Nos últimos seis anos o Brasil gastou cerca de R$ 3,9 bilhões no cumprimento de sentenças. Ações na Justiça tratam de medicamentos em falta até tratamentos caríssimos no exterior. Fenômeno é impulsionado pela classe média e interessa às grandes companhias farmacêuticas. Para especialistas, recurso exagerado aos tribunais acaba passando por cima de políticas públicas, porque transforma-se em indústria do direito individual em sobreposição ao coletivo. A saúde no Brasil tem se tornado cada vez mais um caso para os
tribunais. O número crescente de ações judiciais tem afetado drasticamente o sistema de saúde do
país. De acordo com o Ministério da Saúde, nos últimos seis anos o Brasil
gastou cerca de R$ 3,9 bilhões no cumprimento de sentenças. Só no estado de São Paulo, de 2010 a 2015, a
Secretaria de Saúde sofreu mais de 70 mil ações judiciais para o atendimento de solicitações que
vão desde medicamentos em falta no sistema até tratamentos de alto custo no
exterior. Atualmente, São Paulo cumpre aproximadamente 47 mil sentenças
condenatórias, com gasto anual estimado de R$ 1 bilhão. A judicialização do direito à saúde é o fenômeno no qual as
pessoas recorrem ao judiciário com o intuito de garantir o acesso a ações e
serviços de saúde. Como o Brasil possui um sistema de saúde que é misto, isto
é, um sistema que é parcialmente público e parcialmente privado, existem ações
judiciais tanto relativas ao sistema privado quanto ao público. No caso da saúde pública, especificamente, o fenômeno da
judicialização teve início quando a Constituição consagrou, em seu art. 6º, a
saúde pública como direito social de todos os brasileiros. Desde então, de
forma gradual, os profissionais e cidadãos envolvidos nas demandas foram
tomando conhecimento dessa via e, com o aumento da jurisprudência sobre o
assunto, as ações se massificaram. Atualmente, ONGs, associações e outras entidades
começaram a difundir informações sobre o recurso judicial e a população passou
a receber assistência da defensoria pública, tornando crescente o número de
ações judiciais envolvendo o sistema público de saúde. As pessoas recorrem ao judiciário, no caso da saúde pública,
quando não têm suas demandas atendidas pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Isso
ocorre das mais diversas formas. As ações são, por exemplo, em busca de algum
medicamento que já está incorporado ao SUS, mas que, por problemas de aquisição
ou distribuição, está em falta no sistema. Há pessoas que pedem medicamentos de
determinada marca por não estarem satisfeitas com o genérico fornecido pela
rede pública. Existem pessoas que buscam por medicamentos ou serviços que não
estão incorporados ao SUS, como o caso de medicamentos já registrados no
Brasil, com eficácia comprovada, mas que o sistema não oferece, ou mesmo
produtos, como próteses e órteses específicas, que não estão incluídos no SUS.
Há casos em que as pessoas pedem tratamentos não registrados no país, isto é,
medicamentos e tratamentos ainda experimentais que, por estarem em fase de
estudo, não foram registrados pela Anvisa, mas que, por alguma razão, são de
conhecimento de médicos que acompanham tais estudos e começam a prescrevê-los.
Existem casos de cidadãos que recorrem ao judiciário para questionar o lugar na
fila de transplante ou exigir tratamentos de alto custo em outros países. Judicialização da política Para Gustavo Kloh, professor de direito da Fundação Getúlio Vargas,
existem duas causas básicas para a judicialização da saúde pública brasileira.
A primeira delas se resume à má gestão do sistema. Exemplo disso são ações que
questionam o acesso a medicamentos cuja distribuição é garantida pelo SUS, mas
que, por má gestão, não estão disponíveis no sistema. Já em outros casos, a
judicialização da saúde é consequência de algo muito mais complexo, que se
chama judicialização da política, explica Kloh. Na judicialização da política critérios técnicos são
desconsiderados e substituídos por critérios judiciais, isto é, temos a
substituição de uma política que é geral e igual para todos por uma decisão
obtida por uma pessoa e que está modificando a maneira como o serviço é
prestado pelo Estado. Kloh exemplifica: “quando alguém vem ao SUS e pede um tratamento
experimental, uma prótese ultra cara, essa pessoa está embaralhando o sistema,
é o caso então de uma judicialização da política; essa pessoa está conseguindo,
pelo judiciário, uma coisa que a política negou para essa pessoa”. Para Kloh,
nesses casos as decisões teriam que ser negadas: “O SUS não tem que pagar
próteses caríssimas, tratamentos experimentais”. O professor justifica: “A
formulação da política pública foi feita por alguém com capacidade técnica pra
entender o que o SUS deve ou não pagar, aí vem uma pessoa e, através do judiciário,
consegue modificar a política pública, que é pensada para atender a todos;
trata-se, portanto, da judicialização daquela política”. Outro exemplo dado por Kloh são os casos para se discutir o lugar
em filas de transplantes. “Nos casos em que uma decisão judicial modifica o
critério da fila de transplantes, como já aconteceu algumas vezes aqui no Rio
