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Editorial
Nó górdio
Por Carlos Vogt
09/04/2008

Publicado, originalmente, como prefácio ao romance O cerne da questão, de Graham Greene, São Paulo, Editora Globo, 2007, p.7-21.

O romance que você vai ler não é um entretenimento, ao menos no sentido da distribuição que o autor fez de sua obra.

Graham Greene, de maneira pouco comum entre os autores, classificou os seus próprios livros de ficção agrupando-os em duas categorias: romances e entretenimentos.

O cerne da questão, que traz em seu miolo um nó bem amarrado, é, obedecendo à classificação do autor, um romance, quer dizer, uma obra séria, feita para fazer pensar, refletir, com aprofundamento psicológico dos personagens, adensamento das situações de conflito entre eles e consistência histórica dos cenários políticos, econômicos, culturais e sociais em que ocorrem.

Mas é também entretenimento e dos bons, se não tivermos nenhuma prevenção relativamente à palavra e menos ainda em relação ao prazer inquietante do texto que este livro provoca.

Aliás, o rigor da distinção entre romances e entretenimentos é posto em dúvida por seu próprio autor quando, por exemplo, classifica O terceiro homem, de 1950, como entretenimento, já que se trata de um livro do filme, cujo roteiro Graham Greene fizera para Carol Reed filmar, em 1949, tendo como atores Orson Welles, Joseph Cotten e Alida Valli. O livro tem todas as características de um excelente romance. Pelo suspense, pelo claro-escuro da paisagem articulado ao jogo da duplicidade dos pontos de vista narrativos, pela atmosfera pesada da Viena ocupada por aliados desconfiados um dos outros no fim da guerra e na entrada da guerra fria, constitui, como o filme, uma peça de fino divertimento e de grande qualidade artística e literária.

Classificações à parte, O cerne da questão é, portanto, boa e instigante leitura.

Publicado originalmente em 1948, o romance conta a história de Scobie, major da polícia colonial inglesa em Serra Leoa, África Ocidental. A ação se passa principalmente na cidade de Freetown, capital, cujo nome, dado o clima de clausura, opressão, sufocamento e mexericos em que vivem os personagens, é também uma espécie de ironia literária na composição do ambiente em que se desenrola o cotidiano de suas vidas de funcionários do reino em exílio oficial.

Scobie e Louise, sua esposa, tiveram uma filha que morreu menina quando viviam na Inglaterra, e ele se encontrava em viagem à África. A morte da filha, que não presenciou, será, contudo, revivida no episódio em que ele acompanha a agonia de uma garotinha de seis anos, em Pende, como conseqüência de um naufrágio no qual pereceram também os seus pais.

Scobie é um homem, hoje se diria, de meia idade, com seus 50 anos e tem um senso agudo de responsabilidade aliado a um fortíssimo sentimento de piedade em relação ao mundo, em relação às pessoas, em relação à sua mulher, em relação à amante, em relação a si mesmo:

... não podia descrever para sra. Bowles a inquietude, as imagens que o assombravam, o terrível sentimento impotente de responsabilidade e pena. (p.190)

Em Pende, acompanhando o resgate dos sobreviventes do naufrágio e a sua internação para tratamento, Scobie, além da morte da menina de seis anos, tem mais duas experiências marcantemente próximas a reforçar a sua piedosa paixão e, por que não, a sua piedade apaixonada.

A primeira é a recuperação do menino a quem ele finge a leitura de um livro missionário como se fosse um livro de aventuras e que se encontra no mesmo quarto em que também está Helen Rolt, uma jovem viúva cujo marido pereceu no desastre do navio. Helen se tornará a amante de Scobie enquanto Louise, sua mulher, se encontra na África do Sul, em uma viagem que ela o pressionou a pagar, para escapar da opressão e do cerceamento que sentia em Freetown, no ambiente social freqüentado e formado pelos seus pares, brancos, ingleses e colonizadores, que mal disfarçavam, na sua percepção, o desprezo por seus constantes entusiasmos literários.

As duas, a seu modo, e na diferença de idade que as separa, são parecidas, desprovidas de beleza e graça e nada atraentes.

