A filosofia produziu, ao longo de sua vasta tradição, algumas imagens de si própria, e aquela que se hegemonizou até nossos dias tem como principal característica nos apresentar o ato e a prática do pensamento como próprios à nossa natureza e uma tarefa até mesmo banal: pensar nos é constitutivo. Basta ser para pensar, ou dito de outro modo, todo homem é capaz de pensar, desde que suas faculdades básicas estejam em acordo: a sensibilidade, a imaginação, o entendimento e a razão. E mais, que este acordo entre as faculdades dá ensejo a uma forma de subjetividade que é compartilhada por todos. Nós, os humanos..., sujeitos (do conhecimento) e ‘sujeitadores', estamos sempre prontos a ter idéias e produzir verdades sobre o mundo, revelando e desvelando as obscuridades do real. Essa imagem do pensamento filosófico, que é uma imagem própria à filosofia, como prática, mas também como disciplina, foi esboçada já por Platão (mesmo que entre os gregos antigos, noções como as de faculdades humanas, em acordo ou em desacordo, assim como de subjetividade, não estivessem presentes em sua mentalidade). Porém, seria na modernidade, com Descartes e Kant, que essa imagem da filosofia e, consequentemente, do filósofo, de um tipo de filósofo, diga-se de modo bem explícito, viria se consolidar. Essa imagem da filosofia e do que seria o filosofar, Gilles Deleuze denominou de imagem dogmática, metafísica ou moral do pensamento. Essa imagem do filosófico implicou um modelo de pensar que, em sua prática filosófica, estaria refém de um modo recognitivo do pensamento, isto é, pensar é, dessa maneira, um acolher a um já dado, pensar é estar passivo diante das idéias, que existiriam independentemente de nossas volições. Logo, pensar nos coloca em posição de quase estupor. O que Deleuze denuncia é toda uma estratégia política própria à filosofia, política filosófica em seu sentido mais forte, uma política da verdade, a serviço fundamentalmente da moral. Nessa imagem do pensamento, o pensador, todo e qualquer pensador, seja ele mesmo um suposto pensador, criador de idéias, seja produtor de conceitos (o filósofo), seja inventor de funções (o cientista), ou mesmo instaurador de monumentos (o artista), criaria a partir de um modelo de verdade, que é, desde sempre, um modelo moral. Há então, o filósofo refém do "Bem", o cientista servo do "Verdadeiro", o artista escravo do "Belo". Esse modelo de verdade que contrapõe o "Bem" ao "Mal", o "Verdadeiro" ao "Falso", o "Belo" ao "Feio", é também, como foi dito, um modelo moral e, consequentemente, também, um modelo epistemológico e um modelo estético.
O que aqui tentaremos mostrar é que esse modelo de verdade que atravessou a história do pensamento, cunhando para si uma imagem que se propõe ser “A Imagem do Pensamento”, insere em sua estratégia geopolítica filosófica uma forma da prática do filosofar que procura eliminar o risco e o acaso do pensar. Entretanto, para colocarmos em questão essa estratégia da imagem dogmática ou moral do pensamento, antes de tudo, precisamos pensar as noções de “risco” e “acaso” como idéias filosóficas, ou, dito de outro modo, precisamos introduzir o risco e o acaso no pensamento. É preciso mostrar que é possível, e, talvez, somente assim, com o risco e o acaso, seja possível a própria criação, seja filosófica, científica ou artística. Defendemos que criar é, justamente, criar sob o signo do risco e do acaso.
Começaremos problematizando filosoficamente o acaso. Isso porque a contingência e suas relações com a necessidade é tema filosófico desde Aristóteles. O que é verdadeiro, positivo e científico, para contemporanizarmos o aristotelismo, é o que se faz por necessidade, não por contingência. E mais, é preciso afastar aquilo que não seria necessário da prática do pensamento. Não há lugar para o acaso entre os deuses, logo, não pode haver lugar para o casual na ciência primeira que é a metafísica. Em um mundo como o antigo, em que os desígnios humanos eram governados pela moira (o destino, para os antigos), realmente era de se esperar que apenas o necessário e o correto desse sentido à existência, no plano ético, e o verdadeiro e o verificável possibilitasse o conhecimento, no plano epistemológico. Havia uma inexorável articulação entre o necessário e o verdadeiro, entre o certo e o correto, logo também, entre a contingência e o engano, entre o acaso e o erro. Pensar a partir desse modelo, tanto no plano metafísico e no físico quanto no lógico e no ontológico, seria pensar o necessário e o verdadeiro. Por sua vez, as relações entre o acaso e o pensamento e entre o erro (no sentido de errância) e o conhecimento, somente teriam condições de possibilidade de estabelecerem-se após a modernidade, no limiar do contemporâneo. Desde então, estaríamos já sob a égide de Nietzsche: “Deus está morto!”. Nossa garantia ilimitada se foi, nosso avalista universal se esvaiu e o processo de antropomorfização da cultura estava lançado. Logo, uma questão pareceu se colocar: como podemos agora pensar? Darwin nos deu a indicação da resposta: não somos o epicentro do processo da criação, somos apenas um dos vetores das linhas que a vida tomou: a "vegetalidade" e a "animalidade", esta da qual, talvez, sejamos sua mais perfeita tradução. Por outro lado, as modernas práticas científicas, da física quântica ao “efeito borboleta”, da teoria do caos à ciência do provável e do imprevisível, nos deixaram ver que a contingência, pensada como o acaso e a necessidade não são necessariamente antípodas, leiamos, ainda, Jacques Monod.
