Uma
lista infindável de produções nas áreas de literatura, cinema e
teatro manifesta o interesse de seus autores pelo conhecimento
científico. Isso acontece principalmente entre os cineastas,
especialmente em uma área de estudo que desperta a curiosidade por
tentar desvendar e compreender melhor a natureza humana: os
transtornos mentais analisados pela psicanálise e psiquiatria. Rico
em obras inspiradas nos mais diversos campos da ciência, o cinema se
destaca por apresentar em algumas produções uma forte crítica à
psiquiatria, mais especificamente no que diz respeito ao tratamento
dos distúrbios mentais que, em determinada época, podiam ser
interpretados como brutais. “Temos um longo período de crítica
contra a psiquiatria nos anos 70 do século passado, ilustrado
especialmente pelo filme Um estranho no ninho”, comenta o
médico José Paulo Fiks, doutor em comunicação social e autor de
quatro livros relacionando psiquiatria e cultura.
O
filme mencionado por Fiks – cujo título original é One flew
over the cuckoo’s nest, de 1975, de grande sucesso e ganhador
de muitos prêmios, entre eles cinco Oscars – é estrelado pelo
ator Jack Nicholson, interpretando um detento rebelde chamado Randall
McMurphy que finge ser louco para ser transferido para um asilo onde,
ele imaginou, seria mais fácil viver. Lá, é submetido à
lobotomia, técnica que consiste na retirada de uma parte do cérebro
de pacientes com certos tipos de doenças mentais como forma de
acalmá-los. Para casos assim, a lobotomia não é mais praticada,
dando lugar aos medicamentos ou psicoterapia.
Para
Fiks, as pazes da psiquiatria com as artes começaram a ser feitas
pela literatura. “Vários autores, como William Syron em A
escolha de Sofia, e outros, abriram suas depressões via
literatura. Hoje, vemos entre os livros mais vendidos vários títulos
que tratam de desordens mentais, a exemplo de depressão, transtorno
bipolar, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH)
e transtornos de personalidade”.
Já
no cinema, é a partir dos anos 90 que tem início a produção de
alguns filmes que tentam retratar o transtorno mental de forma mais
próxima à clínica, muito provavelmente acompanhando a evolução
dos tratamentos psiquiátricos, que passaram de técnicas de
tratamento como a lobotomia para a medicação e a psicoterapia.
Exemplos não faltam. Destacando-se apenas alguns, tem-se o retrato
do transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) em Melhor é impossível
(As good as it gets, 1997), protagonizado pelo ator Jack
Nicholson que, novamente, encarna um personagem fora dos padrões de
comportamento estabelecidos; o transtorno bipolar como foco em Mr.
Jones (Mr. Jones, 1993), drama estreado pelo ator Richard Gere, e
Garota interrompida (Girl, interruped, 1999) que
trata de depressão e de transtornos de conduta alimentar e que
rendeu um Globo de Ouro e o Oscar de melhor atriz coadjuvante à
atriz Angelina Jolie.
Essa
ampla galeria de personagens portadores de transtornos mentais nem
sempre é ficcional, mas também artistas e personalidades, vítimas
desses distúrbios têm sido retratados no cinema. São pessoas que
fizeram história em vários campos artísticos e na ciência. Dois
deles são retratados nos filmes As horas (The hours, 2002)
abordando vários quadros depressivos e de ansiedade que
atormentavam a escritora Virginia Woolf, e Uma mente brilhante (A
beatiful mind, 2001) contando a história do matemático John
Nash, ganhador do Prêmio Nobel de Economia em 1994, portador de
esquizofrenia.
Os
filmes, peças e livros que abordam essa questão, acabam provocando
uma “divulgação” das doenças mentais, o que tem como
consequência o aumento da procura pelos consultórios médicos. “Os
pacientes chegam em busca de esclarecimento. Mas outro aspecto
importante é a diminuição de preconceitos. Quando determinado
assunto polêmico, como o transtorno mental, a psiquiatria, a
psicoterapia e, especialmente, o uso de psicotrópicos é trazido à
tona, o debate tem sido imediato. Isso ajuda a difundir as questões
levantadas pelos diagnósticos e pelos tratamentos, o que é
extremamente positivo para todos”, avalia Fiks.
