Quando se fala sobre livros
raros, algumas questões relacionadas costumam vir à tona, como o conceito de
raridade bibliográfica e a prática do colecionismo. Sobre o colecionismo, sabe-se que
é inerente ao ser humano a vontade de possuir objetos, de guardar coisas.
Partindo desta premissa, é possível deduzir que um objeto cuja existência venha
a se tornar conhecida, em algum momento será o “objeto de desejo” de alguém.
Dessa necessidade humana de possuir, surgem as coleções.
Mas o que move esse desejo, esse
impulso de guardar coisas, acumular objetos? Uma possível explicação seria o
fato de que os seres humanos são dotados de um instinto de propriedade. Além do
mais, possuir determinadas peças confere prestígio a quem as possui. É como se
houvesse a possibilidade da transferência do significado e da importância do
objeto para o seu detentor, uma apropriação do poder inerente à obra.
Somando-se a isso, há ainda um desejo de conservação do patrimônio às gerações
futuras, numa tentativa de preservar uma amostra das tradições, costumes,
crenças etc., de uma época, representadas por artefatos intencionalmente
selecionados.
Assim como qualquer outro objeto
colecionável, o livro também carrega sua carga simbólica, e representa a
materialização da cultura e do conhecimento. Consequentemente, assume
características que vão além de sua finalidade inicial – a de servir de suporte
à s ideias, passando a simbolizar o conhecimento em si, sendo objeto de status e
poder, agregando características que o tornam também objeto de apreciação.
Colecionadores de livros raros
escolhem suas obras em função, principalmente, da caracterização do livro
enquanto objeto: belas encadernações, livros nos quais se encontram preciosas
gravuras, exemplares que possuem anotações manuscritas de pessoas de destaque
na vida pública ou em determinada área do conhecimento, tiragens especiais etc.
Sendo assim, livros tornam-se
raros ou valiosos quando carregados de significado, ou seja, quando apresentam
características que os elevam à categoria de símbolos, sejam estes de poder, de
status, de riqueza ou de superioridade, deslocando-se do universo dos “livros
comuns” para o universo das “raridades bibliográficas”.
Mas o que torna um livro raro?
Não existem fórmulas fáceis para
determinar a raridade de um exemplar. Um livro pode se tornar valioso por seu
conteúdo – por exemplo: os primeiros relatos de invenções e descobertas
científicas, as primeiras edições de importantes obras literárias ou históricas;
ou por suas características físicas – por exemplo: encadernações luxuosas
contendo ouro e pedras preciosas, anotações manuscritas de uma pessoa ilustre,
livro cujas ilustrações dão uma nova interpretação de um texto ou da obra de um
artista de renome etc.
Pode-se dizer também que a
raridade está direta e intimamente ligada à escassez da obra, ou seja, um livro
alcança o status de raridade bibliográfica quando a sua procura excede a
oferta, tornando-se difícil de ser encontrado devido a uma série de fatores
que, isolados ou combinados entre si, determinam a importância dessa obra
dentro do universo bibliográfico. Um exemplar único possui atributos que o
tornam insubstituível, o que acaba incidindo diretamente na relação
oferta-procura, aumentando o seu valor de mercado. Daí advém sua carga
simbólica, seu status, sua representatividade: torna-se “objeto de desejo” de
alguém.
Em geral, curadores de acervos,
colecionadores de obras raras e livreiros antiquários fazem uso de uma
metodologia própria, baseada em uma série de aspectos relacionados à obra, que
norteia seu trabalho de identificação de raridades. Essa metodologia,
sistematizada e apresentada pela bibliotecária Ana Virgínia Pinheiro (chefe da
Divisão de Obras Raras da Biblioteca Nacional) em sua obra Que é livro raro1, sugere a
observação das seguintes características:
Limite histórico
Deve-se observar os períodos que
caracterizam a produção artesanal de livros. A antiguidade, por si só, não é
suficiente para tornar um livro valioso sob o ponto de vista mercadológico. A
importância do texto, as condições do exemplar e a demanda pela obra
determinarão o valor de um livro antigo. No entanto, algumas categorias de
livros são geralmente mais procuradas, incluindo:
- Todos os livros impressos antes
de 1501: em meados de 1450, Johann Gutenberg (1397-1468) inventou, em Mogúncia
(Alemanha), a imprensa de tipos móveis. Antes disso, os livros eram escritos
manualmente, copiados um a um, de forma totalmente artesanal. Desde então, e
até 1500, os livros impressos receberam a denominação de incunábulos (obras
impressas nos primeiros anos após a invenção da imprensa, até 1500), e
correspondem ao período que se pode chamar de “infância da imprensa”.
- Livros impressos nas Américas
antes de 1801: nos séculos subsequentes à invenção de Gutenberg, a imprensa se
difundiu rapidamente, porém de maneira irregular, chegando mais cedo em alguns
lugares e mais tardiamente em outros. Assim, pode-se também considerar raros os
livros impressos nas Américas até o ano de 1801, quando sua produção em papel
artesanal perdeu representatividade e o livro impresso ganhou sua face
industrial.