Diferentemente do acaso, a noção de risco, se nos propusermos a fazer um estudo genealógico do conceito, não possui essa longa duração de problematizações pela história da filosofia, às quais passou a noção de contingência. É certo que, indiretamente, Aristóteles, ao defender a phronesis (prudência ou temperança) como das mais axiais entre as virtudes, levanta a questão do risco, ou melhor, dos riscos a que somos acometidos se, porventura, não utilizarmos a reta razão para agirmos. De fato, estaríamos, segundo o estagirita, lançados à imprudência e, como tal, sujeitos à má escolha e às "invirtudes" ou aos vícios, ou mesmo, destinados a nos defrontar com a hybris (a desmedida, fúria dos deuses) caso não ajamos prudentemente. Trata-se, então, de não nos arriscarmos para que não corramos perigo. Bem, este é o ponto que consideramos fundamental para uma discussão filosófica acerca do que seja o "risco", além de sua articulação à noção de acaso e, o mais importante, que esta idéia seja pensada como força e potência criativa e criadora. Faz-se necessário distinguir, logo de início, “risco” de “perigo”.
Devemos levar consideração, antes de tudo, o sentido banal da idéia de perigo: estamos em perigo quando sujeitos a algo, a alguém, a alguma coisa que coloque nossa integridade física, psíquica ou mesmo emocional “em risco”. Exemplificando: se estivermos sobre o parapeito de um prédio de 40 andares, de olhos vendados, estamos, com certeza, correndo grande perigo. Por outro lado, e aqui afirmamos a despeito da estranheza que isso possa parecer, não estamos necessariamente nos arriscando. Isso porque o perigo é da ordem do possível. Toda ação perigosa traz em seu bojo o seu risco, isto é, seu grau de periculosidade. Já, por sua vez, o risco é não só mais amplo, como não é da mesma natureza que o perigo. Quando dissemos que o perigo traz, de modo subjacente, seu grau de risco a algum tipo de integridade ao vivente, destacamos que essa noção associa-se ao campo do possível. Explicando: o possível enseja sempre uma porção de real em sua materialização. Dito de outra maneira: todo possível, de algum modo, se realiza ou pode se realizar. Se, porventura, estamos no topo de um prédio, de olhos vendados, possivelmente cairemos. Ou seja, a queda é a realização possível de nossa imprudência. Entretanto, seguindo esta linha de problematização, estar no parapeito de um prédio de 40 andares de olhos fechados não apresenta nenhum risco, pois, entendemos que o risco não é da ordem do possível e dos seus processos de realização, mas, isso sim, da ordem do atual e do virtual, dos processos de atualização do virtual ou das virtualidades. O que isso significa?
A idéia de risco não comporta evidentemente um tipo de desfecho, como um perigo a rondar um vivente, que possa de antemão ser apontado como “aquilo acontecerá se fizer tal coisa”. Arriscar-se comporta outro sentido. É lançar-se ao desconhecido e ao acaso. Exemplificando: se, como artista-músico, ouso compor, evidentemente munido de rigor e pesquisa, a mais incompressível, aos meus contemporâneos, e incompreendida, aos meus pares, das sinfonias, provocando torções inusitadas nas notas e desconstruindo os instrumentos tradicionais a esse tipo de composição musical, não corro perigo algum, estaria lançando-me sob o signo da criação e sob a órbita do acaso. O que viria a se dar não poderia estar contido no campo do possível a ser realizado. Estaríamos destinados por essa obra a compreender a urgência do contingente e da incerteza.
Diríamos, por outro lado, confirmando as diferenças de natureza entre risco e perigo, que este último é lógico e aquele ontológico. O perigo implica em seqüências que podem ser determinadas: o prédio alto; os olhos vendados; a queda (possível ou provável). O risco suscita uma forma de compreensão que não pode ser acolhida por uma ordem lógica, por uma forma ou fórmula seqüencial. Arriscar-se será sempre como lançar os dados. Há como que uma escolha que não escolhemos ao nos colocarmos em risco. Talvez, melhor dizendo, não nos colocamos em risco como nos colocamos em perigo. Estamos simplesmente em risco, na forma mais extrema do risco: a criação.
O perigo é um caminho que pode ou não ser tomado, seguido, traçado pelo caminhante. O risco é o próprio caminho que se coloca à frente daquele que caminha. O perigo é bússola, o risco é errância.
Nosso intuito aqui, além de marcar as distinções entre perigo e risco e as relações deste com o acaso, possui como seu principal propósito o de mostrar o quanto a criação, todo e qualquer tipo de criação, seja ela filosófica, científica ou artística, depende em larga medida de enfrentarmos o risco e afirmarmos o acaso. A criação é este grande enfrentamento e esta grande afirmação.
Criar, em seu sentido mais radical, é produzir o novo. Trata-se, deste modo, de não trilhar os caminhos até então percorridos. Trata-se de lançar-se à deriva, experimentar um certo nomadismo, abrir-se aos devires, afirmar o acaso, todo o acaso. Os criadores, filósofos, cientistas ou artistas, ao abrirem-se aos devires, experimentam o novo em suas obras. Obras filosóficas ou experimentos científicos, por exemplo, dependem daqueles que os criam, que os produzem arriscarem-se e lançarem-se às contingências e às forças externas a si mesmos. Eles próprios não são “donos” de suas criações.
Diremos, então, que o pensamento, nossa força criadora originária, não é obra de passividade e estupor, como defende uma certa imagem da filosofia, aquela que Gilles Deleuze denominou de imagem dogmática ou moral. Isso porque pensar é se abrir ao acaso, é estar em risco, sempre. Criar é o lançar-se à maior das vertigens, bem mais suspensos ficaríamos do que se estivéssemos ao parapeito de um prédio de 40 andares de olhos vendados. Criar é a vertigem radical, a vertigem do pensamento.
Jorge Vasconcellos é filósofo e coordenador do Núcleo de Pesquisas em Filosofia Francesa Contemporânea da Universidade Gama Filho
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