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Editorial
Viagem pelas crônicas
Por Carlos Vogt
10/06/2006

O Brasil é um país de viajantes, além, é claro, de ser um país de viajados. Contudo, nem todos os que por ele viajam são cronistas das viagens. O que não quer dizer que o Brasil deixe de ser também um país de cronistas viajados. O que, enfim, acaba por fazer dele um país de crônicas de viajantes.

E tudo começou com a Carta a el-rei dom Manuel, em 1500, de Pero Vaz de Caminha que, desse modo, pelo documento escrito, eternizou a descoberta do Brasil no momento fundador das primeiras impressões do viajante diante da terra nova e de seus desconhecimentos:

“Nela, até agora, escreve Caminha, não pudemos saber que haja ouro nem prata, nem nenhuma coisa de metal, nem de ferro; nem as vimos. Mas, a terra em si é muito boa de ares, tão frios e temperados, como os de lá. Águas são muitas e infindas. De tal maneira é graciosa que, querendo aproveitá-la dar-se-á nela tudo por bem das águas que tem”.

Daí para a insígnia da fertilidade ufanista ou do ufanismo da fertilidade, um passo:

Nela em se plantando, tudo dá!

O problema, como anotou o historiador Sérgio Buarque de Holanda, falando do caráter do português que aqui aportava no século XVI é que tinha como ideal “colher o fruto sem plantar a árvore” agregando em sua composição “audácia, imprevidência, irresponsabilidade, instabilidade, vagabundagem”.

Seu sonho era tornar-se senhor de engenho, viver na casa grande e freqüentar, ocasional e perversamente, a senzala.

A Carta, de Pero Vaz de Caminha, de certa forma, nos batizou para a crônica e para as viagens.

A ele seguiram-se muitos outros cronistas e viajantes de diferentes nacionalidades européias, além dos portugueses que foram assíduos e constantes no assédio dos frutos de nossa terra e de sua conversão à fé católica, como desde o início apontou com devota pertinácia o escrivão da esquadra de Pedro Álvares Cabral:

“Mas o melhor fruto que nela se pode fazer, me parece que será salvar esta gente; e esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza nela deve lançar. E que não houvesse mais do que ter aqui esta pousada para esta navegação de Calecute, bastaria, quanto mais disposição para se cumprir nela e fazer o que Vossa Alteza tanto deseja, ou seja: acrescentamento da nossa Santa Fé.”

O missionarismo ideológico que ajuda a entender os objetivos mais intangíveis das viagens acompanhará as incursões de vários outros cronistas pelas terras e pelas letras brasileiras, então nascentes para o mundo ocidental.

No século XVI, a Europa vivia o embate ideológico entre a Reforma e a Contra-Reforma.

O viajante português, mais do que nenhum, trazia em sua bagagem cultural uma visão de mundo em que a natureza consistia em manifestação divina e apresentava-se como um livro cujas páginas, se bem lidas, desdobravam a lição moral de Deus, perfeito, para o homem, pecador.

Uma postura medieval que trazia em si como que um paradoxo de atitudes: o mesmo homem que abria os horizontes da terra com, o engenho das navegações e a arte do canto fecundo da epopéia portuguesa do Renascimento consagrada em Os lusíadas de Luiz de Camões, era também o que, num malabarismo escolástico espetacular, transpunha o Éden, o Paraíso Terrestre, do leste para o oeste e via a exuberância da nova Terra vestida com o cenário bíblico das promessas de bem aventurança e de inocência perenes de seus habitantes.

A essa visão religiosa da Contra-Reforma associava-se a fantasia do deslumbramento, além, é claro, de um pragmatismo conversor que pode ser medido nesse desabafo didático-pedagógico e desacorçoado do padre Anchieta:

“...para este gênero de gente não há melhor pregação do que espada e vara de ferro.”

O realismo prático dos jesuítas na sua saga missionária da “conversão do gentio” vai ocupando o lugar da pureza com que era visto o “bom selvagem”, substituindo-a pela “bestialidade” do bruto, cuja explicação, como faz o padre Manoel da Nóbrega, vai ser buscada também na Bíblia, nesse caso na hipótese de que o índio deveria ser descendente de Cam, filho de Noé, que havia presenciado a nudez do pai.

