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Reportagem
Um sistema penal global é possível?
Por Celira Caparica e Fábio Reynol
10/05/2008

Em fevereiro, um escândalo envolvendo sonegação fiscal causou mal estar nas relações entre Alemanha e Suíça. Bancos alemães estariam usando instituições financeiras do pequeno principado de Liechtenstein para repassar aplicações de milionários a bancos suíços. A manobra visava usufruir o inexpugnável sigilo bancário suíço, livrando assim alguns alemães do fisco de seu país. Esse episódio mostra apenas uma dentre milhares de arestas a serem aparadas para que o processo de globalização não passe por cima das legislações de cada nação. Afinal, como punir ações idênticas se cada país as enxerga de modo diferente? Ao contrário da Alemanha, por exemplo, sonegação fiscal não é crime na Suíça, apenas uma contravenção sujeita à multa. Embora a Suíça não faça parte da União Européia, é notório que episódios assim aconteçam até no continente que mais avançou nas unificações supranacionais, a Europa. Que unificação penal, então, podemos esperar do restante do planeta?

A resposta pode passar pelo maior incentivador dos acordos e tratados internacionais, o dinheiro e, não por acaso, também o pivô da crise citada acima. “Para participar de um mercado mundial, os países têm que estabelecer regras comuns entre si. Por isso, é natural que o direito comercial acabe auxiliando nesse consenso”, pontua Alberto do Amaral Júnior, da área de direito internacional da Faculdade de Direito da USP. As regras que regulamentam as transações comerciais mundiais acabam contendo também as penalidades para quem as infringe. Ao lado das leis comerciais, os crimes contra a humanidade, o combate à lavagem de dinheiro e ao terrorismo são as áreas que mais têm encontrado pontos de convergência entre os países para a construção de um sistema penal global, segundo os especialistas.

Porém, antes de estabelecer punições semelhantes, os países teriam de reconhecer como crimes os mesmos atos, o que poderia mexer em questões culturais de cada lugar. “As leis refletem os valores dominantes em cada sociedade”, explica Amaral, “são esses valores que determinam quais serão as condutas consideradas indesejáveis, o seu grau de gravidade e as respectivas punições para cada uma”. Por isso, o especialista considera que um tribunal penal único só seria possível se houvesse um Estado mundial federalizado o que, segundo acredita, é pouco provável. Atualmente, a instância que mais se assemelha a uma corte criminal suprema do planeta é o Tribunal Penal Internacional (TPI), criado em 1998 com o Estatuto de Roma e que hoje conta com o reconhecimento de 105 países, entre eles o Brasil.

O TPI é a primeira instituição penal e global permanente da história. Antes dele, crimes de grande repercussão eram julgados por tribunais especiais provisórios, cujo mais famoso é o de Nuremberg que julgou nazistas após a Segunda Guerra Mundial. O TPI representa um avanço no consenso penal entre a maioria das nações porque dá um código único para todos os países signatários, conforme explica Salo de Carvalho, especialista em Direito Penal da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul: “A interpretação de qualquer texto gera conflitos, mas os problemas aumentam quando se trabalha com textos distintos e autônomos, de legislações de diferentes países. Exatamente por isso o Estatuto de Roma cria legislação penal e processual própria, harmonizando distintos sistemas”.

Embora o TPI seja um passo importante na unificação do sistema penal mundial, a sua alçada é bem restrita, pois só julga crimes de guerra, genocídios e crimes contra a humanidade. Outro fator relevante é que, ao contrário da Corte Internacional de Justiça (CIJ) da Organização das Nações Unidas, o TPI não julga Estados, mas indivíduos, e só atua quando um país não puder ou não quiser julgar um crime que tenha ocorrido sob sua jurisdição. Tanto o TPI como a CIJ estão sediados na cidade holandesa de Haia.

Globalização dos crimes

Para muitos especialistas, o processo de globalização faz com que os consensos na área penal sejam mais do que uma simples escolha para as nações, mas uma questão de necessidade. Os transportes e os meios de comunicação modernos levam velozmente crimes e criminosos além das fronteiras geográficas, o que atinge um dos princípios mais básicos do direito, o da territorialidade. “Esse princípio é uma decorrência da idéia de soberania, ou seja, um crime é julgado pelo Estado que tem soberania sobre o território onde o delito foi cometido. Podemos resumir isso na frase: ‘no meu quintal mando eu'”, explica Carlos Eduardo Japiassú, secretário geral adjunto da Associação Internacional de Direito Penal (AIDP). Segundo ele, é somente a partir do século XIX que começa a aparecer, nos códigos penais, o conceito de extraterritorialidade, ou seja, a previsão da aplicação das leis de um país mesmo em caso crimes cometidos fora dele. O objetivo era evitar que surgissem casos como o de Jesse James nos Estados Unidos do século XIX. “Era um fazendeiro em um estado e bandido em meia dúzia de outros”, exemplifica Japiassú. Isso foi possível porque os estados norte-americanos possuem relativa autonomia para elaborar os seus próprios códigos penais.

