A biologia sintética pode ser entendida como a criação de organismos feitos sob medida, sejam eles geneticamente modificados ou construídos a partir do zero. Ela surgiu a partir das técnicas de transgenia, que permitem alterar um organismo inserindo ou removendo pedaços de DNA de seu genoma. O principal objetivo da biologia sintética, bem como sua maior dificuldade, é domesticar o mecanismo de replicação e transcrição de DNA de modo a controlar seu funcionamento, do mesmo modo que um engenheiro elétrico constrói e controla um circuito. É claro que esta empreitada traz consigo toda uma série de questões éticas e sociopolíticas, que não podem ser perdidas de vista. A situação atual do campo é tal que não se pode dizer que se tenha obtido sucesso na criação de vida sintética, e a própria possibilidade de fazê-lo tem sido posta em dúvida.
Mas, apesar das dificuldades e das questões polêmicas que suscita, o impacto da biologia sintética já pode ser sentido nas indústrias farmacêutica e de alimentos. Organismos que produzem fármacos são modificados para produzir mais e mais destes, e novos organismos e fármacos são testados continuamente. Substâncias orgânicas que não podem ser sintetizadas ou cuja produção é muito custosa por métodos químicos comuns, como proteínas ou produtos metabólicos das células, são obtidas através de organismos modificados para produzi-las, e geralmente em quantidades maiores do que as fontes naturais são capazes de produzir. Na indústria de alimentos, organismos geneticamente modificados, apesar de toda a controvérsia que despertam, vêm ganhando cada vez mais espaço, a exemplo do que aconteceu com a soja. Nas ciências de materiais, cientistas têm tentado sintetizar, até agora sem sucesso, compostos biológicos com propriedades importantes. Por exemplo, plantas como a batata e o tabaco, além de leveduras, já foram modificadas para produzir proteínas da seda de teias de aranha, abrindo caminho para a criação de novos materiais que tenham as características de leveza, resistência e elasticidade de tais teias. Outras aplicações ainda estão em desenvolvimento, como um biofilme capaz de desenhar imagens, embora de forma lenta e com resolução baixíssima, ou um conjunto de genes cuja única função é ligar e desligar outros genes em seqüência. Essas aplicações, embora não aparentem ter utilidade prática, simbolizam avanços importantes no entendimento e domínio do aparato genético da célula e abrem caminho para aplicações futuras. Não acreditamos que se possa sustentar uma diferenciação muito nítida entre pesquisa básica e pesquisa aplicada em qualquer campo do conhecimento científico, quanto mais numa tecnociência, como a biologia sintética.
Embora esteja ainda em estágio inicial, a biologia sintética tem um grande potencial para o desenvolvimento de tecnologias e para aumentar nosso conhecimento sobre a estrutura e o funcionamento do DNA e de sua dinâmica. Embora suas aplicações tenham um impacto cada vez maior, elas são ainda limitadas pelo nosso conhecimento de como a célula e, especialmente, o sistema genético funcionam. A biologia sintética não pode ainda operar como uma verdadeira engenharia: para isso, seria preciso ter modelos mais adequados dos mecanismos celulares, tanto em seus aspectos composicionais (quais são as partes que compõem o sistema), quanto em seus aspectos causais (o que cada uma das partes faz) e organizacionais (como os componentes interagem entre si e, sobretudo, como são organizados espacial e temporalmente). Somente então poderíamos ser capazes de montá-los, intervindo neles da mesma maneira como um engenheiro manipula outros artefatos construídos por nossa espécie.
As principais dificuldades da biologia sintética são desvendar as partes componentes do sistema, como elas interagem entre si e como se organizam no espaço e no tempo. Dentro de qualquer organismo, centenas de genes estão ativos ao mesmo tempo, interagindo com proteínas e RNAs, sendo inibidos, tendo seus transcritos processados e traduzidos, sendo copiados, etc. O metabolismo da célula está continuamente operando, e não em termos de diferenças do tipo tudo-ou-nada, mas por meio de uma complexa dinâmica espaço-temporal, na qual a localização das substâncias e os padrões de mudança de suas concentrações são cruciais. Para dar conta desses desafios, estratégias reducionistas utilizadas com sucesso na biologia molecular e na genética devem dar lugar – como já vem ocorrendo – a abordagens mais globais dos sistemas celulares. Com os projetos genoma, foi levada às últimas conseqüências a tentativa de compreender os sistemas celulares movendo-se dos sistemas como um todo para suas partes. É tempo agora de um movimento em sentido contrário, das partes para o todo, enfocando, em particular, o aspecto organizacional das células, em termos tanto espaciais quanto temporais.
