, da competição, de alguém usá-los e apontar incongruências ou chegar a um resultado melhor a partir deles”, explica Jorge Machado.
As métricas de avaliação do desempenho de pesquisadores que, tradicionalmente, contabilizam produtos acadêmicos, em especial o número de artigos publicados em periódicos bem classificados, também acabam por estimular comportamentos competitivos e dificultar a colaboração e o compartilhamento de informações. Para os softwares e hardwares livres, por exemplo, o processo habitual de construção do conhecimento segue na contramão não só da ciência aberta, mas do próprio papel da universidade na disseminação de saberes. Segundo Pezzi, o desenvolvimento da tecnologia na universidade é, normalmente, feito em segredo para que, ao final, seja possível divulgar o mínimo necessário para garantir a publicação em um periódico e a patente. “É como se estivéssemos tentando acelerar um automóvel com o freio de mão puxado”, comenta.
Machado acredita que os acordos internacionais e agências de fomento têm papel central no estímulo desse rol de novas práticas. “Se as agências de fomento começarem a estimular em seu próprio financiamento que os pesquisadores disponibilizem seus dados primários ou, pelo menos, os resultados de publicações em formatos fáceis de fazer um processamento automatizado, essa barreira pode ser vencida”.
Por que devo compartilhar meus dados, procedimentos e resultados antes de publicá-los? Os valores morais da transparência de informações e da prestação de contas do financiamento público não são suficientes quando a carreira, o salário e bons empregos estão em jogo. Para o ativista Nielsen, essa nova cultura científica exige uma transformação mais profunda. Enquanto o objetivo final da ciência for a produção de artigos, mesmo projetos colaborativos inovadores estarão para sempre marcados pelo conservadorismo.
Um estudo publicado em fevereiro deste ano revelou que a ciência aberta causa mais impacto e pode gerar maior retorno de investimentos do que a convencional. Analisando a atuação do Instituto de Bioinformática Europeu, que disponibiliza gratuitamente dados e serviços a cientistas de todo o mundo, a pesquisa calculou que o valor de seu impacto é 20 vezes maior do que os recursos que ele precisa para funcionar. Pode ser um começo de conversa para alguns.
Nuvem global de pesquisa conectando todos os continentes, máquinas produzidas com conhecimento compartilhado, pessoas comuns analisando e coletando dados científicos. Transformações como essas nos mostram que o futuro da ciência já chegou. Não com invasões alienígenas e teletransporte, como o imaginário popular nos fez acreditar, mas ainda assim desafiador. Resta saber: e você, cientista, está preparado?
Acesse também
Ciência aberta, questões abertas / Sarita Albagli, Maria Lucia Maciel e Alexandre Hannud Abdo (organizadores), Brasília: IBICT; Rio de Janeiro: UNIRIO, 2015.
O movimento ciência aberta no Brasil / Véronique Hourcade, Dissertação de Mestrado em Divulgação Científica e Cultural, Unicamp, Campinas, 2015.
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