- Livros impressos no Brasil no
período da Impressão Régia (1808-1822), podendo-se estender este período até o
final do século, devido à demora com que se desenvolveu a imprensa em certas
regiões do Brasil (no Rio Grande do Sul, por exemplo, a história da imprensa
tem início em 1827, quando surgiu o primeiro periódico gaúcho: o Diário de
Porto Alegre).
Aspectos bibliológicos
Deve-se observar características
referentes ao processo e aos materiais utilizados na produção da obra. Deve-se
considerar o tipo de papel utilizado na confecção da obra (ex.: pergaminho,
velino); a presença de ilustrações produzidas de forma artesanal ou por um
artista de renome, como calcogravuras, litogravuras e aquarelas; belas e
luxuosas encadernações que utilizam materiais nobres e preciosos, como pedras e
ouro; livros impressos em formatos peculiares, como edições em miniatura ou em
formatos não usuais.
Valor cultural da obra
Um dos fatores mais relevantes na
determinação de raridade é a importância intrínseca da obra, ou seja, o quão
importante o livro é considerado na sua área. Devido a este fator, as primeiras
edições (também chamadas de edições princeps)
de uma obra importante para determinada área do conhecimento são bastante
valorizadas. Este é o caso, por exemplo, das seis primeiras edições de On
the origin of species (A origem das espécies), de Charles Darwin,
que se tornaram atraentes para colecionadores por demonstrarem mudanças
importantes no pensamento de Darwin ao longo do tempo. Da mesma forma que as
edições princeps, edições censuradas,
expurgadas e tiragens reduzidas também costumam ser consideradas raras.
Pesquisa bibliográfica
Diversos repertórios bibliográficos
consagrados podem – e devem, sempre que possível – ser utilizados na pesquisa
sobre determinado autor ou obra. Tais repertórios são obras monumentais que
apresentam informações detalhadas sobre as obras e seus autores. É o caso, por
exemplo, da Bibliographia Brasiliana, de Rubens Borba de Moraes,
reeditada recentemente pela editora da USP. Esta obra, em dois volumes, é
considerada a principal fonte de referência de livros raros sobre o Brasil,
pois reúne descrições e comentários sobre livros publicados entre 1504 e 1900
referentes ao Brasil, além de livros de autores brasileiros do período
colonial, impressos fora do país.
Características do exemplar
Deve-se observar a integridade
física do exemplar (quanto mais preservado, maior será seu valor de mercado);
características como a presença de marcas de propriedade (assinaturas,
carimbos, ex-libris); a presença de
anotações manuscritas de pessoa ilustre (notas marginais, grifos, observações
manuscritas); a presença de dedicatórias e autógrafos.
Exemplares cujo antigo
proprietário é ou foi uma pessoa famosa ou importante para alguma área do
conhecimento tendem a aumentar o valor de mercado do mesmo. Da mesma forma,
autógrafos, inscrições ou dedicatórias, ex-libris,
carimbos ou outras marcas distintivas, comprovadamente autênticos, também
contribuem para tornar o livro raro: o objeto livro passa agora a representar o
proprietário e toda a sua influência. Torna-se, portanto, um intermediário
entre o leitor e o ilustre proprietário.
Há que se observar, porém, que
autores contemporâneos costumam assinar muitas cópias de seus livros em eventos
organizados para promover a venda de suas obras (lançamentos, feiras do livro
etc.). Por serem comuns nos dias de hoje, os autógrafos normalmente acrescentam
pouco ao valor de mercado do livro. Sendo assim, às vezes, torna-se necessário
consultar um especialista com amplo conhecimento do mercado livreiro para
avaliar um exemplar assinado.
Baseadas nos aspectos acima
mencionados, as bibliotecas costumam elaborar uma série de critérios para
determinação de raridade, buscando assegurar tratamento adequado às suas obras.
Além de estabelecerem regras sobre o que será considerado raro, esses critérios
balizam o trabalho do bibliotecário, contribuindo para sanar a dúvida inicial sobre
o que vem a ser um livro raro.
Enfim, para alcançar o status de
raridade, livros devem atender a pelo menos um dos requisitos acima
mencionados, sendo que alguns conseguem atender a vários requisitos ao mesmo
tempo. Livros raros são luxos, objetos de desejo que bibliotecas e
colecionadores ambicionam ter para si. Cabe aos curadores de acervos,
bibliotecários, colecionadores, pesquisadores, livreiros etc. buscar subsídios
para que essas obras sobrevivam à ação do tempo, para que gerações futuras
possam se deliciar com os prazeres de ler, ver ou manipular um livro raro.
Márcia Carvalho Rodrigues é bibliotecária, mestre em letras, cultura e regionalidade
e coordenadora do Setor de Processamento Técnico da Biblioteca Central da
Universidade de Caxias do Sul. Referencia: 1 PINHEIRO, Ana Virgínia Teixeira da Paz. Que é livro raro? Uma metodologia para o estabelecimento de critérios de raridade bibliográfica. Rio de Janeiro : Presença, 1989.
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