Pagar impostos é uma coisa que não deixa ninguém feliz, no
Brasil ou em qualquer parte do planeta. Claro, instintivamente tendemos a
pensar que um dinheiro que já “era nosso”, ganho com nosso suor, nossa
competência ou nossa esperteza, subitamente é tirado de nós.
Por outra parte, as pessoas frequentemente esperam que as
autoridades façam bem sua parte, e exigem policiais para evitar assaltos, ruas
sem buracos para dirigir seus carros ou suas motos, reclamam quando suas
moradias foram atingidas por enchentes ou quando as ruas estão sujas, e
revoltam-se quando os hospitais estão cheios, ou se os seus processos na
justiça levam anos para serem resolvidos.
O que nem todas as pessoas percebem é a conexão entre os
dois tipos de assunto. Ou seja, nem todo mundo pára e pensa de onde saem os
recursos para recapear as ruas, para desentupir os bueiros, para pagar o oficial
de justiça que intimará nosso vizinho barulhento, nem a ambulância para levar
ao hospital os feridos numa batida. Mas esses impostos, dos quais tanto
reclamamos, são a origem dos recursos que permitem que o Estado forneça esses
serviços indispensáveis para a vida em sociedade.
Se essa primeira constatação pode parecer bastante óbvia
para qualquer pessoa sensata, ficam duas perguntas posteriores cuja resposta
certamente é mais complexa: 1) Qual deveria ser o total de recursos que tiramos
dos cidadãos para financiar o Estado? ; 2) Como deveríamos distribuir esse
esforço?
A primeira questão não tem uma resposta única; o quanto o
Estado venha precisar dependerá de quanto esperemos dele. Veja-se um exemplo
muito simples: para manter uma escola, uma ponte ou um museu, é possível cobrar
dos seus usuários uma mensalidade, um pedágio ou um ingresso. Alternativamente,
o Estado pode manter essas coisas sem cobrar nada dos usuários, mas terá que
obter recursos de um fundo comum sustentado pelos cidadãos. E obviamente também
podem ser propostas situações intermediárias.
Parece evidente que quanto maior o conjunto de atividades
que esperamos que o Estado faça, maior o volume de recursos que devemos
destinar para ele. E, dentro dessas atividades do Estado, há algumas que só ele
pode fazer. Talvez a justiça e a segurança sejam os melhores exemplos: quase
ninguém (exceto talvez os muito ricos) gostaria de morar num país no qual
juízes e policiais não fossem pagos pelo Estado, e tivessem que conseguir seus
ingressos vendendo seus serviços aos particulares quando estes os procurarem. Algo semelhante
acontece com as forças armadas: se queremos que elas existam, parece mais do
que razoável que sejam financiadas coletivamente.
Todavia, embora seja claro que há certas atividades que só o
Estado pode fazer, as sociedades modernas manifestaram repetidamente seu
entendimento de que desejam que o poder público, como representação da vontade
coletiva, se encarregue de muitas outras. Entre as mais óbvias estão a educação
e a saúde; no mundo todo, parte ou toda a educação nos diferentes níveis é
fornecida pelo Estado, enquanto que a sua presença é crucial na provisão de
hospitais, consultas, exames, vacinas e
remédios, seja diretamente ou através de contratos. Com efeito, mesmo nos países
onde o fornecimento privado dos serviços de educação e saúde é relevante, o
Estado certamente garante sua provisão para os setores de menores recursos, os
quais não teriam acesso sem essa intervenção.
Mas a presença do Estado nas sociedades modernas não pára por aí. O
Estado tem um papel central na previdência social (aposentadorias, pensões e
outros benefícios), na pesquisa científica básica, na defesa civil, no
levantamento de estatísticas, na defesa do consumidor, etc. Até para garantir
que a coxinha do boteco da esquina seja de frango e não de rato esperamos que o
Estado fiscalize a qualidade dos alimentos. Ou seja, mesmo sem parar para
pensar, contamos com a presença do Estado em muito mais atividades das que
poderíamos mencionar neste artigo!
Se as sociedades esperam que seus Estados forneçam esses
serviços, os cidadãos deveriam ter claro que de algum lugar esses recursos
devem sair. E não existe outra fonte dos ditos recursos que não seja a
contribuição dos próprios integrantes da sociedade, os quais devem destinar
para isso parte dos seus rendimentos; esta parcela são seus impostos.
