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Artigo
Da coisa ao objeto, do artefato à tecnologia ubíqua
Por Fábio Duarte e Rodrigo Firmino
10/09/2011

Era 1988, e Mark Weiser, então chefe do setor de tecnologia da Xerox, previa que uma miríade de sistemas tecnológicos perpassaria nossos ambientes físicos e biológicos. Um mundo repleto de máquinas, computadores e sistemas que se comunicariam entre si e agiriam e tomariam decisões pelos seres humanos. E a história da relação entre o humano e o computador poderia ser dividida em três fases: muitas pessoas operando uma máquina (mainframe); uma pessoa, uma máquina (computação pessoal); muitas máquinas por pessoa (computação ubíqua).

Mas era, muito antes, um mundo de coisas. E as coisas existiam por si mesmas. E o humano vivia entre as coisas. E o humano, para sobreviver entre as coisas, e para dominar o mundo de coisas, buscou entendê-las. Frágil, não podia apossar-se delas, tomá-las para si. Mas foi capaz de entendê-las, em suas características físicas, biológicas, químicas. E o humano apropriou-se do mundo de coisas pelo seu entendimento. O humano sabia a coisa antes de possuí-la. E dominou-a. A coisa não valia pelo que era, mas pelas suas possibilidades. E o humano fez da coisa, ciência; e fez da coisa, objeto; e fez da coisa, ferramenta. Frutos ganharam valor pela semente – não pela saciedade da fome imediata, mas por evitar fomes futuras. Pedras tornaram-se muro – e a possibilidade de proteção. Ossos tornaram-se armas de caça – e a possibilidade de ingestão constante de proteína. E o mundo de coisas deu lugar ao mundo da ciência, dos objetos e das ferramentas. Ciência, objetos, ferramentas são o mundo de coisas entendido e transformado.

E o humano criou um mundo de objetos e ferramentas. Os objetos são o fim de um processo de entendimento e transformação de coisas. Em uma cadeira, senta-se. Em uma cabana, abriga-se. As ferramentas são o meio para que um fim, que está além e não contido nelas, seja alçado. No fim da lança, está o animal abatido; na lâmina do machado, está a cabana. O objeto traz em si o conhecimento cristalizado. A ferramenta ainda depende de um conhecimento em ação. O objeto cristaliza as características físicas da coisa da qual provém: a consistência e a envergadura da madeira, a dureza e o corte da pedra. Mas é da empunhadura, da velocidade da corrida, da inclinação da lança, que depende o abate.

Para a ferramenta se cumprir – e deixar de ser um objeto – é preciso energia para colocá-la em ação, e conhecimento de como esta ação deve ser executada para que atinja o fim desejado: a técnica. O arpão, nas mãos de um pedreiro, terá energia, não técnica. A ferramenta sem técnica é apenas um objeto.

E o humano vivia, então, em um mundo de conhecimento, objetos e ferramentas. Um mundo que ele criou, pois entendeu e transformou as coisas. O humano entendeu as coisas ao ponto que não só delas fez objetos e ferramentas, mas as transformou em sua essência. A vacina é um vírus, uma coisa, entendida de tal modo que faz com que ele se volte contra si mesmo. A vacina é a coisa dominada, alterando a si mesma e ao próprio humano.

E o humano entendia também a energia e a técnica das quais as ferramentas dependem. E dominou-as. E amalgamou-as nas ferramentas. E transformou-as em artefatos tecnológicos. A energia produzida junto à ferramenta, para que ela agisse sempre do mesmo modo, com a mesma intensidade. A máquina a vapor move-se a si mesma. Um motor a combustão move-se a si mesmo. E o humano recriou o seu mundo – seu, com a propriedade do possessivo – de artefatos tecnológicos. E reconstruiu o seu espaço. Fez do espaço-mundo o seu território. E povoou-o de artefatos tecnológicos. Que sabem o que devem fazer – foram imbuídos de um saber-fazer. Mas dependem de uma fonte de energia. Então, o humano entendeu a energia, dominou a mais propícia a ser distribuída rapidamente, e distribuiu-a por todo o espaço. E fez um mundo de energia elétrica distribuída e de artefatos tecnológicos. E recriou o seu espaço. E amalgamou espaço e tecnologia. E amalgamou-se a si mesmo à tecnologia. E o humano fez-se sinônimo de tecnológico. E o humano arrisca-se a pensar que o artefato tecnológico é coisa, é um dado inerente ao seu espaço. Água encanada, energia elétrica. Tecnologias que foram infiltradas no espaço que passam a constituí-lo em sua essência.