Essa
divulgação não se restringe ao campo psiquiátrico e colabora com
a ampliação do conhecimento na área das doenças neurológicas, a
exemplo do autismo no caso do filme Rain man (Rain man,
1988) – que deu o Oscar de melhor ator a Dustin Hoffman em 1989. O
filme contribuiu para a divulgação do autismo mais do que todos os
artigos científicos já escritos sobre o assunto, na avaliação do
médico neurologista Edson José Amâncio. Já o filme argentino O
filho da noiva (El hijo de la novia, 2001), elogiado pelos
críticos e ganhador de muitos prêmios, retrata de maneira
emocionante o caso da personagem Norma, uma vítima de Alzheimer.
Além
disso, o impacto das produções cinematográficas pode, por outro
lado, influenciar os caminhos da própria ciência. Um exemplo é,
mais uma vez, o filme Um estranho no ninho. “Essa produção
ajudou a soterrar a lobotomia, usada até pouco tempo”, comenta o
neurologista Amâncio. A técnica foi desenvolvida pelo neurologista
português António Egas Moniz (Egas), e garantiu a ele o Prêmio
Nobel de Medicina e Fisiologia em 1949. Nos Estados Unidos, onde a
lobotomia foi aprimorada, mais de 30 mil cirurgias foram realizadas.
“ Era uma técnica consagrada no tratamento de esquizofrenia, entre
outros transtornos. Afinal, ainda não havia remédio para esses
casos”, diz Amâncio.
Arte
inspira ciência
Se,
por um lado, é possível concluir que a ciência inspira a arte,
seria possível então admitir que a relação é recíproca? A
resposta positiva em relação à psicanálise, que encontra material
fértil nos artistas e em suas produções para a construção de
suas teorias situadas no campo dos distúrbios mentais. O médico
psiquiatra Cláudio Rossi, em seu artigo “Arte e psicanálise na
construção do humano”,
coloca: “como se sabe, boa parte das teorias psicanalíticas, posta
em termos científicos, baseou-se em obras de arte. Freud não
escondia sua admiração por Shakespeare e por Goethe. Seu estudo
sobre a obra e a vida de Leonardo da Vinci foi fundamental para expor
suas teorias sobre a sexualidade e em Wilhelm Jensen encontrou um bom
apoio para sua teoria sobre a psicose. Isso para não dizer que a
pedra angular de sua construção encontrou no Édipo rei, de
Sófocles, sua possibilidade de vir à luz”.
Não
é só na psicanálise que é possível encontrar relações entre as
produções artísticas e a ciência. A neurologia também encontra
na arte explicações que contribuem para o avanço do conhecimento
da área. Por exemplo, a primeira descrição da epilepsia do lobo
temporal foi feita por um escritor – Fiódor Dostoiévski – e não
por um médico. “A neurologia rende tributo a Dostoiévski. Ele –
que sofria de epilepsia do lobo temporal – foi o autor da
primeira descrição, no romance O idiota, da aura (estágio
que antecede a crise epilética) com alegria e êxtase”,
comenta Amâncio,
um profundo conhecedor da obra do escritor russo e autor de vários
artigos, ensaios e de um romance, ainda não publicado, sobre ele.
O
livro Proust foi um neurocientista – como a arte antecipa a
ciência aborda justamente o fato de artistas tomarem a dianteira
em alguns casos. Em seu artigo “Madeleine, sinapses e neurônios”, publicado na edição de 26 de fevereiro deste ano do jornal O
Estado de S. Paulo, o autor Sérgio Augusto comenta o lançamento
dessa obra: “Na capa poderia estar o pintor Paul Cézanne ou o
compositor Igor Stravinsky ou o poeta Walt Whitman ou as escritoras
Virginia Woolf, Gertrude Stein e George Eliot, pois todos estes (...)
anteciparam descobertas da neurociência e sacaram verdades (reais e
tangíveis) sobre a mente humana que só agora a ciência está
‘ redescobrindo’, segundo o autor do livro, Jonah Lehrer”.
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