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Artigo
A Aids em Campinas
Por Maria Cristina Januzzi Ilário e Salma Regina Rodrigues Balista
10/05/2006

O importante avanço científico e tecnológico no tratamento da Aids através da terapia anti-retroviral propiciou aumento da sobrevida e qualidade de vida às pessoas afetadas, garantido pela política pública nacional de enfrentamento da epidemia. Paradoxalmente, o fato de conferir uma maior proteção aos indivíduos atingidos, acaba por provocar uma falsa sensação de segurança na população em geral de que o problema está resolvido, levando a flexibilização das atitudes de prevenção e proteção individual e coletiva.

O panorama internacional retrata, sem dúvida, o crescimento dessa epidemia ainda não controlada, mesmo que alguns países, destacadamente o Brasil, tenham investido recursos financeiros e institucionais de forma prioritária para essa área programática.

A sustentabilidade de resultados positivos alcançados está intrinsecamente relacionada à forma de financiamento, gestão, controle social e à capacidade de análise e intervenção em tempo real, a partir das características da tendência da epidemia, que se faz pelos casos notificados de Aids e, mais recentemente, pela notificação de casos HIV positivos.

Ações de valorização, capacitação e atualização de profissionais de saúde, nos âmbitos público e privado, têm se mostrado estratégias relevantes.

Aids – Introdução

Duas décadas após os primeiros casos de Aids em Campinas, com 4397 casos notificados entre crianças e adultos, é possível analisar algumas características da ocorrência desta enfermidade no município. Os dados aqui apresentados, de pessoas residentes no município, foram atualizados em 25 de novembro de 2005 da base municipal do Sistema Nacional de Agravos de Notificação (Sinan). Para obtenção dos dados de mortalidade e população utilizou-se o Sistema de Informação de Mortalidade (SIM).

Na primeira década da epidemia (1980-1990), observava-se perfil majoritariamente masculino, sendo a principal categoria de exposição a sexual/homossexual e bissexual. A segunda categoria de exposição era a sanguínea, com concentração de casos entre usuários de drogas injetáveis, seguida por transfusão de sangue e hemoderivados. Esta última teve uma diminuição importante e consistente a partir da década de 90, conseqüência da evolução na qualidade do controle do sangue no país.

Na primeira metade da década de 90, a epidemia ainda expressivamente masculina mostrava mudança de perfil; a categoria de exposição sanguínea/ usuário de droga injetável (UDI) passou a ser a principal categoria de exposição e iniciava o crescimento da participação de mulheres, através de exposição sexual/heterossexual. Ressalta-se que grande parte dessas mulheres referia ter ou ter tido parceiro sexual usuário de drogas injetáveis (UDI).

Atualmente, nos últimos anos, verifica-se em Campinas a desaceleração da epidemia com tendência à estabilização da velocidade de crescimento, evidente feminização e crescimento do número de casos por categoria de exposição heterossexual para ambos os sexos.

O sucesso da política nacional de combate à Aids é resultado da mobilização, controle e participação social, aliada à resposta competente e de qualidade por parte do poder público e profissionais de saúde.


A análise que se segue têm como referência essa parceria e o respeito à história de construção do Sistema Único de Saúde.



Incidência em Campinas e categorias de exposição hierarquizada

A incidência da Aids, após atingir seu pico em 1996, vem apresentando uma diminuição com tendência de estabilização. (Gráfico 1).


Fonte: SINANW e TABNET/CoViSA e CII/SMS/Campinas


Quanto à categoria de exposição, nota-se um aumento do percentual de casos na categoria de exposição sexual/heterossexual ao longo de todo período, em ambos os sexos, mais acentuado nos últimos cinco anos. Ao se analisar separadamente a categoria de exposição por sexo, entre os homens, observa-se que, de 2002 a 2004, houve elevação do número de casos entre homossexuais, e entre as mulheres notadamente a elevação por categoria de exposição sexual/heterossexual (Gráficos 2 e 3).


Fonte: SINANW/CoViSA/SMS/Campinas




Fonte: SINANW/CoViSA/SMS/Campinas


A categoria de exposição sanguínea/uso de drogas injetáveis (UDI) apresenta diminuição em ambos os sexos.