A responsabilidade e a piedade que atingem “a intensidade de uma paixão”, particularmente quando a feiúra e a fragilidade de sua esposa são mais visíveis, fazem, contudo, o elo do complicado envolvimento com Louise:

Scobie segurou a mão úmida de Louise e beijou a palma: o páthos de sua falta de atrativos o mantinha prisioneiro. (p.55)

E com Helen:

Quando ela se virou e a luz iluminou seu rosto, pareceu feia, com a feiúra temporária de uma criança.

...

Ele não tinha nenhum senso de responsabilidade em relação às belas, graciosas e inteligentes. Elas podiam encontrar seu próprio caminho. Era o rosto pela qual ninguém se desviaria do caminho, o rosto que jamais atrairia o olhar dissimulado, o rosto que logo se acostumaria à recusa e à indiferença que reclamava sua lealdade. A palavra “pena” é usada de forma tão vaga quanto a palavra “amor”: a terrível paixão promíscua que tão poucos experimentam. (p.237)

É a paixão da piedade, a piedade transformada (melhor seria dizer transtornada ) em vício que leva Scobie à armadilha da obrigação moral irreconciliável com os homens, com o mundo, com Deus, consigo mesmo. O adultério e o suicídio de Scobie são conseqüências (saídas?, clausuras?) do mistério da piedade – no sentido teológico e religioso em que se fala do mistério de Cristo –, mistério que a impõe ao homem na ambivalência da virtude e do vício.

Kenneth Allot e Miriam Farris, no estudo crítico The art of Graham Greene1, no capítulo “The universe of pity”, em que são também analisados, além de The heart of the matter (O cerne da questão), The power and the glory (1940) e The ministry of fear (1943), sintetizam bem o mergulho nesse universo de conflitos a que nos levam esses romances:

No mundo decaído, ser feliz é uma impossibilidade para o homem sensível: o que ele deve sentir é piedade – piedade pela juventude e inocência, piedade pelos sofrimentos de toda espécie, piedade até mesmo pelo iníquo.

Camus escreve que os grandes sentimentos geram mundos característicos que lhe são próprios: o mundo de Greene nesses três livros é construído sobre o sentimento de piedade, tal como o mundo de François Mauriac se constrói sobre o sofrimento causado pela decepção (inclusive a decepção consigo mesmo).

O trecho importa não só pela observação precisa como também por fazer referência a dois escritores que, de forma diversa, tiveram grande importância para a literatura de Greene: um deles, Mauriac, pela influência do conteúdo de seus romances, lembrando que Greene dirigiu o projeto de tradução para o inglês da obra do autor francês; o outro, Camus; primeiro, pela atmosfera de A peste que, entre outras coisas, parece se reproduzir no fechamento de Freetown: ratos, baratas, miséria e opressão comprimindo o espaço narrativo de O cerne da questão nos limites do insuportável, física e psicologicamente falando; segundo, pela inscrição existencialista que caracteriza os romances de Greene acima referidos, expondo a própria bondade ao paradoxo de sua ambivalência.

Scobie acompanha, piedoso e responsável, os trabalhos de assistência aos náufragos resgatados em Pende. É noite. Pensa no jovem Pemberton, Comissário Distrital que se matou em Bamba:

Que coisa absurda era esperar a felicidade num mundo tão cheio de sofrimento. (p.189)

Caminha, pára novamente do lado de fora da casa improvisada em hospital. Do peso de sua reflexão, o narrador entrega ao leitor e ao autor, em discurso livre indireto, o título do romance:

A alguém que não soubesse de nada, as luzes lá dentro teriam dado uma extraordinária impressão de paz, assim como as estrelas em uma noite clara davam uma impressão de isolamento, segurança, liberdade. Mas, perguntava-se Scobie, se esse alguém conhecesse os fatos, não seria obrigado a sentir pena até dos planetas? Se chegasse ao que chamavam o cerne da questão? (p.190)

Scobie vai se envolvendo em outros incidentes e é envolvido por outras circunstâncias direta ou indiretamente relacionadas com o pecado do adultério. É dessa forma, como pecador, que ele vive e tem a percepção do caso amoroso com Helen, pois, católico, tal qual vários outros personagens e protagonistas dos romances de Greene, o conflito moral que assim se desencadeia gera o dilema religioso que, assoberbado pelo “terrível sentimento impotente de responsabilidade e pena”, acabará, de modo um tanto melodramático, por levá-lo ao suicídio.

