Na noite de um domingo, 18 de janeiro de 2004, os espectadores que enchiam o Barbican Hall na capital inglesa puderam presenciar uma performance memorável da Orquestra Sinfônica da BBC: músicos a postos, dedos sobre o piano, arcos estendidos e olhos no maestro, que, curiosamente, começa a contar os minutos em um relógio. Um silêncio ansioso de fôlegos suspensos preenche a sala. Só é quebrado com as tosses que acompanham o virar de página do livro de partituras dos presentes no palco para dar início ao segundo movimento. O mesmo se dá também no terceiro. Quatro minutos e 33 segundos depois, a ovação do público. Haviam acabado de presenciar uma das composições mais emblemáticas da música erudita contemporânea, 4’33”, que naquela noite havia sido televisionada pela primeira vez desde sua concepção, cerca de meio século antes, pelo artista, teórico e compositor norte-americano John Cage.
Segundo o crítico Alex Ross, autor de O resto é ruído: escutando o século XX e de Escuta só: do clássico ao pop, Cage foi para a segunda metade do século passado o que o austríaco Arnold Schoenberg foi para a primeira: este último, com seu pioneirismo ao defender a emancipação da dissonância e experimentar a atonalidade (não-linearidade entre notas que deviam se repetir em uma melodia, trazendo uma espécie de conforto ao ouvinte e a “resolução de conflito” para uma peça); e o primeiro, com suas performances e improvisações com “piano preparado”, em que objetos eram colocados entre suas cordas para produzir sons diferentes. Embora Cage tenha sido aluno de Schoenberg durante a juventude, a música oriental é a influência mais marcante em seu trabalho – e por isso, não era estranho que ele considerasse que música, ruído e silêncio fossem uma profusão inseparável. “O som deveria se apresentar como si mesmo, sem interferência humana. 4’33” acaba por ser um manifesto anti-egóico nesse sentido”, observa Pauxy Nunes, professor de composição da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
William Brooks, pesquisador das universidades de York e Illinois, conta que Cage não acreditava na existência do silêncio acústico absoluto. “A experiência que nutria essa descrença foi sua passagem por uma câmara anecóica na Universidade de Harvard”, onde mesmo em um ambiente à prova de som, ele ainda conseguia escutar o pulsar grave de sua circulação sanguínea e o som agudo de seu sistema nervoso funcionando. “Acho que na mente dele havia um tipo de distinção entre silêncio como uma real ausência de estímulos acústicos – e isso foi o que ele disse que não existia – e silêncio como um estado mental – e este, acredito que ele teria dito, especialmente em seus últimos anos, que sim, existia”, pondera.
Som versus silêncio, lembra Brooks, pode não ser uma oposição binária. “O oposto do silêncio não é necessariamente som, no ponto de vista do músico: existe um tipo de oposição triádica que se tem entre silêncio, som musical e ruído. Os dois últimos têm em comum a duração, ao passo que o silêncio é apenas duração”, aponta. Ele lembra que, sob tal ponto de vista, o silêncio se tornou uma metáfora, uma descrição de um estado mental no qual nada está privilegiado, no qual se está aberto a qualquer coisa ao redor.
Corrobora com a ideia de silêncio como não-diferenciação o compositor José Miguel Wisnik em seu livro O som e o sentido: uma outra história das músicas. Ele escreve que, a exemplo do disco de Newton, que faz todas as cores se fundirem em branco ao adquirir movimento, “o total sonoro é silencioso” porque é “matriz de toda comunicação possível, de toda canalização de qualquer que seja a mensagem, matéria de todas as paisagens sonoras, frequência das frequências, pulso dos pulsos, ruído/zero”. O silêncio está, sob este ponto de vista, prenhe de sons em sua essência. Por outro lado, lembra ainda Wisnik, “não há som sem pausa. O tímpano auditivo entraria em espasmo. O som é presença e ausência e está, por menos que isso apareça, permeado de silêncio”.
E a fronteira entre som e ruído se encontra em um horizonte cada vez mais móvel e menos facilmente demarcável. Brooks lembra que, no século passado, pessoas jogavam a pia da cozinha em um conjunto de percussão para produzir som em performances. “Historicamente, o limite (entre som e ruído) mantém-se em constante movimento. De uma forma mais geral, a tendência tem sido tornar-se mais inclusiva. Há cada vez menos sons que podem ser considerados ruído, não-musicais ou não apropriados para uma continuidade musical. No trabalho de Cage, por exemplo, não há ruído e música, apenas som”, observa.
No entanto, o performer americano não foi o primeiro a esfumaçar os limites entre silêncio, ruído e som musical. “Já depois da Revolução Industrial havia quem fizesse experimentos com isso”, conta Pauxy Nunes. “Levavam as máquinas para o palco e se fazia concertos com turbinas, por exemplo. Isso, à época, era uma extrema vanguarda”, que acabou desembocando na música eletrônica que conhecemos hoje. Um nome que ficou conhecido por essa prática e é tido como um dos precursores da música futurista é o do pintor e compositor Luigi Russolo, que escreveu o manifesto A arte do ruído, em 1913. Não era incomum que suas audiências ficassem chocadas com o som de válvulas e motores que ele usava em suas performances: afinal de contas, era tudo ruído. Que se separa do som, segundo William Brooks, por critérios absolutamente sociais, históricos e contextuais. “Não há nenhuma propriedade física ou a priori que estabeleça uma diferença entre ambos”, observa.
Mas, ainda assim, não há como escapar de certas definições, que servem como ponto de partida para análise. Pauxy Nunes diz que a conceituação clássica de ruído abrange o som indesejado, “que exprime alguma coisa que não traduza um estilo ou prática, que não se enquadra na altura definida da melodia”, e que, apesar de ser historicamente evitado pelo cânone clássico, sempre teve seu espaço, ainda que periférico: “No século XX, ou era evitado ou era usado como uma espécie de pequeno ornamento, como se fosse uma cor diferente, em pintura”, conta. Mudanças no pensamento filosófico ocidental e o advento da psicanálise fizeram, então, que o ruído começasse a se igualar ao som desejado. “É um elemento que emerge e começa a se equiparar com a melodia”, diz o pesquisador.
Enquanto ruído é distúrbio para o cânone, o silêncio é classicamente tido como valor negativo, “um pano de fundo sobre o qual a música é desenhada, uma tela em branco”, observa Nunes, “mas que essas mesmas mudanças no pensamento ocidental se encarregaram de fazer com que o pano de fundo começasse a ganhar um valor por si próprio – assim como nas artes plásticas, onde a tela em branco se torna um elemento tão significativo quanto a tinta”, compara.
E não se pode esquecer que, ao passo que som, silêncio e ruído têm suas implicações musicais e geram discussões filosóficas e técnicas, também têm profundas implicações sociais – por vezes se manifestando em si mesmas e não apenas como metáfora. Como lembra Jacques Attali em Noise: the political economy of music, o silêncio como não-diferenciação se manifesta na sociedade contemporânea na produção e no consumo de bens, onde a “unanimidade se torna critério de beleza” e todas as superfícies precisam ser polidas e lisas. Por isso a importância do ruído, dos rituais das festas e carnavais, diz ele. A quebra da uniformidade inverte as hierarquias e mostra, por um instante, as cordas que manipulam o poder por detrás delas. O ruído, neste sentido, passa longe de ser um distúrbio social.
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