O acidente vascular cerebral (AVC) é uma complicação rara na gestação e no puerpério, mas suas consequências podem ser devastadoras para mãe e feto. É um dos eventos clínicos mais graves associados à gestação, com taxas de morte materna de mais de 20%. Apesar de ser pouco freqüente, o diagnóstico e a conduta podem ser mais difíceis e, embora a gestação não seja um período em que a prevenção possa ser feita, o imediato reconhecimento de sinais e sintomas, e a instituição precoce do tratamento adequado, podem salvar vidas e reduzir o risco de sequelas neurológicas. Estima-se que o AVC ocorra em dez mulheres de cada cem mil em idade fértil. Mas, na gestação e puerpério, essa taxa passa a ser mais dez vezes maior. As doenças cerebrovasculares, como o AVC, o infarto agudo do miocárdio e a hemorragia intracerebral são as principais causas de morte de mulheres em idade fértil, com uma taxa de 7,5 por 100 mil mulheres.
A gravidez e o puerpério são considerados, classicamente, períodos de maior risco de ocorrência de AVC em mulheres jovens e estima-se que esse seja 13 vezes mais frequente em gestantes, sendo a vulnerabilidade ainda maior no período pós-parto. Aspectos cada vez mais prevalentes na população de gestantes, como a maternidade tardia, obesidade, diabetes mellitus e hipertensão arterial (também fortemente associados à obesidade) contribuem para aumentar ainda mais o risco. Além de fatores próprios da gestação, certas doenças maternas também aumentam o risco de AVC, como cardiopatias, anemia falciforme, doenças auto-imunes e trombofilias.
O diagnóstico de AVC é baseado em um alto grau de suspeição frente a sintomas sugestivos em pacientes de risco. Essa abordagem, no entanto, pode levar o obstetra a subestimar sintomas em pacientes consideradas de baixo risco, que constitui a maior parcela de gestantes vítimas de AVC. Uma situação comum é a cefaléia em mulheres hipertensas. Apesar de inespecífica, a cefaléia associada à hipertensão grave, com sinais neurológicos focais e a cefaléia severa persistente, deve ser prontamente avaliada por um neurologista e por métodos de imagem. A demora no diagnóstico de AVC, frente à possibilidade maior de pré-eclâmpsia, agrava a mortalidade e o prognóstico neurológico. Sendo a cefaléia o sintoma predominante de AVC na gestação, mulheres com quaisquer fatores de risco devem ser orientadas a procurar ajuda médica, caso essa seja de forte intensidade ou associada a outros sintomas, como vômitos e alterações motoras, visuais ou sensitivas.
Dos métodos de neuroimagem disponíveis, tanto a tomografia computadorizada quanto a ressonância magnética podem ser utilizadas sem restrições e a escolha deve depender mais da disponibilidade e da indicação clínica (por exemplo, trombose e hemorragia cerebral).
O Centro de Atenção Integral a Saúde da Mulher (Caism) da Unicamp é um hospital de referência no atendimento à mulher na região de Campinas, SP, incluindo as gestações de alto risco com suporte de alta qualidade em terapia intensiva direcionada à obstetrícia, e é um hospital de nível terciário. Atende cerca de três mil partos por ano. Recebeu, em 2009, o prêmio de melhor maternidade do estado de São Paulo em uma avaliação realizada pelo SUS envolvendo cerca de quinhentos hospitais. Os dados que relataremos a seguir devem ser interpretados com a visão de que se trata de um centro de referência onde os casos são de maior gravidade. No período de 1996 a 2006 foram atendidas 18 mulheres que apresentaram AVC na gestação ou no puerpério.
As mulheres que sofreram AVC eram jovens (idade média de 29 anos) e dois terços eram da raça branca. Entre as 18 pacientes avaliadas, 10 desenvolveram AVC durante a gravidez (em média na 24ª. semana) e 8 no puerpério. Em relação ao tipo de AVC, 8 apresentaram AVC isquêmico, 7 AVC hemorrágico, 2 trombose venosa cerebral e uma apresentou acidente isquêmico transitório (AIT). A tabela 1 ilustra os tipos de AVC e nas diferentes faixas etárias.
Tabela 1 - Distribuição conforme de AVC e idade.
Idade |
AVC isquêmico |
AVC hemorrágico |
TVC |
AIT |
Inferior a 20 anos |
- |
- |
- |
1 |
20-29 anos |
5 |
2 |
1 |
- |
30-39 anos |
2 |
4 |
1 |
- |
Igual ou superior a 40 anos |
1 |
1 |
- |
- |
A maioria das mulheres apresentou cefaléia como sintoma principal, seguida de alterações de coordenação motora, alterações visuais, rebaixamento do nível de consciência e dificuldade para falar. Todas as mulheres apresentaram mais de um tipo de sinal ou sintoma.