Muitos críticos chegaram a apontar o gosto pela morbidez e pelo melodramático como características marcantes da obra do escritor inglês.

O cerne da questão traz essas marcas e também o contraponto do humor e mesmo do cômico em situações em que a voltagem do drama ameaça subir muito e transbordar os limites que a mobilidade, os avanços e recuos do ponto de vista narrativo impõem como condição da relatividade humana aos conceitos e verdades transcendentes em discussão.

É um romance – e dos bons –, não um tratado de ética, de metafísica ou de teologia.

O enredamento de Scobie na teia de seu próprio conflito aumenta com o dinheiro que toma emprestado ao sírio Yusef para financiar a passagem de Louise à África do Sul, o que o levará, por chantagem do comerciante, a participar de um ato de contrabando no navio português Esperança, que ele, como chefe da polícia colonial, deve inspecionar e controlar e, mais grave ainda, consentir na trama que tirará a vida de Ali, com ele há 15 anos, servindo-o como criado, e com quem sempre manteve uma relação de afeição e de reconhecimento.

O cerne da questão é um romance de provação. Scobie é encerrado no circuito fechado de sua provação e o que o perde definitivamente é a danação da bondade:

O desespero é o preço que pagamos por nos comprometermos com uma meta impossível. É, dizem, o pecado imperdoável, mas um pecado que nunca é cometido pelos corruptos ou pelos maus. Eles sempre têm esperança. Nunca atingem aquele estado paralisante que é o conhecimento do fracasso absoluto. Só os homens de boa vontade carregam sempre no coração essa capacidade de danação. (p.99)

A saga do major Scobie compõe a via-sacra da paixão da responsabilidade e desenha o roteiro da provação do mistério da piedade do homem abandonado ao cumprimento de seu destino, melhor dizendo, de sua destinação, pois que se trata do drama e não da tragédia do homem moderno e da expiação de seus pecados no mundo.

Nesse ponto, ludibriado pela bondade, que como vimos tem dupla face no romance, o herói sucumbe às armadilhas das estações de sua provação e às artimanhas que a intenção do bem faz o arquiteto divino entabular:

Por isso Deus lhes envia a operação do erro, para que creiam na mentira, e para que sejam julgados todos os que não creram na verdade, antes tiveram prazer na iniqüidade. (Tessalonicenses, 2:11-12)

O mistério da piedade de O cerne da questão o inscreve na linhagem de outras grandes obras de grandes autores, entre eles Dostoiéwski, Melville e Camus em que o binômio crime e castigo, com todas as suas implicações éticas, estéticas e religiosas é tratado com a mesma profundidade e finura em estilos diferentes e expressões literárias de diferentes épocas.

Chama a atenção, sob esse aspecto o romance Billy Budd, marinheiro, de Hermann Melville, que tem como urdidura moral e religiosa o mesmo mistério bíblico, agora denominado impiedade.

Quando o autor de Moby Dick morreu, em 1891, esse breve romance histórico estava, depois de incessantes revisões, praticamente pronto, embora só viesse a ser publicado anos mais tarde, em 1924, e tivesse tido como ponto de partida um poema de 32 versos de autoria do próprio Melville a respeito do mesmo tema, que depois será desenvolvido em prosa.

Como em outras obras de Melville, trata-se do embate do Bem e do Mal representado nas alegorias da nau do Estado e da nau da individualidade, mas apresentado de forma viva e tocante pela densidade humana dos personagens e pelo peso divino de suas contradições e conflitos.

O enredo do romance tem origem em um fato histórico ocorrido em 1842, quando a bordo do navio de guerra americano Somers três homens tentam organizar um motim e são julgados por um conselho formado pelos oficiais que os condena à forca e à execução imediata. Em terra, os oficiais são julgados por homicídio e absolvidos, embora estigmatizados para sempre. Entre esses oficiais, um primo-irmão de Melville, Guert Gansenvoort, para quem a narrativa de Billy Budd é também uma forma de reabilitação ensejada pelo romancista.

