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Reportagem
De que África estamos falando?
Por Rodrigo Cunha
09/04/2008

Dos cinco grandes continentes do globo, o africano é o que tem a imagem mais homogênea ao olhar estrangeiro: ao mesmo tempo em que figura como a origem de todos os negros do planeta – imagem que se sobrepõe à de origem da própria espécie humana –, é visto como um lugar exótico, ainda habitado por grandes animais selvagens, como elefantes, girafas, gorilas e leões, eternamente marcado por guerras civis, muito distante do desenvolvimento atingido pelas nações ricas do mundo ocidental e onde impera a pobreza da maior parte da população. De fato, um grande estereótipo que não condiz com olhares mais atentos. Afinal, se considerarmos que o continente africano é recortado por mais de 80 mil km de divisas, na somatória das 109 fronteiras que separam suas 54 nações atuais, é prudente perguntar: “De que África estamos falando?”

Houve um contato intenso com povos árabes e uma forte influência de sua cultura ao Norte do continente, em uma faixa que abrange desde países mais próximos do Oriente Médio, como a Somália, a Etiópia, o Sudão e o Egito, passando por toda a costa do Mediterrâneo, onde estão Tunísia, Argélia e Marrocos, e se estende até a Mauritânia, já na costa do Atlântico. Para se ter uma idéia, na Mauritânia, o árabe é a língua oficial, que convive com outras cinco, incluindo a dos colonizadores franceses; e praticamente toda a população é de religião islâmica. Se por um lado é possível apontar semelhanças como essas entre certos países, não faltam exemplos de peculiaridades que os distingam.

Enquanto a paisagem do maior deserto do mundo, o Saara, recorta lugares como Argélia e Líbia, ao Norte da África, e a Nigéria, na região Oeste – esse três, membros da Organização dos Países Exportadores de Petróleo –, imensas florestas tropicais caracterizam a África Central, onde fica o Congo. Até em uma mesma região, como o sul da África, há contrastes entre vastos desertos, como o Kalahari, que recorta Botsuana, Namíbia e África do Sul, e grandes vales férteis, como os banhados pelo rio Limpopo, que forma parte da fronteira entre a África do Sul, Botsuana e Zimbábue, percorre o território de Moçambique, até desaguar no Oceano Índico. Também é nítido o contraste entre o desenvolvimento econômico da África do Sul e a pobreza de seus vizinhos; e no Leste da África, embora também tenha enfrentado conflitos internos recentes, o Quênia é uma nação melhor estruturada e mais urbanizada do que países com problemas gerados por guerras civis históricas, como Somália e Etiópia, com os quais faz divisa.

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Até internamente os países africanos também têm sua diversidade. Com uma área total de cerca de 924 km quadrados – o equivalente à região Sudeste brasileira – a Nigéria é o país mais populoso da África, com mais de 135 milhões de habitantes. Ali vivem pessoas de mais de 250 etnias, dentre as quais as majoritárias são Hausa, Fulani, Yoruba e Igbo, que juntas representam 68% da população e cujos respectivos idiomas são as línguas nacionais nigerianas, ao lado da oficial herdada do colonizador inglês.

“O continente é um mosaico de nações, povos, costumes, religiões. Em termos políticos e de desenvolvimento, há muitas diferenças, certamente. O impacto de um tipo de colonização (francesa, inglesa ou portuguesa) estruturou a economia e a política dos diversos países de forma diferente, do mesmo modo que a trajetória de cada um desses países e as opções políticas realizadas depois das independências nacionais”, afirmou Tereza Cruz e Silva, do Centro de Estudos Africanos da Universidade Eduardo Mondlane, de Moçambique, em entrevista à ComCiência. Um grupo de ex-colônias francesas, por exemplo, após sua independência, seguiu uma política conservadora tanto interna quanto externamente. Ela baseava-se nos laços políticos, econômicos e culturais entre a França e as novas classes dirigentes da África, para quem a continuação da presença e influência francesa no continente era útil, em troca de cooperação e assistência financeira.

Já países como Guiné, Mali, Marrocos, Argélia, Líbia, Egito, Sudão e Etiópia, que se alinharam à Gana e ficaram conhecidos como “grupo de Casablanca”, tiveram uma postura mais radical. Gana foi a primeira nação na região abaixo do deserto do Saara a conquistar, em 1957, sua independência, sob a liderança de Kwame Nkrumah. Primeiro presidente de seu país no período pós-colonial, Nkrumah criou ali a base para a propagação das idéias pan-africanistas no continente, que consideravam a África como terra natal de todos os negros e pregavam a independência das nações africanas e a criação dos “Estados Unidos da África”.

O pan-africanismo tem sua origem na diáspora negra, no século XIX, e partiu de uma elite intelectual na América do Norte e nos países de língua inglesa do Caribe, com adesões na Europa e na África Ocidental. O movimento defendia a unidade dos africanos, fosse ela cultural ou ligada ao flagelo da escravidão, da discriminação racial e da submissão nas colônias. Do I Congresso Pan-africanista, realizado em 1900, para o VI, que aconteceu em 1945, na Inglaterra, o enfoque foi gradativamente concentrando-se mais nas questões internas do continente africano. Gana sediou, em 1958, uma conferência na qual foi defendida a criação de um parlamento africano e de uma moeda única para uma sonhada Comunidade dos Estados Africanos Livres. O evento aconteceu um ano após seis países da Europa ocidental terem firmado o acordo que criou o Mercado Comum Europeu, embrião da atual Comunidade Européia, que tem seu parlamento e o euro como moeda comum. Embora o pan-africanismo tenha se desintegrado em diversos partidos nacionais que lutavam pela independência de seus respectivos países, o movimento deixou suas marcas em todo o continente.