Aos poucos, mas progressivamente, o realismo e as razões práticas vão se impondo para dar a tônica a obras como o Tratado descritivo do Brasil, de Gabriel Soares de Souza e os Diálogos das grandezas do Brasil, de Ambrósio Fernandes Brandão, já bem distantes, nesse sentido, dos escritos de Pero Magalhães de Gândavo e de Fernão Cardini, e deles mais próximos pela sabedoria leiga que veiculavam e que condizia melhor com o figurino humanista que os avanços do conhecimento pré-científico da época ajudavam a fortalecer.

Mas nem só de portugueses era o cardápio que se propunha aos nossos habitantes autóctones.

Hans Staden, artilheiro alemão de um navio espanhol que por cá esteve em 1550, escapou por pouco do apetite tupinambá e cinco anos depois, resgatado pelos franceses, lá foi ele de volta à Europa escrever as memórias das aventuras que por cá viveu e que foram publicadas em Marburgo, Alemanha, no livro Duas viagens ao Brasil em 1557.

O francês Jean de Léry, autor da Viagem à terra do Brasil, publicado pela primeira vez, na França, em 1578, esteve por aqui acompanhando a expedição de Villegaignon para a criação da França Antártica, e é a história dessa colônia reformista que o seu livro narra, dentro de uma perspectiva totalmente humanista e desvinculada, portanto, do missionarismo católico dos contra-reformistas.

O livro de Jean de Léry conheceu enorme sucesso em seguida à sua publicação original, sendo vertido para o latim, o alemão e o holandês. No Brasil, a sua primeira tradução ocorreu apenas em 1889 nas páginas da Revista do Instituto Histórico e Geográfico, recebendo também mais tarde uma primorosa tradução de Sérgio Milliet.

Graças a esse desprendimento ideológico e às suas qualidades de escritor, Jean de Léry não só marcou e influenciou a obra de pensadores que contribuíram para arquitetar a nova visão de mundo do ocidente, como é o caso de Montaigne e de Rousseau, como teve seu livro considerado pelo antropólogo Claude Lévi-Strauss como uma “obra-prima da literatura etnográfica”.

Muitos viajantes e cronistas sucederam-se nos séculos seguintes em visitações e registros das viagens que por aqui fizeram.

Dois deles podem ser destacados, ambos alemães. O primeiro porque não conseguiu ultrapassar, por impedimento, as fronteiras do Brasil na Amazônia e porque seu nome - Alexander von Humboldt - tornou-se referência mundial no gênero das expedições científico-naturalistas próprias do século XIX.

O segundo - Karl Friederich Philipp von Martius - porque esteve no Brasil por apenas 3 anos mas a ele dedicou toda a sua vida de estudos e de afeição intelectual, tendo deixado um tratado de botânica - Flora Brasiliensis - com identificação de mais de 20 mil espécies de plantas de nossas florestas, até hoje utilizado como obra de referência científica no ensino da botânica em nossas escolas. Produziu outros trabalhos na área, um romance - Frey Apolônio -, um livro de viagens escrito com o biólogo Spix, além de uma proposta para análise e interpretação do Brasil formulada, em 1840, para o Instituto Histórico e Geográfico em “Como se deve escrever a história do Brasil”, e que contém, em germe, a matriz interpretativa raça e cultura, cuja tensão foi tão prolífica nos estudos brasilianistas desde fins do século XIX e no decorrer da primeira metade do século XX.

Desse modo, e num sentido bastante profundo para a cultura brasileira, o país que somos e a nação que acreditamos ser são também obras construídas pelo olhar desse outro, do viajante estrangeiro, desse estranho, que encheu seus olhos de nossas estranhezas e nos devolveu o olhar da compreensão e do entendimento que o seu tempo e as ideologias que com ele iam permitiram. É esse olhar, cuja leitura dos textos de suas narrativas nos permite ver e olhar do tempo de nossa contemplação presente, que seguimos, também nós, com estranhamento e identificação.