Era 1988, e Mark Weiser, então chefe do setor de tecnologia
da Xerox, previa que uma miríade de sistemas tecnológicos perpassaria nossos
ambientes físicos e biológicos. Um mundo repleto de máquinas, computadores e
sistemas que se comunicariam entre si e agiriam e tomariam decisões pelos seres
humanos. E a história da relação entre o humano e o computador poderia ser
dividida em três fases: muitas pessoas operando uma máquina (mainframe); uma
pessoa, uma máquina (computação pessoal); muitas máquinas por pessoa
(computação ubíqua).
Mas era, muito antes, um mundo de coisas. E as coisas
existiam por si mesmas. E o humano vivia entre as coisas. E o humano, para
sobreviver entre as coisas, e para dominar o mundo de coisas, buscou
entendê-las. Frágil, não podia apossar-se delas, tomá-las para si. Mas foi
capaz de entendê-las, em suas características físicas, biológicas, químicas. E
o humano apropriou-se do mundo de coisas pelo seu entendimento. O humano sabia
a coisa antes de possuí-la. E dominou-a. A coisa não valia pelo que era, mas
pelas suas possibilidades. E o humano fez da coisa, ciência; e fez da coisa,
objeto; e fez da coisa, ferramenta. Frutos ganharam valor pela semente – não
pela saciedade da fome imediata, mas por evitar fomes futuras. Pedras
tornaram-se muro – e a possibilidade de proteção. Ossos tornaram-se armas de
caça – e a possibilidade de ingestão constante de proteína. E o mundo de coisas
deu lugar ao mundo da ciência, dos objetos e das ferramentas. Ciência, objetos,
ferramentas são o mundo de coisas entendido e transformado.
E o humano criou um mundo de objetos e ferramentas. Os
objetos são o fim de um processo de entendimento e transformação de coisas. Em
uma cadeira, senta-se. Em uma cabana, abriga-se. As ferramentas são o meio para
que um fim, que está além e não contido nelas, seja alçado. No fim da lança,
está o animal abatido; na lâmina do machado, está a cabana. O objeto traz em si
o conhecimento cristalizado. A ferramenta ainda depende de um conhecimento em ação. O objeto cristaliza
as características físicas da coisa da qual provém: a consistência e a
envergadura da madeira, a dureza e o corte da pedra. Mas é da empunhadura, da
velocidade da corrida, da inclinação da lança, que depende o abate.
Para a ferramenta se cumprir – e deixar de ser um objeto – é
preciso energia para colocá-la em ação, e conhecimento de como esta ação deve
ser executada para que atinja o fim desejado: a técnica. O arpão, nas mãos de
um pedreiro, terá energia, não técnica. A ferramenta sem técnica é apenas um
objeto.
E o humano vivia, então, em um mundo de conhecimento,
objetos e ferramentas. Um mundo que ele criou, pois entendeu e transformou as
coisas. O humano entendeu as coisas ao ponto que não só delas fez objetos e
ferramentas, mas as transformou em sua essência. A vacina é um vírus, uma
coisa, entendida de tal modo que faz com que ele se volte contra si mesmo. A
vacina é a coisa dominada, alterando a si mesma e ao próprio humano.
E o humano entendia também a energia e a técnica das quais
as ferramentas dependem. E dominou-as. E amalgamou-as nas ferramentas. E
transformou-as em artefatos tecnológicos. A energia produzida junto à
ferramenta, para que ela agisse sempre do mesmo modo, com a mesma intensidade.
A máquina a vapor move-se a si mesma. Um motor a combustão move-se a si mesmo.
E o humano recriou o seu mundo – seu, com a propriedade do possessivo – de
artefatos tecnológicos. E reconstruiu o seu espaço. Fez do espaço-mundo o seu
território. E povoou-o de artefatos tecnológicos. Que sabem o que devem fazer –
foram imbuídos de um saber-fazer. Mas dependem de uma fonte de energia. Então,
o humano entendeu a energia, dominou a mais propícia a ser distribuída
rapidamente, e distribuiu-a por todo o espaço. E fez um mundo de energia
elétrica distribuída e de artefatos tecnológicos. E recriou o seu espaço. E
amalgamou espaço e tecnologia. E amalgamou-se a si mesmo à tecnologia. E o
humano fez-se sinônimo de tecnológico. E o humano arrisca-se a pensar que o
artefato tecnológico é coisa, é um dado inerente ao seu espaço. Água encanada,
energia elétrica. Tecnologias que foram infiltradas no espaço que passam a
constituí-lo em sua essência.
