No documentário Exit through the gift shop (2010), o artista Banksy pinta as paredes da percepção nas telas do cinema e usa a arte para articular um processo de dúvida e emancipação
Weynna Barbosa
10/11/2013
As imagens (não) mentem? Trago a questão para pensarmos a partir da obra cinematográfica Exit Throgh the gift shop (2010), do artista Banksy, a função-imagem no cenário da arte contemporânea. O documentário traz a história, supostamente real, de Thierry Guetta, um videomaker francês convidado a fazer um filme sobre artistas de rua. Guetta decide então tornar-se ele próprio um street artist, chamando-se Mr. Brainwash. Ciente de sua pouca vocação, contrata outros artistas para realizar sua exposição, cujos preparativos compõem � segunda parte da obra.
Apesar dos boatos sobre a intrigante teia ficcional que atravessa o enredo (e continua um mistério), o filme se apresenta no gênero documentário. O fato � que a obra se articula de forma interessante; um argumento que pretende inicialmente tratar do movimento de arte de rua, se transforma em mais uma intervenção “banksyniana� (se � que podemos chamar assim), que agora detendo os recursos das técnicas cinematográficas decupa histórias, memória, desvia, manipula, cria e desorienta a percepção ao ponto de não nos darmos conta quando a fronteira entre real e ficcional se rompe � se � que ela de fato existe.
O movimento de contrários (verdade/mentira, realidade/ilusão, estética/política) não deseja ser desfeito ou corrompido, pois � ele mesmo o problema paradoxal que torna o cinema documentário uma articulação preciosa para se pensar a imagem no mundo contemporâneo. Suas proposições vêm para entender a tensão provocada por essas dicotomias, a fim de produzir uma percepção nova do homem sobre o mundo, que não trata mais ficção como algo ilusório e sim como possibilidade de criar com o real.
No cenário contemporâneo, o modelo formal de documentário se perde. Segundo as perspectivas estéticas e políticas do filósofo Rancière em diálogo com obras do cinema documental, podemos explorar o movimento que esse tipo de arte pretende propor para o público. Não se configurando apenas como representação da realidade, nem como oposto a ela, ou simplesmente uma produção imaginária de verossimilhança e de efeitos do real. “Um filme ‘documentário� não � o contrário de um ‘filme de ficção’”. “O cinema documentário � um modo da ficção�, aponta o filósofo. E essa ficção � o efeito político por excelência na criação com a realidade.
Voltando ao filme. O ritmo da montagem e as boas tomadas de câmera na mão proporcionam um passeio pela arte de rua, pelo processo criativo dos artistas grafiteiros, apresentando os riscos e o prazer em transgredir leis, o prezado anonimato e seu “aqui e agora�. Dando a ver o invisível, o que acontece durante a noite na produção dessas imagens onipresentes que se exibem na luz do dia. Tudo isso � revelado através das lentes do egocêntrico protagonista, o francês Thierry Guetta e sua obsessão por filmar. Deve-se ter em vista que esse personagem � para o filme como uma chave “liga e desliga� da realidade, mais uma das “figuras� usadas pelo diretor no movimento paradoxal da linguagem do documentário, e em sua persistente crítica sobre o mercado da arte.
Banksy encontra em Guetta e sua obsessão por filmar a oportunidade de perverter e iludir o espectador em sua proposta cinematográfica. Guetta, por trás da câmera, torna-se a sombra do artista, um stencil art ambulante que persegue o grafiteiro pelas ruas, registrando suas produções artísticas e seu processo criativo. Ao mesmo tempo ele vai sendo manipulado por Banksy e tornando-se, ao que parece, a mais ousada de suas intervenções. Por a� j� se perde o fio da meada, e o filme se transfigura. Desviando a atenção de maneira sutil, os papéis se invertem e Guetta passa a ser o objeto foco da câmera. Expondo outra “face� da arte, o diretor explora o universo de museus (loja de lembranças), galerias, exposições, leilões e colecionadores, tornando a noção de arte “uma grande piada�, segundo as palavras do próprio artista. Mas não � a intenção analisar esse efeito “pedagógico� da obra, e sim suscitar, por meio do filme, os inúmeros sentidos produzidos pela imagem, que perpassa a intenção de quem a produz e desdobra a percepção de quem v�.
H� quem defenda que a história do lunático Thierry Guetta não passa de uma piada (de muito bom gosto) de Banksy, em crítica ao mercado da arte contemporânea. Pode-se, no entanto, duvidar; considerar a hipótese de que grande parte dessa história possa ser apenas produto de invenção, o que torna tudo ainda muito mais instigante. Se as imagens não mentem, nesse caso são usadas com ilusão de fidelidade para transgredir as leis da percepção de um real que agora � também ficcional. Verdade e mentira não se opõem mas se articulam na mesma lógica, produzindo possibilidades novas de ser, dizer, ver e fazer. O filme, que usa de um formato “clássico� de entrevistas, depoimentos e recortes de cenas do cotidiano e de arquivos, d� a a ilusão de transparência e persuade além do campo visual, elevando ao máximo o trabalho artístico do documentário, em tornar a própria realidade tão fantástica e envolvente quanto possível.
Exit... fala por si, fala por uma infinidade de línguas, e ainda fala quando cala. Traz � tona diversas questões, e intriga ainda quando explora essa capacidade poética da imagem documental de brincar com o real, confundir e inquietar. E não mais de instruir e ensinar. A imagem da arte hoje suscita a dúvida e articula um processo emancipatório do espectador.