Em 1846, um jovem marujo da marinha americana, Samuel Jackson, é enforcado por ter batido em um oficial que havia ordenado que seus sapatos fossem jogados no mar porque haviam sido encontrados onde não deveriam estar.

Depois do fracasso de público de Moby Dick e de vinte anos de silêncio, em 1888, já com 69 anos, Melville começa a escrever Billy Budd.

A história é simples: Billy Budd é jovem e simpático, bonito, cheio de sincera devoção à vida e aos valores morais consagrados na época. Levado a bordo do navio britânico Bellipotent tem, desde logo, em oposição e adversidade à sua "dignidade natural", a inteligência, a esperteza, e o interesse apaixonado da "depravação natural" do contramestre Claggart.

O comandante do navio, capitão Edward Fairfax Vere, correto, disciplinado e disciplinador viverá pelo resto de sua vida o drama de ter permitido e autorizado a execução de Billy Budd por ter este golpeado e matado o contramestre Claggart que o acusa, diante do capitão, de incitação ao motim.

Billy Budd, perfeito, simpático, divino mesmo, tem, contudo, um forte traço de humanidade: é gago. Toda vez que se vê envolvido em forte emoção não consegue falar. Quando é acusado por quem tinha como amigo, tamanho é seu acesso de indignação que, não conseguindo falar, explode em um gesto de repulsa e golpeia Claggart, matando-o. É julgado por três oficiais convocados para tanto pelo próprio capitão Vere que funciona, no julgamento, como testemunha que, embora compadecido pela compreensão das razões da atitude do marinheiro, procede formalmente à narrativa oficial que o levará à condenação e à morte.

Billy Budd foi transformado em ópera, por encomenda feita a Benjamin Britten para o Festival of Britain em 1951, e o livreto, baseado na novela de Melville, foi escrito em colaboração com E. M. Forster e Eric Crozier. Ópera moderna, rara, por não comportar papéis femininos, sua estréia deu-se no Convent Garden de Londres no dia primeiro de dezembro daquele mesmo ano, em uma versão em quatro atos. Treze anos mais tarde, uma segunda versão, mais próxima ainda da novela de Melville foi encenada no mesmo teatro.

Foi a essa versão em dois atos, mas ainda assim com quase três horas de duração, que assisti na Òpera Bastille, em Paris, em 2002.

Aqui o navio mercante no qual vem Billy Budd chama-se Rights of man (Direitos do homem), em uma clara alusão alegórica aos ventos revolucionários franceses que dão calafrios nos britânicos; o navio de guerra para onde vai, com mais dois companheiros, chama-se agora Indomitable (Indômito); ter vindo do Direitos do homem constituirá o fundo dos argumentos de amotinação com que o contramestre Claggart o acusará para o comandante, o capitão "Starry Vere" (Vere, o magnífico), como é chamado pela tripulação.
Culto, leitor de Plutarco, sensível, correto, corajoso, justo e íntegro, antes de ser enforcado, tanto na novela, como na ópera, Billy Budd o abençoa: "God bless Starry Vere" (Deus abençoe Vere, o Magnífico). Mas nem o perdão sincero do condenado, exaltando na hora da morte o juiz de seu malogrado destino, aliviará a consciência trágica do capitão sem dela eliminar a dúvida moral sobre o acerto ou o desacerto de uma decisão que custou a vida de um jovem simpático, leal e de futuro promissor. O perdão exaltado de Billy Budd, ao contrário de aliviar suas penas, acentua o seu remorso, fazendo crescer suas dúvidas.

Configura-se, desse modo, um dos dilemas do livro de Melville e da ópera de Britten: os limites e os embates entre a certeza e a ignorância moral e aquilo que por duas vezes aparece em Billy Budd pelo uso da expressão bíblica "o mistério da impiedade", a qual contempla o esforço malogrado de humanidade tanto em Billy como em Claggart.