E então o humano voltou-se à sua característica fundamental: a linguagem. O mundo é entendido e transformado quando representado, quando feito linguagem. O mundo dos artefatos fez-se fato. E para este conjunto de artefatos havia linguagens diferentes. E para cada linguagem, um suporte físico onde registrá-la. A pintura dependia da tela. As palavras, do papel. Para comunicar a pintura, era preciso transmitir a tela. E o humano viu no suporte uma coisa; e nela, um empecilho. O humano dependia do suporte para obter a essência do que desejava. E o humano, que conseguira entender e transformar a coisa, partia agora para entender e dominar a essência das manifestações humanas: a linguagem. E tratou de dominar as linguagens. E criar uma linguagem que a todas abarcasse. Ou as traduzisse em uma única, manipulável. E codificou o mundo, e unificou os códigos. E, este código único, trata de torná-lo constituinte dos artefatos tecnológicos. E os artefatos tecnológicos trocam informações entre si. Compartilham uma linguagem comum. E conversam entre si, sem que o humano participe de cada etapa desse diálogo.

Era 1991, e Mark Weiser afirmava que “as mais profundas tecnologias são aquelas que desaparecem. Elas se misturam no tecido da vida cotidiana até o momento em que não se pode mais distingui-las”. E não podemos distinguir o humano da tecnologia. Somos os artefatos que construímos. Há tecnologias que desaparecem por serem microscópicas, que não se deixam perceber; há tecnologias que desaparecem por serem imensas, que abarcam e transformam nossa percepção. Apague a luz.

Era ainda a década de 1990 e o mundo técnico-científico-informacional de Milton Santos se fez. É este que está aí, aqui. É um mundo de artefatos tecnológicos que dialogam entre si. É um mundo das tecnologias infiltradas, das tecnologias que, quanto mais poderosas, mais invisíveis.

E a cidade é o espaço de convivência entre o humano e os artefatos. A cidade é um artefato tecnológico. E amalgamadas no espaço urbano, as tecnologias tornam-no meio de comunicação e troca constante de informações entre o humano e os artefatos, entre próprios artefatos, independentes do humano. A cidade é o meta-artefato tecnológico. A cidade é o resultado e a possibilidade de trocas materiais e imateriais mediadas por artefatos tecnológicos.

Mas além do mundo de coisas, além das contingências do tempo e do espaço, havia um outro espaço, imaterial, um espaço ampliado pela religião, magia, metafísica, arte. Havia um mundo que dependia da vontade, da crença. Era um mundo além. Era um mundo outro. E esse mundo se fez artefato. E os artefatos tecnológicos criam os espaços ampliados, e ampliam a percepção humana dos espaços. Um espaço ampliado amalgamado no espaço cotidiano. Amálgamas, amálgamas, amálgamas. Por que não há outro. Não há um além. A cidade como um meta-espaço. Mais que um espaço ampliado, um espaço intensificado.

E é um espaço ampliado, um espaço intensificado que não depende da vontade e das crenças de indivíduos ou grupos. Não há ritos, Não há transes. Um espaço intensificado, ampliado pela invisibilidade onipresente da tecnologia. Tecnologias infiltradas, tecnologias que ampliam as capacidades comunicativas e interativas do humano, independentemente da consciência do humano em cada ação.

E era uma vez um mundo de coisas. Um mundo de objetos e ferramentas e sabedoria. Um mundo de artefatos tecnológicos e ciência. Um mundo de tecnologias infiltradas. Um mundo de computação ubíqua. Um mundo humano.

Fábio Duarte é professor e pesquisador em gestão e mobilidade urbana, cidade e tecnologia na PUC-PR. http://www.pucpr.br/ppgtu

 

Rodrigo Firmino é professor e pesquisador em gestão urbana, arquitetura e urbanismo, vigilância urbana e controle do espaço na PUC-PR.http://www.pucpr.br/ppgtu . twitter/rodrigo_firmino