Esta diminuição pode ser atribuída à atuação do Programa de Redução de Danos, bem como da alternância de uso das substâncias psicoativas, como, por exemplo, a substituição da cocaína injetável por crack, que responde a mudanças sócio-culturais e econômicas relativas ao consumo e mercado das drogas.

Ao detalhar a análise na categoria de exposição sexual/heterossexual, nota-se algumas particularidades entre sexo e entre as faixas etárias. Assim, na Tabela 1, é possível comparar a incidência média por sexo e faixa etária dessa categoria de exposição, no início da década de 90 e entre 2000 e 2004. Embora tenha ocorrido um aumento da incidência nas idades de 20 a 49 anos, tanto entre homens como em mulheres, este é mais significativo entre as mulheres. Chama a atenção, também, o aumento importante da incidência nas idades acima de 50 anos, especialmente no sexo feminino.

TABELA 1 - Incidência média de Aids na categoria de exposição heterossexual, segundo faixa etária e sexo, Campinas/SP

Mulheres


Homens

1991-1995

2000-2004

Variação


1991-1995

2000-2004

Variação

15 a 19 anos

1,5

1,7

1,1


1,0

0,4

-0,4

20 a 29 anos

11,0

24,8

2,3


10,3

12,4

1,2

30 a 39 anos

9,7

35,7

3,7


20,7

33,1

1,5

40 a 49 anos

9,3

28,7

3,0


11,3

33,5

3,0

50 a 59 anos

1,8

13,1

7,3


8,4

18,9

2,2

60 e +

1,0

4,0

4,0


1,3

5,4

4,1

Fonte: SINANW e TABNET/ CoViSA e CII/SMS/Campinas

Incidência por sexo e faixa etária

A distribuição por faixa etária mantém maior incidência nas idades entre 20 a 49 anos. Observa-se aumento na faixa etária de 50 a 59 anos, que comparado ao coeficiente de incidência nessa faixa etária em 1991 e o registrado em 2003, demonstra incremento de aproximadamente 5 vezes (Tabela 2).

Infere-se que o aumento de sobrevida no país, decorrente da melhoria na tecnologia em saúde e políticas públicas voltadas para a qualidade de vida na terceira idade, associado também à preservação da atividade sexual, vêm caracterizando uma nova vulnerabilidade para as faixas acima de 50 anos.

Tabela 2 – Coeficiente de Incidência de Aids (casos/100.000hab), segundo faixa etária, Campinas/SP.

Faixa Etária 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004
15-19 23.0 10.0 9.9 7.0 11.1 8.3 5.5 5.4 5.4 1.3 4.0 5.3 0.0 1.3
20-29 60.8 52.9 61.9 72.0 70.2 87.9 57.5 50.8 42.4 49.4 40.0 40.7 42.3 31.5
30-39 62.4 86.1 90.0 97.2 125.8 122.2 97.2 143.6 103.4 109.0 92.4 91.3 80.8 73.8
40-49 41.4 35.6 58.5 33.0 55.7 82.0 73.1 86.4 69.9 69.1 75.0 75.9 82.2 61.9
50-59 10.9 12.7 18.4 15.9 15.4 20.6 20.1 48.0 32.9 22.0 26.5 38.7 52.0 20.2
60 e + 2.4 9.0 6.4 6.1 3.9 5.6 10.7 12.0 14.8 7.9 12.3 5.9 5.7 15.7

Fonte: SINANW e TABNET/ CoViSA e CII/SMS/Campinas

Em relação à distribuição por sexo, no início da epidemia havia predominância do número de casos no sexo masculino sobre os casos no sexo feminino. A razão entre sexo masculino e feminino em 1987 foi de 11/1. Atualmente, essa razão é de 2/1. A mudança desse perfil pode ser verificada no Gráfico 4.



