Em 2001, Jan Hendrik Schön, pesquisador dos Laboratórios Bell, era
considerado um jovem gênio da física. Com 31 anos de idade, já havia
recebido dois prêmios internacionais e publicado cerca de 70 artigos
científicos, alguns em revistas entre as mais importantes do mundo.
Havia chegado ao ritmo vertiginoso de uma publicação, em média, a cada
oito dias. Um trem-bala direto para o prêmio Nobel: “parecia que estávamos competindo com um deus”, lembram alguns cientistas da área. Num artigo sensacional, na revista Nature,
o jovem anunciou poder construir um transistor do tamanho de uma
molécula, feito de substâncias orgânicas, o que representaria uma
revolução para a microeletrônica e para a nanotecnologia, com eventuais
aplicações médicas e informáticas extraordinárias. No entanto, nos
dados de Jan Hendrik Schön havia algo estranho. Os resultados pareciam
demasiado perfeitos. Alguns físicos perceberam que os gráficos de três
experimentos diferentes tinham uma parte idêntica. Schön declarou ter
fornecido, por engano, a mesma figura. Logo em seguida, outras
coincidências estranhas apareceram, em muitos trabalhos do rapaz. Um
inquérito foi aberto. Schön declarou não ter cadernos de laboratório
nem anotações. Disse ter deletado do seu computador os dados, e que as
amostras dos experimentos tinham sido jogadas fora ou estavam
danificadas. Um terremoto sacudiu a comunidade dos físicos: o “jovem
deus” havia, simplesmente, mentido. A maioria dos dados tinha sido
forjada. Os achados eram pouco mais que mentiras. Muitos dos artigos de
Schön foram retratados pelas revistas que os haviam publicado. Ele foi demitido da Bell e, mais tarde, perdeu seu título de doutorado.
O funcionamento da ciência moderna se baseia, entre outras coisas, no
esclarecimento detalhado de todas as hipóteses, metodologias, dados
experimentais que sustentam cada afirmação, para que qualquer
pesquisador da área possa repetir, ao menos em princípio, os
raciocínios teóricos, os cálculos, as experiências citadas e conferir
cada afirmação, confirmando ou refutando as conclusões. Tudo, então,
deve ser registrado e comunicado. Quando os dispositivos de gravação e
divulgação de hipóteses, indícios e dados não funcionam bem, as
afirmações de um pesquisador não podem ser arquivadas como científicas.
Se esse “videotape
da ciência” não funciona, ou não é colocado à disposição (ou seja, se
os dados parecem impossíveis de ser reproduzidos, se não há como
verificar, repetir as experiências), então afirmação científica e
mentiras podem formar um emaranhado difícil de destrinçar.
Mentiras antigas, pressões contemporâneas
Mentira na ciência não é novidade. Apesar do fato de que Robert K.
Merton, entre os fundadores da sociologia da ciência, achou que
“comunitarismo”, “universalismo” e “desinteresse” estivessem entre as
normas fundamentais que geram o comportamento da comunidade acadêmica,
desde o tempo de Galileu pode ser que os cientistas briguem,
eventualmente trapaceiem e, às vezes, mintam descaradamente,
modificando resultados, relatando experimentos que não efetuaram,
descrevendo observações que nunca foram feitas. Fazem isso por várias
razões: para que os dados sejam consistentes com a teoria em que
acreditam, para embelezá-los e convencer mais facilmente os colegas,
para marcar a prioridade numa descoberta, para ganhar as luzes do
palco, dinheiro ou prêmios. Hoje, a competição entre pesquisadores em
determinadas áreas virou acirrada, os interesses em jogo sobre algumas
pesquisas podem ser enormes, e os tempos para marcar uma prioridade
podem ser tão estritos quanto os ritmos da grande mídia. Como
resultado, a discussão ética virou urgente.