de Janeiro, ocorre a desconsideração de um critério técnico que foi
estabelecido, substituindo esse critério técnico por um judicial e deixando de
tratar todo mundo igualmente. Sendo portanto mais um caso de judicialização da
política de saúde pública”, explica o professor. O custo do direito Segundo Kloh, outra questão que existe no âmbito da judicialização
da saúde pública diz respeito aos custos dos direitos. “Pode ser que exista
algum serviço, algum tratamento, que o Estado não ofereça por achar que é um
tratamento muito caro e as pessoas vão lá e obrigam o SUS a fornecer. Um exemplo
interessante é o das próteses. O SUS fornece próteses bastante simples, porém é
possível, através do judiciário, fazer com que o SUS compre próteses de último
tipo, que chegam a custar R$ 200 mil. Por que o Estado não estabelece como
política fornecer próteses de R$ 200 mil? Porque não há orçamento para isso. Aí
a pessoa vai lá e, através de uma decisão judicial, consegue que o Estado pague
essa prótese de última geração, bagunçando todo um sistema que foi construído
para atender ao coletivo”, comenta o professor. Outro aspecto ressaltado por Kloh é o fornecimento de medicamentos
pelo SUS a pessoas que deliberadamente afirmam que não são hipossuficientes (baixa
renda) e mesmo assim pedem medicamentos. Na opinião dele, em certas situações,
em que não haja sequer a alegação de hipossuficiência, é razoável negar o
fornecimento de um medicamento. Para Keyla Pimenta, advogada que estudou o fenômeno da
judicialização da saúde na comarca de Campinas, o problema, na verdade, não
está na pessoa que é hipossuficiente receber um medicamento disponibilizado
administrativamente pelo SUS, mas sim em ela acreditar que deve receber da rede
pública todo e qualquer tipo de medicamento. “A questão se agrava quando se
sabe que a judicialização não emana das classes mais baixas da população e que
o dinheiro utilizado para arcar com tratamentos milionários pode faltar para a
compra dos padronizados para hipertensos, por exemplo”, comenta. Keyla destaca ainda que não se pode pensar em universalidade sem
equidade: “Todos devem poder receber os mesmos serviços e isso é atender a
universalidade de forma equitativa, porém, as demandas individualizadas
camuflam a existência de outras pessoas a quem os recursos também devem ser
dirigidos”. Casos como os abordados por Kloh são exemplos da judicialização da
saúde, como uma indústria do direito individual se sobrepondo ao coletivo. “O
uso do recurso judicial esvazia os espaços de discussão política, fazendo com
que as pessoas pensem o problema de forma individualizada, equiparando-o às
relações de consumo”, comenta Keyla. Para ela, o fenômeno da judicialização da saúde pública subtrai a
luta por demandas sociais da arena de conflitos políticos ao passo que as
questões sociais são camufladas em pautas judiciais individualizadas. Dessa
forma, o orçamento voltado para as ações e programas de atendimento coletivo
tem sido consumido cada vez mais para o atendimento das ações judiciais. Nesse
sentido, a discussão sobre a judicialização do SUS toma outro rumo, indo além
dos casos para obtenção de medicamentos, chegando-se ao nível de
questionamentos sobre gastos exorbitantes com um paciente em detrimento de
milhões de outros. Segundo Kloh, a questão central nesse contexto é: “O judiciário
deveria decidir fora da política pública? Decidir o caso concreto sem levar em
consideração a delimitação passada no geral?” Para ele é resposta é não, o judiciário
não deveria pedir direitos que não estão previstos na política pública ou mudar
a forma de exercê-los. Keyla destaca ainda que, além do fato deste ser um
fenômeno atribuído à classe média, a judicialização da saúde envolve diversos
outros aspectos negativos, como o distanciamento decisório para a primeira e a segunda
instâncias judiciais; a influência da indústria farmacêutica na construção do
fenômeno; a insuficiência do poder judiciário em considerar elementos que não
sejam eminentemente jurídicos; a pouca atenção dada pelo judiciário às medidas
promovidas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e outras instituições, entre
outras questões. “Eu não busco deslegitimar ou desqualificar completamente a
interferência judicial no tema, que é necessária em alguns casos, porém, não
podemos deixar de criticar as limitações e deficiências da atividade judicial,
que alimentam interesses privados camuflados e podem fazer perdurar ou mesmo
agravar os problemas que queremos sanar”, completa a pesquisadora. Judiciário desinformado Para Kloh, falta um esclarecimento, tanto ao judiciário quanto à
população, sobre a maneira na qual são formuladas as políticas do SUS. “Quando
o SUS decide, por meio dos seus técnicos, que tal ou qual serviço é prestado de
tal ou qual maneira, isso é feito com embasamento técnico, com o intuito de atender
e tratar todo mundo igualmente. Contudo, não é esclarecido para a população e
para o judiciário qual é esse embasamento. Eu vejo que acontece muito um
problema de informação. Falta um esclarecimento tanto para o judiciário, quanto