A visão de mundo que se encontra na obra de Graham Greene reproduz este sentimento de inevitabilidade da perda e contrapõe a idade adulta, suas desilusões realistas, num misto de decepção incontida e feroz resignação à idade da inocência, à infância dos sentimentos, ao paraíso perdido que não sabemos onde se encontra, que não está em lugar algum e para o qual, como anotou Cesare Pavese, todos queremos voltar.

Isso talvez ajude a entender como essa visão de mundo estabelece também o gosto literário de Graham Greene pelo romance de entretenimento e pela narrativa de ação, suspense e aventura, características tão bem consolidadas em O terceiro homem, que, como dissemos, faz conviver a saga inocente do herói redentor com a amarga decepção do amigo convertido pela vilania do mal.

Esperança e resignação formam o binômio que tenciona, pelas pontas, a trajetória do homem no mundo, que é pequeno, mas no qual ele se sentirá, inevitavelmente, em estranho exílio.

Por isso, para Scobie, ao contrário da peça de Calderón de la Barca, em que a vida é sonho e breve, ela é demasiado longa e pesadelo demais:

Scobie tinha a impressão de que a vida era interminavelmente longa. A prova do homem não poderia ser realizada em menos anos? Não poderíamos cometer o primeiro pecado importante aos sete, nos arruinar por amor ou por ódio aos dez, nos agarrar à redenção num leito de morte aos quinze? (p.88)

Em outras palavras, antecipar o desfecho para não dar tempo ao inevitável fracasso da idade adulta.

O próprio Graham Greene tentou, com 17 anos, cometer essa antecipação fazendo roleta russa e, depois, outras vezes, repetindo o jogo mórbido na juventude. Fracassou, ou teve sucesso, dependendo do ponto de vista que se adotar.

O suicídio de Scobie, comentado por Greene no livro escrito por seu amigo Ronald Matthews, não se dá por obra da divina caridade que parece pautar sua conduta, mas pela “paixão destrutiva da piedade, que faz parte de seu orgulho”.2

Portanto, pecado que esconde pecado e, desse modo, permite, pelo movimento da ação dramática e da ação interior, fazer sua associação com a excelência da técnica narrativa montada, como em um filme, sobre planos de recuos e de simultaneidade de pontos de vista.

Sabe-se que um dos autores prediletos de Greene era Henry James, responsável por importantes inovações na arte de narrar histórias e de mostrar ao mesmo tempo a forma de sua narração.

A distinção feita por James entre contar (telling) e mostrar (showing) implica um rodopio de pontos de vista que dão plasticidade, vida e densidade às situações humanas fixadas em seus romances, mormente às dos americanos vivendo em seu “exílio” cultural europeu, na segunda metade do século XIX, como foi o caso do próprio autor.

Essa distinção irá ecoar mais tarde tanto na teoria literária, com a distinção dos formalistas russos entre fábula e trama, na filosofia da linguagem, com a diferença entre dizer e mostrar proposta em 1932 por A. H. Gardiner, e na própria lingüística, com as categorias história e discurso apresentadas por E. Benveniste para a análise semântica dos pontos de vista que decorrem da forma de integração do sujeito da enunciação no enunciado.

Mostrar é mais cinematográfico que contar e é essa técnica de composição que prevalece em O cerne da questão e em outros romances de Greene, enriquecendo o que é contado pela dinâmica das vozes que concorrem para a sua variação. Greene, ele próprio, chamava-se “um homem de cinema” (“a film man”).

O pecado do orgulho que se esconde atrás do véu responsável pela paixão da piedade leva Scobie a preparar o seu suicídio de modo que não pareça que tenha cometido esse pecado definitivo, embora até o último momento ele se debata no conflito moral e religioso que o condenará à danação eterna por tirar a própria vida.

Wilson, o burocrata, o censor da correspondência, o espião dos colegas, o poeta da indefectível bobagem piegas, mas ainda assim burocrática, ficará com Louise e continuará investigando, desconfiando se a morte de Scobie terá sido mesmo decorrência dos problemas de angina para os quais ele se esforçava em chamar a atenção.