O caso do cientista sul-coreano Hwang Woo-suk,
que forjou dados para afirmar ter produzido células-tronco humanas por
meio de clonagem, é celebérrimo. Mas têm dezenas. No início deste ano,
a revista Lancet teve que retirar o artigo de Jon Sudbø, dentista e oncologista do The Radium Hospital
de Oslo. O pesquisador havia “descoberto” que alguns remédios podiam
diminuir o risco de câncer oral, fazendo testes clínicos em centenas de
pacientes que, porém, nunca existiram. Pouco antes, o escândalo do
rofecoxib (também conhecido com o nome comercial de Vioxx ou Ceoxx)
agitava a mídia mundial. Em 2004, a farmacêutica Merck havia retirado
do mercado o remédio. Mas o problema não foi só anunciar que um dos
mais vendidos anti-inflamatórios, largamente usado na terapia da
artrite, podia aumentar o risco de ataques cardíacos. Foi descobrir, em
final de 2005, que, de acordo com o New England of Medicine,
pesquisadores que dispunham desde o ano 2000 de dados sobre pacientes
vitimas de enfarte, haviam omitido tal informação na pesquisa que
publicaram sobre o Vioxx.
“Por isso, pessoalmente não acho que o problema central seja o das
fraudes”, comenta Giancarlo Sturloni, pesquisador da Escola
Internacional Superior de Estudos Avançados de Trieste (Itália). “Mais
importante me parece, por exemplo, a discussão sobre a legitimidade de
esconder resultados de uma pesquisa, caso este seja o desejo de uma
empresa patrocinadora. A questão não é tanto se o pesquisador mente ou
não, mas sim o problema da transparência, da disponibilidade dos dados
ao público, dos conflitos de interesse”.
Interesses em conflito
De acordo com um estudo publicado na revista Nature
no ano passado, um terço, entre 3200 pesquisadores da área de medicina,
entrevistados de forma anônima nos EUA, admitiu ter manipulado
resultados ou trapaceado sobre metodologias, em muitos casos sob
pressão de patrocinadores. Esconder pressões ou vantagens econômicas
pessoais numa pesquisa é tão grave quanto forjar dados. Tanto que, em
setembro de 2001, treze entre as mais importantes revistas médicas do
mundo decidiram publicar todas o mesmo editorial para denunciar as
pressões exercidas pelas indústrias farmacêuticas sobre o mecanismo de
publicação científica. Alguns testes clínicos financiados por empresas
privadas são executados sob contratos que proíbem que os pesquisadores
publiquem seus resultados caso estes sejam desfavoráveis para os
patrocinadores. Em 2003, o British Medical Journal também
dedicou um número monográfico ao problema, com o título de “é tempo de
desemaranhar os doutores e as companhias médicas”. As pesquisas
financiadas com dinheiro público, mostrava um estudo na revista, têm
chances de fornecer um resultado negativo sobre um novo produto
farmacêutico quatro vezes maiores do que as pesquisas patrocinadas
pelas indústrias. Os estudos desafervoráveis a novos remédios, quando
financiados por privados, tendem a não serem publicados. Sturloni
conta, num artigo,
o caso de Betty Dong, da Universidade de Califórnia. Em 1990 a
pesquisadora descobriu, em pesquisa financiada pela farmacêutica Boots,
que um remédio para a tireóide produzido pela própria empresa não era
mais eficaz que remédios análogos, mais baratos, produzidos pelas
concorrentes. A Boots fez de tudo para impedir que a pesquisadora
publicasse seus dados: o caso ficou público sete anos mais tarde,
graças a um jornalista do Wall Street Journal. Numa época em
que testar um novo remédio custa, em média, 500 milhões de dólares, e
somente nos EUA as drogas receitadas pelos médicos custam mais de 150
bilhões de dólares por ano, médicos e indústrias farmacêuticas estão
abraçados uns aos outros, diz o British Medical Journal, “como a cobra e o bastão” no célebre símbolo da arte médica.
Por isso, muitas revistas científicas exigem hoje que os autores façam
uma declaração de todos os possíveis conflitos de interesse de tipo
financeiros no âmbito da pesquisa que querem publicar. A American Medical Student Association
também modificou o juramento de Hipócrates acrescentando o compromisso
em “não aceitar dinheiro, presentes ou hospedagem que possam criar um
conflito de interesse com a educação, a prática clínica, o ensino ou a
pesquisa médica”. No entanto, os chamados “informadores científicos”
(os que fazem propagandas de remédios em hospitais e consultórios) são
um exército de centenas de milhares de homens e mulheres no mundo, e as
farmacêuticas organizam e financiam mais de 300.000 entre congressos e
cursos de formação, em muitos casos em luxuosos hotéis ou em
localidades turísticas.