Tabela 2 - Quadro clínico de apresentação no AVC isquêmico, AVC hemorrágico, trombose venosa cerebral (TVC) e AIT.
|
AVC todos |
AVC isquêmico |
AVC hemorrágico |
TVC |
AIT |
Cefaléia |
10 |
4 |
5 |
1 |
- |
Alteração motora |
9 |
6 |
2 |
- |
1 |
Alteração visual |
4 |
2 |
2 |
- |
- |
Rebaixamento do nível de consciência |
- |
- |
4 |
- |
- |
Disfasia |
4 |
4 |
- |
- |
- |
Alterações sensitivas |
2 |
- |
2 |
- |
- |
Náusea |
2 |
1 |
- |
1 |
- |
Taquicardia |
2 |
- |
1 |
1 |
- |
Hipotensão |
2 |
1 |
1 |
- |
- |
Hipertensão |
2 |
1 |
1 |
- |
- |
Convulsão |
1 |
- |
1 |
- |
- |
Outros |
8 |
4 |
4 |
- |
- |
Em relação à possível causa do AVC, a hipertensão arterial foi observada em dez pacientes. A má-formação arteriovenosa e eclâmpsia ocorreram em três mulheres. Embolia cardiogênica e plaquetopenia foram registradas em duas pacientes. Outras etiologias, menos frequentes (uma paciente), foram: aneurisma intracraniano, embolização, trombofilia familiar, vasculite, anemia falciforme, vaso oclusão, endocardite, coagulopatia, síndrome Hellp, e miocardite puerperal com embolização (tabela 3).
Tabela 3: Causa provável do AVC isquêmico, AVC hemorrágico, trombose venosa cerebral (TVC) e AIT.
|
AVC todos |
AVC isquêmico |
AVC hemorrágico |
TVC |
AIT |
Hipertensão arterial sistêmica |
6 |
5 |
1 |
- |
- |
Pré-eclâmpsia |
4 |
3 |
1 |
- |
- |
Má-formação arteriovenosa |
3 |
1 |
1 |
- |
1 |
Eclâmpsia |
3 |
- |
3 |
- |
- |
Embolia cardiogênica |
2 |
2 |
- |
- |
- |
Plaquetopenia |
2 |
1 |
1 |
- |
- |
Outras |
10 |
5 |
5 |
- |
- |
Indefinidas |
3 |
- |
1 |
2 |
- |
Em termos de evolução do quadro clínico, 11 mulheres melhoraram com o tratamento, duas com melhora posterior, duas tiveram agravamento do quadro com desenvolvimento de sequelas e três foram à óbito.
Dezesseis mulheres evoluíram para parto cesárea, uma para parto vaginal (fórceps) e uma foi a óbito antes do parto, sendo que dez partos foram de termo, quatro foram pré-termo (incluindo uma das pacientes que foi à óbito), ocorreram quatro óbitos fetais, dois consequentes aos óbitos maternos. A média da idade gestacional do parto foi de 34,4 semanas e todos os outros 14 recém-nascidos evoluíram satisfatoriamente.
A respeito da evolução materna, dez mães receberam alta sem sequelas, cinco mulheres com sequelas e três foram à óbito. De sete pacientes, das quais conseguimos dados da evolução a longo prazo, quatro delas tiveram resolução completa e outras três mantiveram déficits neurológicos, como alteração motora e visual.
A incidência de AVC na população estudada foi de 54 por 100 mil nascidos vivos, com 17% de mortalidade materna e 22% de mortalidade fetal.
Pela nossa experiência aqui relatada, felizmente o AVC é um evento raro durante a gestação e o puerpério. Entretanto, quando acontece, pode ter graves consequências para mãe e filho. A hipertensão arterial foi muito frequente nessa população e o AVC hemorrágico apresenta altas taxas de mortalidade. O diagnóstico precoce, através da atenção a fatores de risco como a hipertensão durante o pré-natal, pode permitir a intervenção profilática. Outro aspecto é o diagnóstico imediato do AVC, para que medidas possam ser tomadas rapidamente e com isso reduzir a mortalidade materna e fetal e das sequelas tardias associadas ao AVC.
Marcelo Luís Nomura é médico assistente doutor da área de obstetrícia do Departamento de Tocoginecologia da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp. Responsável pelo ambulatório de doenças neurológicas e gravidez do Caism-Unicamp. Coordenador do Ambulatório de Pré-Natal de Alto Risco da Maternidade de Campinas. Especialista em medicina fetal e gestação de alto risco. E-mail: mlnomura@unicamp.br. Liu Dong Yang é aluna do terceiro ano do curso de medicina da FCM-Unicamp. Li Li Min é médico, doutor em neurociências pela McGill University, Montreal Canadá. Professor associado do Departamento de Neurologia da FCM-Unicamp. Coordenador do Programa Neurovascular do Hospital da Clínicas da FCM-Unicamp.
|