Uma outra aproximação que se poderia fazer, por via desse jogo criativo da ocorrência simultânea de diferentes pontos de vista narrativos, é com o escritor brasileiro Machado de Assis, que, é claro, não pode ler o escritor inglês por razões de cronologia de vida e que, certamente, jamais foi lido na Inglaterra de então, por circunscrição cultural e lingüística. Mas alguma coisa passa e se comunica também pelas características das relações sociais que marcam a presença colonial inglesa na África, cenário político e cultural no qual se desenrola o enredo de O cerne da questão, e as que constituem o fundo de dominação branca e senhorial sobre os escravos no Brasil do império no qual se tecem as tramas da ficção machadiana.

Como anotei no artigo “Políticas de afirmação do negro no Brasil”3, Machado de Assis, que o crítico americano Harold Bloom considera o "maior literato negro surgido até o presente" deixou-nos um legado artístico ímpar no Brasil e na literatura universal de todos os tempos. Por ele pudemos conhecer melhor a sociedade imperial brasileira e, com ele, entrarmos no átrio dos conflitos da sociedade republicana que se anunciava, sem historicismo, sem sociologismo, sem programatismo panfletário. Falando de homens e mulheres de seu tempo na provinciana capital federal, o Rio de Janeiro que os navios estrangeiros procuravam evitar com medo das contaminações epidêmicas da região, o autor fixou, como nenhum outro, em imagens de poética sobriedade, não apenas as cores locais de quadros sociais inesquecíveis, mas também as finas incertezas e ásperas decisões da alma humana, suas silenciosas perversidades, seus levianos conflitos morais, a profundeza das dores reparáveis, a exclusividade substituível dos amores, a densidade dos vazios feita de presenças impositivas e de imposições de ausências plenas, a religiosidade desconfiada de um narrador que desconfia, como num meta-Eclesiastes de seu ceticismo e de sua própria desconfiança.

Graham Greene é, também nesse mesmo sentido, um autor desconfiado.

Converte-se ao catolicismo em 1926 em uma Inglaterra de maioria protestante, seguidora da Igreja Anglicana e logo inscreve o seu nome entre os grandes autores católicos da literatura do século XX, em seu país e fora dele.

A força de sua obra, contudo, não decorre de nenhuma forma de pregação catequética, mas, ao contrário, nasce da paciente urdidura de situações que velam e expõem a tortuosidade dos complexos caminhos do homem no mundo para cumprir com dignidade a obrigação de ser livre. Marcam sua obra os conflitos de consciência, o peso do fardo da imitação do mistério de Cristo, de sua vida, paixão, morte e ressurreição, o esforço para conciliar fé, inteligência e espírito crítico, crença e desconfiança, esperança e resignação, entrega e ceticismo, dúvida e abandono, o esforço, pois, para construir como que uma teologia da falibilidade de Deus com os homens. É como se, convertido, ele desconfiasse da própria conversão, sem, contudo, abandoná-la por nela crer com iluminada convicção inquiridora.

Graham Greene disse de si mesmo que não se considerava um autor de romances católicos, mas um autor católico que escrevia romances. O seu catolicismo é menos a causa dos temas e enredos de seus livros e sim a conseqüência de uma propensão do autor que nele encontrou guarida perfeita para as inquietações existenciais e intelectuais que já lhe eram próprias e que, desse modo, por identidade de tormento ou por diferenças de bem aventurança, juntos, ele e sua conversão puderam desenvolver melhor.

Não há falsa tranqüilidade na ficção de Graham Greene; tampouco há verdades tranqüilas no trajeto de provações de seus personagens. Scobie não foge à regra e mesmo o seu suicídio, no ato extremo e definitivo da derradeira asserção da vida contra a própria vida, tem a forma de uma pergunta escondida na aparência de resposta que o título-clichê do romance parece prometer revelar.

O nó do problema é O cerne da questão.

Pode a sua leitura ajudar a entender a persistente e contraditória consistência desse nó que amarra e desata a vida?

Vamos conferir?

1 Kenneth Allot & Miriam Farris: The art of Graham Greene, Hamish Hamilton, Londres, 1951, p. 163.
2 Ronald Matthews: Mon ami Graham Greene, Bruges, Desclée de Brouwer, 1954, p.249.
3 Carlos Vogt: “Políticas de afirmação do negro no Brasil”, Patrimônio – revista eletrônica do Iphan, n.1, set/out., 2005.