Ética nas publicações
No interior do jogo acadêmico, de acordo com pesquisadores da Organização Mundial de Saúde
práticas não éticas incluem também a duplicação ou sobreposição de
artigos (submeter ou publicar o mesmo artigo em mais revistas), ou a
publicação “salame” (um trabalho é artificialmente dividido em
pedacinhos pouco relevantes, para render mais publicações). Tais
práticas, ainda que extremamente comuns, são claramente não éticas.
Aumentam inutilmente o trabalho de revisão dos cientistas pareceristas,
como também a energia e os materiais utilizados, produzindo informações
duplicadas ou não relevantes. Além disso, fragmentam o conhecimento,
dificultando seu acesso e uso por parte dos leitores. Enfim, o que é
mais importante, tais práticas conferem uma vantagem para os
pesquisadores menos honestos: no sistema atual acadêmico, onde é
considerado melhor quem pública mais artigos, quem não se serve de tais
truques corre o risco de desaparecer do mapa. Maiores ainda são os problemas éticos ligados à autoria
dos artigos, onde práticas não éticas comuns incluem “autoria
convidada” (para agradar pessoas importantes, para troca de favores ou
para aumentar as chances de publicação, uma pessoa que na verdade não
participou de forma relevante do trabalho assina o artigo), autoria
“pressionada” (quando o líder de um grupo o departamento exige assinar
trabalhos em que não participou); autoria “fantasma” (quando pessoas
que contribuíram com o trabalho não assinam, por exploração injusta ou,
ao contrário, porque querem esconder seu nome, filiação e conflito de
interesses). Em 2004, a cientista Adriane Fugh-Berman, da Escola de
Medicina da Universidade de Georgetown (EUA), recebeu, pela empresa
britânica Rx Communications, a proposta de revisar e assinar como
autora um artigo, praticamente já escrito por anônimos, sobre um
remédio anticoagulante, o Warfarin. A Rx Communications (que se
orgulha, em seu site,
de dispor de uma equipe de "mais de 100 escritores especializados",
capazes de produzir "desde resumos até manuscritos completos" de
relatórios de testes clínicos), tinha sido contratada pela
multinacional AstraZeneca para produzir artigos que mostrassem
desvantagens ou efeitos adversos do remédio, sendo que a farmacêutica
estava prestes a lançar uma droga concorrente Fugh-Berman se recusou a assinar o artigo.
Pouco tempo depois, descobriu uma versão muito parecida, assinada por outro pesquisador supostamente “independente”, e denunciou o fato.
Mentiras com pernas curtas… e longas mãos
Dizem muitos cientistas que as mentiras científicas têm pernas curtas:
se o resultado de um pesquisador não pode ser replicado por outros,
logo é desmascarada a fraude. Porém, em muitas áreas os experimentos
podem ser tão difíceis e caros que a replicação é, na prática, quase
impossível. Por outro lado, mentiras com pernas curtas podem ter mãos
longas, e conseqüências graves. Se algumas conseqüências dos
comportamentos não éticos são internas à comunidade científica (uma
teoria que se demostra errada, um prêmio não merecido), outras tocam
outras partes da sociedade (na forma de prejuízos econômicos: anúncios
de descobertas podem ter conseqüências relevantes em bolsa, por
exemplo). Algumas podem ser muito graves: por exemplo, no caso de um
remédio declarado, injustamente, ineficaz e que, ao contrário, pode
salvar vidas. Como fazer então se as pernas de uma fraude não são
curtas suficientemente para serem inócuas?
Para
alguns cientistas, no Brasil e afora, os mecanismos de auto-regulação
da ciência devem ser aperfeiçoados, mas podem dar conta do problema. A
mídia e a população devem ficar por fora do debate: ética da ciência,
dizem, é coisa complexa, e deve se discutir somente no âmbito acadêmico.
Giancarlo Sturloni tem uma resposta radicalmente oposta: “no momento em
que uma pesquisa se torna atividade de domínio público, no sentido que
são públicos os grandes recursos de que necessita, ou no sentido que
suas aplicações, ou as questões levantadas, têm grande impacto na
população, devem tornar-se públicos também os debates e os mecanismos
para discutir ética, fraudes e conflitos de interesse”. O pesquisador,
especialista em percepção e comunicação do risco tecnológico, lembra
que nem a fraude de Hwang nem a de Sudbo foram descobertas por meio da
revisão dos cientistas. E conclui: “controle e descoberta da fraude nem
sempre são procedimentos internos à academia. Menos ainda podem ser
internos os debates éticos”.
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