Em 2010, logo após as eleições, uma pesquisa pediu aos eleitores que classificassem os principais partidos brasileiros em uma escala da esquerda para a direita(1). Cerca de 30% dos entrevistados responderam que não sabiam o que era esquerda ou direita. Dos demais, muitos não sabiam classificar alguns partidos específicos. Algumas siglas, apesar de amplamente conhecidas na opinião pública, pareciam estranhas para cerca de 20% dos respondentes quando se tratava de classificá-las entre esquerda e direita.
Por que essa tarefa é tão complexa? Parte da resposta está nas mudanças que os conceitos de esquerda e direita sofreram ao longo da história. Outra parte está nos significados específicos que cada sociedade atribui a essas palavras. Ou seja: o conteúdo desses conceitos varia no tempo e no espaço, e mesmo entre os especialistas há um considerável debate a este respeito.
Rastreando o uso dos termos esquerda e direita na política, chegamos até a disposição dos assentos dos delegados dos estados gerais durante a revolução francesa no século 18: os defensores da igualdade e mudanças (os burgueses) sentavam-se à esquerda do rei e os representantes da aristocracia conservadora, à direita.
No século 19, a defesa dos interesses da classe operária e do socialismo passa a ser incluída nas bandeiras de esquerda e a burguesia capitalista passa a ser identificada com a direita. No século 20, o estado de bem-estar social, com suas políticas redistributivas, consolida o liberalismo econômico na direita e a socialdemocracia na esquerda.
Uma das perspectivas mais populares na ciência política usa como critério o peso que o Estado deve exercer na economia(2). Na extremidade esquerda estariam aqueles que defendem o controle pleno da economia pelo governo, e na extremidade direita aqueles favoráveis à total liberdade de mercado. Entre as duas extremidades há muitas possibilidades de posicionamento.
A ênfase na gestão da economia, entretanto, é vista por alguns como muito simplista e insuficiente para distinguir ideologias em países com histórias diferentes. Por exemplo, bandeiras dos partidos de esquerda na Europa são muito diferentes daquelas dos partidos americanos e dos brasileiros. O mesmo ocorre com as bandeiras de direita que abrigam conteúdos diferentes conforme o país.
No Brasil, o que hoje identificamos como a distinção entre esquerda e direita está muito ligado aos dois lados em oposição durante o regime autoritário. A justificativa para o golpe militar foi a contenção de uma suposta ameaça comunista. Por se oporem à esquerda, os partidários dos governos militares e seus sucessores são, assim, facilmente classificados como de direita. Entretanto, os partidos de esquerda e seus sucessores, alvo da repressão durante a ditadura, abraçaram como sua principal bandeira a retomada da democracia. Esse conteúdo é muito específico do contexto brasileiro e estranho às bandeiras da esquerda europeia, por exemplo.
A ciência política dispõe de vários instrumentos para medir a posição ideológica dos partidos. A posição ideológica é uma preferência que não é diretamente observável, por isso o melhor que podemos fazer é procurar pistas que a indiquem. E cercar a questão a partir de diferentes abordagens, sempre lembrando que cada uma possui suas próprias potencialidades e limitações, e que o objetivo fundamental não é descobrir "a" abordagem mais correta, mas sim combinar e comparar o potencial explicativo de cada uma delas.
Uma alternativa é verificar como os deputados dos partidos representados no legislativo se comportam em votações nominais. Identificam-se aqui duas estratégias. A primeira consiste em reunir um grande número de votações (o que a priori conferiria à análise maior capacidade explicativa em função do grande número de observações). Uma análise que leva em conta todas as votações ocorridas em uma legislatura constitui-se em exemplo dessa estratégia. A segunda estratégia consiste em pinçar desse universo de votações apenas aquelas em que a ideologia é posta em questão. Neste caso, é fundamental deixar o mais transparente possível quais foram os critérios que os analistas utilizaram para definir que temas/questões farão parte dos cases analisados. Isto é, os filtros que definirão o que é e o que não é ideologia constitui-se em etapa crucial da análise.