E então o humano voltou-se à sua característica fundamental:
a linguagem. O mundo é entendido e transformado quando representado, quando
feito linguagem. O mundo dos artefatos fez-se fato. E para este conjunto de
artefatos havia linguagens diferentes. E para cada linguagem, um suporte físico
onde registrá-la. A pintura dependia da tela. As palavras, do papel. Para
comunicar a pintura, era preciso transmitir a tela. E o humano viu no suporte
uma coisa; e nela, um empecilho. O humano dependia do suporte para obter a
essência do que desejava. E o humano, que conseguira entender e transformar a
coisa, partia agora para entender e dominar a essência das manifestações
humanas: a linguagem. E tratou de dominar as linguagens. E criar uma linguagem
que a todas abarcasse. Ou as traduzisse em uma única, manipulável. E codificou
o mundo, e unificou os códigos. E, este código único, trata de torná-lo
constituinte dos artefatos tecnológicos. E os artefatos tecnológicos trocam
informações entre si. Compartilham uma linguagem comum. E conversam entre si,
sem que o humano participe de cada etapa desse diálogo.
Era 1991, e Mark Weiser afirmava que “as mais profundas
tecnologias são aquelas que desaparecem. Elas se misturam no tecido da vida
cotidiana até o momento em que não se pode mais distingui-las”. E não podemos
distinguir o humano da tecnologia. Somos os artefatos que construímos. Há
tecnologias que desaparecem por serem microscópicas, que não se deixam
perceber; há tecnologias que desaparecem por serem imensas, que abarcam e
transformam nossa percepção. Apague a luz.
Era ainda a década de 1990 e o mundo
técnico-científico-informacional de Milton Santos se fez. É este que está aí,
aqui. É um mundo de artefatos tecnológicos que dialogam entre si. É um mundo
das tecnologias infiltradas, das tecnologias que, quanto mais poderosas, mais
invisíveis.
E a cidade é o espaço de convivência entre o humano e os
artefatos. A cidade é um artefato tecnológico. E amalgamadas no espaço urbano,
as tecnologias tornam-no meio de comunicação e troca constante de informações
entre o humano e os artefatos, entre próprios artefatos, independentes do
humano. A cidade é o meta-artefato tecnológico. A cidade é o resultado e a
possibilidade de trocas materiais e imateriais mediadas por artefatos
tecnológicos.
Mas além do mundo de coisas, além das contingências do tempo
e do espaço, havia um outro espaço, imaterial, um espaço ampliado pela
religião, magia, metafísica, arte. Havia um mundo que dependia da vontade, da
crença. Era um mundo além. Era um mundo outro. E esse mundo se fez artefato. E
os artefatos tecnológicos criam os espaços ampliados, e ampliam a percepção
humana dos espaços. Um espaço ampliado amalgamado no espaço cotidiano.
Amálgamas, amálgamas, amálgamas. Por que não há outro. Não há um além. A cidade
como um meta-espaço. Mais que um espaço ampliado, um espaço intensificado.
E é um espaço ampliado, um espaço intensificado que não
depende da vontade e das crenças de indivíduos ou grupos. Não há ritos, Não há
transes. Um espaço intensificado, ampliado pela invisibilidade onipresente da
tecnologia. Tecnologias infiltradas, tecnologias que ampliam as capacidades
comunicativas e interativas do humano, independentemente da consciência do
humano em cada ação.
E era uma vez um mundo de coisas. Um mundo de objetos e
ferramentas e sabedoria. Um mundo de artefatos tecnológicos e ciência. Um mundo
de tecnologias infiltradas. Um mundo de computação ubíqua. Um mundo humano.
Fábio Duarte é
professor e pesquisador em gestão e mobilidade urbana, cidade e tecnologia na
PUC-PR. http://www.pucpr.br/ppgtu
Rodrigo Firmino é
professor e pesquisador em gestão urbana, arquitetura e urbanismo, vigilância
urbana e controle do espaço na PUC-PR.http://www.pucpr.br/ppgtu . twitter/rodrigo_firmino
|