Para resolver o problema de desvendar quais genes fazem o quê, pesquisadores do MIT propuseram os BioBricks, seqüências artificiais de DNA precisamente definidas, com funções conhecidas e padronizadas, capazes de serem combinadas e inseridas em um organismo preexistente para obter um resultado previsível, de modo freqüentemente comparado à construção de maquetes com blocos Lego®. As seqüências dos BioBricks estão disponíveis no Registry of Standard Biological Parts (RSBP) do MIT. Esta padronização com seqüências artificiais feitas sob medida pretende resolver o problema de desvendar a função dos genes, permitindo, segundo seus idealizadores, “programar organismos vivos do mesmo modo que um cientista da computação pode programar um computador”. De fato, já existem BioBricks capazes de realizar operações análogas aos operadores lógicos booleanos AND, OR, NAND, entre outros, e a lista de BioBricks disponíveis cresce continuamente. O RSBP também cumpre um papel importante para que a biologia sintética se aproxime mais da engenharia: a padronização de componentes. Atualmente, as técnicas e partes (plasmídeos, seqüências de genes, organismos) usadas na engenharia genética são adaptadas caso a caso, o que dificulta a aplicação de padrões e controles de qualidade internacionalmente aceitos.
Para o caso da interação dos genes dentro das células, uma outra abordagem nova foi proposta por Craig Venter e colaboradores: construir um organismo artificial com o genoma mínimo necessário para a sobrevivência. Um organismo assim permitiria a inserção de qualquer genoma desejado com um mínimo de interferência no genoma do hospedeiro. A combinação das técnicas dos BioBricks e da construção de organismos artificiais, se bem sucedida, poderia permitir à biologia sintética um impacto maior nas ciências e tecnologias, por exemplo, com a construção de organismos com o propósito único e exclusivo de produzir ou metabolizar uma determinada substância.
A situação atual, contudo, é uma na qual devemos dizer que ainda não está claro que essas novas abordagens, ainda restritas à atitude reducionista predominante na biologia da segunda metade do século XX, terão sucesso na busca de uma melhor compreensão da função gênica. O risco é que o sucesso na aplicação de técnicas como a dos BioBricks não seja acompanhado por uma compreensão adequada de como os sistemas genéticos funcionam. Afinal, uma intervenção de engenharia sobre um sistema pode lograr sucesso sem uma compreensão inteiramente adequada de como os sistemas naturais relacionados operam. Nestes casos, uma vez implementada uma solução tecnológica, podem surgir efeitos colaterais, resultantes da maior complexidade do sistema no qual se está intervindo. Em tecnociências como a biologia sintética, vale mais do que nunca a tese de que devemos ter prudência no uso de um conhecimento que nos permite intervir sobre a natureza em tal dimensão.
Ao considerar campos como a biologia sintética, não devemos, pois, perder de vista a importância de compreender as relações complexas entre ciências, tecnologias e sociedades (CTS). Não se trata de julgar aplicações tecnológicas e produção de conhecimento científico em tais campos de maneira maniqueísta, como se fossem simplesmente bons ou maus. O conhecimento humano é sempre, como já alertava Francis Bacon no século XVII, uma fonte de poder, e, como tal, tem sido continuamente usado ao longo da história para propósitos que tanto aprofundam relações sociais desiguais e produzem grandes impactos sobre os seres humanos e o ambiente, quanto melhoram potencialmente a qualidade da vida humana. Diante do conhecimento e de suas relações com nossa capacidade de intervir na natureza, devemos ter sempre uma visão alerta e crítica, bem fundamentada numa compreensão da dinâmica social da comunidade científica, em conexão com a dinâmica das sociedades nas quais ela funciona. Para isso, devemos ser capazes de apreciar a produção do conhecimento com a devida compreensão de suas dimensões sociológicas, filosóficas e históricas, sejamos cientistas, professores, empresários, políticos, trabalhadores, não importa a posição que ocupamos na sociedade. Em vez de ficarmos apenas assustados com as promessas e perspectivas de campos como a biologia sintética, ou de louvarmos suas possíveis realizações, devemos ter conhecimento e prudência suficientes para analisar de modo crítico e ponderado o que tais campos podem trazer de avanços e de problemas para nossa espécie, sempre tendo em vista a dimensão moral da busca da igualdade de oportunidades entre os seres humanos. Pensar sobre a biologia sintética é, portanto, defrontar-se com mais um entre tantos campos do conhecimento que mostram a pertinência de uma educação das pessoas para que compreendam as relações CTS e as dimensões histórica, filosófica e social da construção do conhecimento científico e das tecnologias.
Vitor Passos Rios é biólogo e orientando de Charbel Niño El-Hani, do Instituto de Biologia da Universidade Federal da Bahia
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