Com esses recursos o Estado pagará os salários dos juízes,
policiais, professores e médicos, mas os gastos não se restringem aos salários;
também o hoje tão vilipendiado custeio é importante. O juiz deve ter um
computador, o policial armas com balas, o pesquisador seu laboratório, etc.
Mais ainda, deve existir um corpo especializado que administre esse conjunto de
pessoas, que discuta quais devem ser as leis, que represente o país no
exterior, etc. Aliás, como vemos, muitos
dos membros dessa sociedade trabalham diretamente para o setor público e também
contribuem com parte de seus rendimentos para manter o aparelho do Estado. Por
isso, a divisão radical que muitos ingenuamente fazem entre a sociedade (nós) e
o Estado (eles) é tola: será que pensam que no Estado só trabalham marcianos?
Obviamente, no fornecimento desse vasto conjunto de serviços
podem ocorrer erros e também podem se verificar diversos desvios de recursos,
como ocorre em qualquer outra organização. Mas apesar disso, à luz da
importância das tarefas das quais o Estado deve se encarregar, consideramos que
quando um cidadão interpreta que pagar impostos é essencialmente “alimentar a
roubalheira” ou “manter as mordomias de uns poucos privilegiados”, esse
reclamão não entende minimamente o funcionamento das sociedades contemporâneas.
Essa expansão dos serviços públicos levou a que a presença
do Estado na economia, que representava de 5 a 10% do PIB nos diversos países
no inicio do século XX, alcançasse no início deste milênio a marca de
aproximadamente 35% do PIB na média dos países da OCDE - Organização para a
Cooperação e Desenvolvimento Econômico (40% nos da União Européia). Nesse sentido, a carga tributária no Brasil,
por volta de 35%, certamente não é uma jabuticaba, algo que só ocorre no
Brasil, como alguns críticos da mesma querem que as pessoas acreditem. Portanto, nossa primeira questão está
resolvida: certamente, se as diversas sociedades, entre elas a brasileira,
querem que o Estado forneça uma quantidade razoável de serviços, devem pagar
por eles.
A segunda questão, a da distribuição do peso dos impostos, é
talvez mais complexa. Para começar, temos a questão operacional de como fazer
para arrecadar esses recursos. Em outros momentos da história, os governos
dependiam muito das operações de importação e exportação porque só era fácil
fiscalizar a atividade econômica nos portos e nos caminhos. Certamente, a
tecnologia permite que hoje seja mais fácil acompanhar essas atividades ,
permitindo taxar as transações entre particulares e os ganhos dos mesmos e
dificultando a evasão. Mas, se o problema de onde e como arrecadar encontra-se
simplificado em nossos dias, a questão fundamentalmente passa a ser: de quem
cobrar quanto, por quais coisas?
Esquecendo neste artigo algumas categorias relevantes de
impostos, queremos destacar dois tipos fundamentais: de um lado, os impostos ao
consumo, e do outro os impostos sobre a renda e a propriedade. Os impostos do
primeiro tipo são pagos por todas as pessoas na mesma proporção; eles podem
variar dependendo da classe de produto, e tipicamente os alimentos básicos
pagam alíquotas menores que os bens de consumo de luxo, mas o valor pago será o
mesmo se for um favelado ou um milionário quem comprar o produto. Ao contrário, a incidência dos tributos do
segundo tipo pode variar de pessoa para pessoa. Claro que não é obrigatório que
isto ocorra. Poderíamos pensar em situações nas quais todos os cidadãos
pagassem uma percentagem fixa de seus ganhos, independentemente de quais estes
forem; poderíamos inclusive pensar numa sociedade que defende os ricos (como as
sociedades medievais, nas quais a igreja e os nobres ficavam isentos dos
pagamentos que só recaiam no Terceiro Estado, ou seja, no restante das pessoas)
e na qual eles pagam menos que os pobres. Mas a visão da totalidade das
sociedades modernas que nós conhecemos defende a progressividade dos impostos
sobre a renda e a propriedade, ou seja, considera-se que quanto maiores os
recursos das pessoas, é justo que elas sejam obrigadas a pagar mais.