O problema dessa alternativa é a diferença entre o comportamento e a ideologia. Na ciência política contemporânea há uma séria preocupação em não confundir o comportamento observável com as reais preferências dos atores. Isso significa que não devemos interpretar o que vemos os políticos, eleitores e partidos fazerem como sendo o retrato fiel do que eles realmente acreditam e defendem. Por exemplo, um eleitor pode votar em um candidato mesmo preferindo outro, porque avalia que aquele não terá chances de vencer. Um deputado pode apoiar o governo por estratégia, mesmo discordando de suas propostas. Da mesma forma, não podemos afirmar que alguém ou algum partido é de direita ou de esquerda apenas observando seu comportamento no legislativo.
Uma segunda abordagem constitui-se na sondagem de, pelo menos, três categorias de entrevistados sobre o posicionamento dos partidos no eixo esquerda-direita: os eleitores, os especialistas e a própria elite política. Com os três tipos de público, um perigo a ser levado em consideração é que, ao fim e ao cabo, essa segunda abordagem pode medir mais a imagem que os partidos projetam nos entrevistados do que, necessariamente, como os partidos se posicionam.
Uma terceira abordagem constitui-se na análise dos programas partidários e de governo lançados pelos partidos políticos. Embora distantes da maioria do eleitorado, tais documentos constituem-se em fontes importantes sobre a forma como o partido/candidatura vê o mundo, o governo e o contexto no qual o mesmo se insere. E são lidos e analisados minuciosamente, seja pelos adversários, seja pelos analistas políticos. O problema é que o conteúdo desses documentos nunca é elaborado somente a partir das preferências de um partido/coligação, já que leva em consideração também a estratégia eleitoral (definida pela coordenação de campanha/direção partidária), o perfil (e histórico) dos candidatos e elementos do contexto eleitoral (se o governo atual é bem ou mal avaliado e se o partido em questão é governo, ou oposição), dentre outros elementos.
No Brasil todas essas alternativas já foram aplicadas e várias delas resultaram em classificações semelhantes. Questionários já foram aplicados a cientistas políticos, deputados e eleitores. Programas partidários e votações parlamentares já foram analisados. A maioria das classificações concorda sobre quais dos principais partidos estão mais próximos de cada extremidade (esquerda ou direita). Sobre os demais partidos pairam muitas dúvidas, seja porque são muito recentes ou porque reúnem políticos vindos de outros partidos muito distantes no espectro ideológico.
Diferentemente do que ocorre em outros países, o sistema partidário brasileiro não se caracteriza por profundas distinções ideológicas, e os eleitores geralmente escolhem seus candidatos sem grandes considerações sobre a ideologia dos partidos. Mesmo assim, identificar onde um partido se situa entre a esquerda e a direita pode ser importante para compreender sua atuação no legislativo, no governo e na sociedade.
Embora cada um desses "lugares" seja relevante para a questão em tela (e aqui, voltamos ao ponto de partida), são diferentes manifestações da questão captadas em cada abordagem - todas parciais e, ao mesmo tempo, fundamentais para compreendermos a questão na sua complexidade. A ciência nos fornece uma coleção de métodos imperfeitos em vez de uma receita única à prova de viés, mas também nos recomenda combinar todas as ferramentas disponíveis, com rigor e transparência. Se a distinção esquerda-direita é um aspecto importante no sistema partidário brasileiro e, ao mesmo tempo, uma tarefa difícil para o eleitor, é assim que nos cabe enfrentá-la.
Gabriela da Silva Tarouco é professora do Departamento de Ciência Política da UFPE.
Rafael Machado Madeira é professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais e membro do Centro Brasileiro de Pesquisas em Democracia da PUCRS.
Notas
1 - ESEB - Estudo Eleitoral Brasileiro. A base de dados está disponível no Cesop/Unicamp (http://www.cesop.unicamp.br).
2 - Downs, A. Uma teoria econômica da democracia. São Paulo: Edusp, 1999.
|