Fonte: SINANW/CoViSA/SMS/Campinas

Distribuição geográfica

Além das mudanças de natureza etária, categoria de exposição e de gênero, houve também mudanças na distribuição geográfica. Ao se comparar as regiões, nota-se que no início dos anos 90 as maiores incidências ocorriam nas regiões norte e leste, áreas onde se concentram os bairros de população de maior renda. Já nos últimos 5 anos houve diminuição na incidência nessas regiões com aumento nas regiões sul, sudoeste e noroeste, onde residem populações de menor renda. (Gráfico 5)

Essa nova conformação da distribuição geográfica pode ser atribuída à melhoria do acesso dos pacientes aos serviços de saúde daquelas regiões, assim como pela melhoria do diagnóstico pelas Unidades de Saúde, especialmente durante o pré-natal. A cobertura do aconselhamento e testagem para o HIV e sífilis no pré-natal das unidades do SUS/Campinas é, atualmente, da ordem de 95%.


Fonte: SINANW e TABNET/CoViSA e CII/SMS/Campinas


Mortalidade

A mortalidade por Aids em Campinas teve queda abrupta de 55% em meados de 1996, quando a terapia anti-retroviral combinada foi adotada no protocolo nacional, e mantém tendência de declínio nos anos mais recentes. A qualidade dos serviços de assistência especializados, de acordo com recente pesquisa nacional, é o principal fator de redução da mortalidade por Aids. O Centro de Referência do Programa Municipal de DST/Aids de Campinas foi classificado nesta pesquisa, como Serviço de Excelência.

Os coeficientes de mortalidade atuais podem ser observados no Gráfico 6.


Fonte: SINANW e TABNET/CoViSA e CII/SMS/Campinas

Aids em crianças

O primeiro caso de Aids em criança (0 a 12 anos) foi diagnosticado em 1997 atingindo incidência máxima em meados da década de 90, apresentando declínio nos dois últimos anos. A incidência por faixa etária pode ser observada no gráfico 7.


Fonte: SINANW e TABNET/CoViSA e CII/SMS/Campinas


Conclusões

A Aids apresenta uma dinâmica de distribuição na população em função de características sócio-econômicas, culturais, demográficas e de mudanças tecnológicas como qualquer doença, e também de etnia, gênero, orientação e prática sexual, representação e exclusão social, o que a diferencia dentre as outras. A intervenção no processo saúde/doença traz o desafio de considerar e respeitar as diferenças nas várias gamas da moralidade, crença, orientação e prática sexual, uso de drogas lícitas e ilícitas, atividade sexual comercial entre outras, na defesa do acesso universal e equânime à informação e assistência em saúde. A constante atenção e avaliação dessas características conferem maior efetividade às medidas de prevenção, promoção e proteção à saúde da população, quer seja em intervenções individuais, quer seja na priorização de grupos ou segmentos sociais a receber enfoque adequado às suas vulnerabilidades.

A vulnerabilidade feminina frente à Aids ilustra esse desafio. O risco de infecção pelo HIV para as mulheres através de uma relação heterossexual desprotegida é biologicamente maior que o risco para os homens na mesma situação; a vulnerabilidade de gênero, social e cultural é igualmente proporcional para elas. Necessariamente, na abrangência das atividades cotidianas de prevenção, promoção e proteção dos serviços de saúde, o tema DST e Aids deve fazer parte da rotina, se quisermos controlar o rápido avanço da epidemia, principalmente entre mulheres.

O recrudescimento da epidemia entre jovens homossexuais em Campinas, já observado como tendência há alguns anos na Europa e EUA, demonstra que a solução de continuidade de atividades e projetos específicos a cada segmento ou grupo social, é imediatamente verificado no avanço da epidemia para os mesmos.

Apesar de todos os avanços culturais e tecnológicos a Aids ainda é um grande desafio. O grande exemplo de construção programática nessa área traz a responsabilidade de fortalecimento e de sustentabilidade das ações de vigilância, análise dos dados e

planejamento/ação no âmbito do Sistema Único de Saúde e o desafio de consolidá-lo. Com certeza temos ainda muito a fazer.

Maria Cristina Januzzi Ilário é coordenadora do Programa Municipal de DST/AIDS e Salma Regina Rodrigues Balista é diretora de vigilância em saúde.

Este texto, gráficos e tabelas foram originalmente produzidos para o “Boletim Epidemiológico – Edição Especial: Aids”, da Secretaria Municipal de Saúde de Campinas.