Se aceitarmos que o princípio da progressividade é
desejável, e fácil entender que quanto maior for a importância dos impostos ao
consumo no total da arrecadação, mais estaremos nos afastando desse ideal; se a
soma dos impostos ao consumo no preço de uma panela é R$ 10, esse valor será o
mesmo para o operário que ganha R$ 1.000, para seu gerente que ganha R$ 10.000
ou para o diretor da firma que ganha R$ 100.0000. Por esse motivo, na maioria
dos países da OCDE as somas que os governos arrecadam com os impostos sobre a
propriedade e a renda, ultrapassam largamente o que eles obtêm taxando o
consumo. Em alguns poucos países desse grupo essa ordenação se inverte, e os
impostos sobre o consumo superam os do outro tipo; mas em nenhum deles ocorre o
que acontece no Brasil, onde o montante obtido a partir dos impostos sobre a
renda e a riqueza representa pouco menos da metade do arrecadado taxando o
consumo.
É importante destacar também que o princípio de
progressividade pode ser implementado de maneira que acabe tendo poucos
resultados práticos. Imagine-se um país no qual se diga que os desempregados
não pagam imposto de renda, os empregados com salário inferior a dez milhões de
dólares pagam 20% do salário, e os que ganham mais do que isso pagam 50%. Esse
sistema seria só nominalmente progressivo: provavelmente salários de mais de
dez milhões não existam, então todos os empregados, seja qual for seu salário,
pagariam a mesma percentagem. Mais ainda, ao só taxar os salários, e não fazer
menção às demais fontes de renda, tais como os ganhos de capital ou os
aluguéis, essa lei ignoraria uma parcela substancial dos ganhos de muitas
pessoas, entre elas muitos dos mais ricos. Por isso, para se constituir um
sistema tributário verdadeiramente progressivo, pareceria desejável distinguir
diversos patamares de ganhos (não só de salários), e aplicar a eles alíquotas
crescentes na medida em que esses ganhos forem sendo maiores.
Podemos sugerir que um critério que dá uma boa ideia da
progressividade de um sistema tributário é a alíquota máxima do imposto de
renda sobre a pessoa física (IRPF), que seria essencialmente a que se aplica às
elites desses países. Na OCDE ela é hoje de aproximadamente 40% em média, enquanto
que no Brasil ela é de 27,5%, valor inferior ao de quase todos os países dessa
organização, exceto o México e a Eslováquia. Mas o sistema brasileiro tem outra
particularidade: o limite a partir do qual o contribuinte entra na alíquota
máxima é aproximadamente de sete salários mínimos mensais. Isso significa que,
para fins do imposto de renda, no Brasil as pessoas que ganham sete, setenta ou
setecentos salários mínimos formam parte da elite, o que parece colocar numa
única categoria realidades muito diferentes.
Um dado curioso é que no Brasil a alíquota máxima do IRPF há quinze anos
era de 35%, mas o Brasil nesse período movimentou-se em sentido oposto ao que
seria razoável esperar. Mais ainda, já que mencionamos acima os impostos sobre
a riqueza, é interessante lembrar que o imposto sobre grandes fortunas está
previsto na Constituição de 1988, mas ainda não foi regulamentado.
Hoje no Brasil as queixas contra a carga tributária parecem
ter se tornado um lugar comum. Na medida em que isso registre apenas a
dificuldade instintiva de qualquer pessoa em abrir mão de algo que considerava
seu, entendemos que é uma atitude compreensível. Num segundo momento, com um
mínimo de reflexão, temos que entender que tal reclamação não faz muito
sentido. O volume da carga tributária em
relação ao Produto Interno Bruto (PIB) encontra-se em um nível compatível com o
da maioria dos países desenvolvidos; então o verdadeiro problema a ser
enfrentado é o de como distribuir esse ônus de maneira mais justa. Conforme
propusemos acima, a mudança na composição dos impostos, enfatizando os impostos
diretos sobre a renda e a riqueza, seria um primeiro passo necessário. Logo a
seguir, deveria se proceder a escalonar melhor as alíquotas do IRPF,
diferenciando a situação das classes médias e das elites, aumentando ao mesmo
tempo a alíquota máxima. A regulamentação do imposto às grandes fortunas
coroaria certamente esse avanço proposto. Isto não significa ignorar outros
problemas do sistema tributário brasileiro, começando por sua desnecessária
complexidade; apenas destacamos aqui algumas das medidas que certamente o
tornariam mais justo.
Ramón García Fernández é
economista, professor de economia na Universidade Federal do ABC e Pedro Caldas Chadarevian é professor no curso
de ciências econômicas e no mestrado em economia aplicada da Universidade
Federal de São Carlos (Campus Sorocaba)
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