Na última década do século XX, o fim da Guerra Fria, e a conseqüente extinção da bipolaridade comunismo-capitalismo, abriu possibilidades para a criação de juízos universais que serviram de ponto de partida, segundo Japiassú, para a elaboração dos chamados sistemas globais de punição. Lavagem de dinheiro e terrorismo são os maiores exemplos de crimes que geraram modelos de códigos penais parecidos em vários países do mundo, mesmo sem haver a criação de uma instituição mundial, como foi o caso do TPI. Em 1999 o G7 (Estados Unidos, Japão, Alemanha, Reino Unido, França, Itália e o Canadá), grupo dos sete países mais ricos do mundo, criou o Grupo de Ação Financeira sobre Lavagem de Dinheiro (Gafi), com sede em Paris. O Gafi elaborou uma série de recomendações aos países para dificultar o usufruto do dinheiro oriundo do crime. Como conseqüência, várias nações começaram a adotar as medidas do Gafi a fim de que não figurassem em listas negras de instituições como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI), por exemplo.

Unificação das punições

Após o reconhecimento dos mesmos crimes, o segundo passo que as nações têm de dar para unificar o sistema penal é estabelecer penas semelhantes. Nesse ponto, os obstáculos são consideráveis e, muitas vezes, são expostos nos processos de extradição. Para extraditar um criminoso, por exemplo, o Brasil exige um compromisso do país-destino para garantir que o extraditado não receba uma punição não prevista no código penal brasileiro. Isso já criou empecilhos em extradições para países que prevêem a pena de morte ou a prisão perpétua, por exemplo. Aqui, a pena de morte é prevista somente em situação de guerra declarada e a pena máxima de detenção é de 30 anos.

Paradoxalmente, apesar de não prever a prisão perpétua, o prisioneiro brasileiro passa mais anos no xadrez do que os condenados dos países europeus que adotam essa pena. “Em muitos países da Europa em que há prisão perpétua é prevista uma revisão de pena após 25 anos, e o detento pode ser até libertado”, esclarece Japiassú. No Brasil, os anos de prisão vão se somando de acordo com o número de crimes com que o réu for condenado. Na prática, o período de detenção brasileiro pode ultrapassar a expectativa de vida do prisioneiro, o que acaba se tornando uma prisão perpétua velada.

Se as diferenças na punição são notórias entre países que partilham tradições jurídicas semelhantes, o abismo se torna muito maior se compararmos nações com culturas ainda mais distintas. O jovem norte-americano Michael Fay sentiu na pele essa diferença cultural. Flagrado em 1994 pichando muros em Cingapura, onde vivia, o rapaz foi condenado a seis meses de cadeia, a uma multa de cerca de US$2.200,00 e a seis chibatadas nas nádegas. Os apelos do governo norte-americano para que a pena corporal fosse substituída só conseguiu reduzir o número de chibatadas para quatro. Os castigos físicos são apenas um ponto a ser equacionado nas diferenças étnicas e culturais. Países como a Arábia Saudita, baseados em interpretações próprias de ensinamentos islâmicos, mantém uma forte discriminação contra a mulher, por exemplo, um fato que inviabiliza o diálogo jurídico com a maioria das nações ocidentais.

E mesmo a comunhão de leis e de penas entre os países não garante um ponto fundamental na justiça, a execução da punição, como lembra o especialista em direito internacional André de Carvalho Ramos, da Universidade Bandeirante de São Paulo e autor de vários livros sobre direitos humanos. “No Brasil, a taxa de eficiência da lei é baixíssima”, observa, o que significa que compactuar com um código penal não é suficiente para que ele seja cumprido. “Reconhecer e tipificar os mesmos crimes e estabelecer penas proporcionais não terá efeito se não houver também um esforço mundial para se fazer cumprir as leis”, acredita Ramos. Sistemas judiciários lentos e ineficazes como o brasileiro, servem de exemplo negativo para o mundo. Mas a impunidade também tem outra origem, especialmente quando falamos de justiça mundial. “Pune quem pode punir”, afirma Carlos Eduardo Japiassú, “Caso o presidente dos Estados Unidos seja condenado por uma corte internacional, por exemplo, quem o fará cumprir a pena?” exemplifica, deixando claro que fazer cumprir uma punição pressupõe poder.

Mesmo com todos esses empecilhos, as instituições e os acordos penais internacionais têm contribuído para a diminuição da impunidade no mundo. Um exemplo recente foi a condenação do Brasil em 2006, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. O Estado respondeu pela morte de Damião Ximenes Lopes, morto brutalmente enquanto estava internado numa clínica psiquiátrica em Sobral (CE). O governo brasileiro foi sentenciado a pagar US$146 mil à família de Lopes, por sua omissão em fiscalizar o estabelecimento em que a vítima estava internada. Casos como esse mostram que mesmo que não surja um consenso mundial no assunto, os esforços atuais têm obtido resultados importantes que vão desde dificultar o trabalho de criminosos internacionais até “puxar as orelhas” das nações que não fazem o “dever de casa”.

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