Ele é uma das influências apontadas pela pesquisadora moçambicana como fonte de inspiração para o processo de independência em seu país, que fica no sul da África, e portanto, distante geograficamente dos países do norte que formaram o grupo de Casablanca. Além do pan-africanismo e das pressões internacionais após a Segunda Guerra Mundial, Teresa Cruz e Silva aponta a influência de missões religiosas suíças na formação de personagens que conquistaram destaque no período pós-colonial, entre os quais Sebastião Mabote, que integrou a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo). Essa organização guerrilheira iniciou, a partir da vizinha Tanzânia, a luta armada pela independência de seu país, conquistada tardiamente – como a das demais colônias portuguesas – em 1975. Após esse período, a organização se tornou um partido político. “Num contexto em que a Igreja Católica andava de mãos dadas com o regime colonial, as igrejas protestantes, particularmente a presbiteriana, desempenharam um papel importante na luta pelo desenvolvimento de uma consciência nacional. No entanto, elas não abrangeram a maioria da população moçambicana, já que as suas atividades se restringiam ao sul do país”, conta.

As fronteiras na África sempre tiveram e continuam tendo uma importância histórica: além da possibilidade de atravessá-las para organizar a luta armada contra os colonialismos e os regimes racistas no Sul do continente, também conhecido como África Austral (caso de Moçambique, Angola, Zimbábue, Namíbia e África da Sul), as fronteiras também representam para milhões de africanos a única chance de sobreviver às guerras civis nos seus países. A atual divisão geopolítica no continente tem sua origem no que ficou conhecido como Partilha da África, iniciada na Conferência de Berlim, entre 1884 e 1885, com a presença dos colonizadores e de outras nações européias. “Essas divisões administrativas não dividiram as culturas. Moçambique partilha culturas e identidades com os países vizinhos”, observa Teresa Cruz e Silva.

De acordo com o historiador Wolfgang Döpcke, da Universidade de Brasília (UnB), as divisões de território entre os povos não eram uma novidade para os africanos antes da Partilha. E segundo ele, também nos períodos pré-coloniais elas não separavam culturas. “Elas distinguiam entidades políticas, de tamanho muito variado, e não culturais, lingüísticas ou étnicas. Em regra, as entidades políticas, sejam elas pequenas chefias ou grandes impérios, eram menores ou maiores do que as identificações étnicas ou culturais”, diz Döpcke. “As fronteiras dos grandes Estados ou impérios nunca englobaram apenas uma etnia, língua ou grupo cultural. Eram máquinas de integração de grupos, sociedades, chefias de diversas origens, tradições, línguas etc. A etnicidade poderia ter tido uma certa importância, mas não para definir a ‘identidade' do Estado, que era definida politicamente, e sim para estruturar a hierarquia interna”, completa.

O pesquisador Carlos Cardoso, do Conselho para o Desenvolvimento da Pesquisa em Ciências Sociais em África, de Guiné-Bissau, aponta que em seu país deviam existir durante o século XVIII entre setenta e oitenta diferentes reis e chefes tradicionais de grupos étnicos com seu próprio território e sua própria organização social e política. Mas segundo ele, todos estavam, de uma maneira ou de outra, submetidos ao reino mandinga. Atualmente, os Mandinga representam 13% da população, mesmo percentual de outras etnias africanas minoritárias, acima de 1% dos europeus ou descendentes de europeus e em menor número que os 14% de Majacas, 20% de Fulas e 30% de Balantas.

Döpcke, da UnB, aponta um caso curioso envolvendo a relação entre povos Chewa e Ngoni, já no período pós-colonial, no triângulo fronteiriço entre Malaui, Moçambique e Zâmbia. “As pessoas, assim divididas no seu espaço cultural, não somente se moviam livremente na região fronteiriça, mas também selecionavam criticamente as ‘ofertas' que cada Estado fazia. Zambianos atravessam a fronteira para se aproveitar das boas e abundantes terras em Moçambique, mas deixam os seus filhos nas escolas de Zâmbia, que são consideradas melhores. Residentes em Moçambique e Malaui também mandam os seus filhos para a escola em Zâmbia. São utilizados, também, os serviços médicos no lado da fronteira daquele país pelas três nacionalidades, uma vez que em Malaui eles não são gratuitos e, no lado moçambicano da fronteira, não existe hospital. Além disso, agricultores de Moçambique usam os serviços de extensão agrícola de Zâmbia e também vendem os seus produtos nesse país”, ilustra o historiador. A África de que estamos falando é um mosaico de realidades culturais, políticas e econômicas, onde a diversidade caminha lado a lado com o partilhamento de identidades e as fronteiras são extremamente permeáveis.