para a população, sobre a política que está sendo adotada”. Para o especialista, deveriam ser realizados fóruns, seminários,
cartilhas e o que mais fosse necessário para esclarecer que o SUS age com
critérios – e quais são esses critérios. “Por exemplo, no caso de fornecimento
de próteses, deveria ter um maior esclarecimento de que a prótese fornecida é
tal e qual, porque ela tem um custo que é aceitável, que ela atende uma norma
da ABNT etc., a fim de explicar o porquê se fornece aquele tipo de prótese e
não outras mais caras”, explica o professor. Para Kloh, com esse
esclarecimento, o juiz saberia que o SUS adotou um critério, de custo da
prótese que o sistema consegue pagar, que permite atender milhares de pessoas,
o que não seria possível se fosse aquela que custa 200 mil. Kloh complementa
dizendo que essa também pode ser um forma de evitar que decisões sejam
influenciadas em favor de interesses econômicos de quem queira vender produtos
ou serviços caros. Keyla também destaca essa questão: “A falta de capacidade técnica
dos juízes para analisar questões em saúde, pública e coletiva, dá oportunidade
para que muitos segmentos tentem estimular os participantes dos processos
judiciais de forma a atender seus interesses privados”. Isso tem aberto brechas
para ações articuladas envolvendo clínicas, empresas farmacêuticas, médicos,
advogados e associações sem fins lucrativos no sentido de maximizar o ganho do
mercado em supressão aos interesses públicos, como em muitos casos de golpes e
fraudes que vieram à tona nos últimos tempos. Fraudes e golpes “As fraudes geralmente envolvem médicos, empresários,
propagandistas, advogados e indústrias farmacêuticas, e é possível a existência
de alguma manipulação do judiciário, provavelmente em razão da falta de
conhecimento técnico”, comenta Keyla. “Entre os casos mais emblemáticos, temos os golpes envolvendo
filas de atendimento, onde as pessoas ficam na fila e nunca conseguem ser
operados pelos hospitais até que ingressam com ação judicial e o hospital
informa um preço superfaturado de cirurgias e outros serviços”, comenta Keyla.
Outro exemplo é o caso que ficou conhecido como “máfia das próteses”,
envolvendo médicos e empresários em esquemas de desvio de dinheiro do SUS,
realização de cirurgias desnecessárias, superfaturamento de equipamentos, troca
fraudulenta de próteses e uso de material vencido em pacientes. Para Keyla,
evitar fraudes e golpes depende da articulação entre os órgãos e da busca do
entendimento das deficiências e limitações institucionais sobre os quais os
mecanismos de fraude operam. A solução é a Justiça ouvir outros entes públicos Quando
questionada sobre como a relação entre os gestores da saúde e o judiciário pode
ser trabalhada para contribuir no entendimento da judicialização da saúde,
Keyla é enfática: “O judiciário não deve se manter
exógeno às inúmeras questões envolvidas e sim se debruçar sobre elas de forma
articulada com os demais entes públicos”. Nesse sentido, a pesquisadora destaca
a necessidade de a Justiça atentar para a implementação de medidas relacionadas
ao tema que já foram apresentadas pelo CNJ, pela Comissão Nacional de
Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec) e pela Organização Mundial da
Saúde (OMS). Entre as medidas já tomadas está a aprovação da Recomendação
31/2010 – fruto de árduas discussões entre profissionais, gestores, juristas e
comunidade científica. O texto, aprovado pelo CNJ, traça diretrizes para os
magistrados quanto às demandas judiciais que envolvem a assistência à saúde. “Mas
o judiciário tem ignorado boa parte das principais discussões, que nem sempre
chegam aos autos”, comenta Keyla. O mais recente ato do CNJ sobre o tema foi a aprovação de uma
resolução, no último dia 30 de agosto, que dispõe sobre a criação de comitês estaduais
de saúde para dar efetividade à Resolução 107/2010, que criou o Fórum
Nacional do Poder Judiciário para a Saúde e instituiu os comitês como
instâncias adequadas para encaminhar soluções e garantir a melhor forma de
prestação jurisdicional. Para Keyla, a criação dos comitês é uma medida importante para estreitar
as relações da Justiça com os representantes do executivo de estados e municípios,
porque busca promover maior diálogo e cooperação entre os poderes. Por outro
lado, ressalva a especialista, a criação dos comitês estimula o protagonismo do
judiciário na matéria, o que pode não ser condizente com o objetivo geral de
frear a judicialização excessiva. Uma medida que, atrelada à criação dos comitês,
teria grande potencial de evitar a excessiva judicialização, seria o Projeto
de Lei 8058/2014, que cria um processo especial para controle e
intervenção do judiciário em políticas públicas.
O grande problema, destaca Keyla, é a observância das recomendações.
“Não há um sério compromisso, é preciso criar meios de entendimento com maior
grau de vinculação entre os órgãos”, comenta. São necessárias, portanto, medidas
articuladas e transversais entre os diversos entes públicos para lidar com
questões tão complexas.
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