As ideias seguem o fio tênue da linguagem. Quando escrevemos somos levados por elas a um caminho não atravessado por nós até então. As ideias precedem à escrita, se materializando nela, e assim tomando vida. O papel é um dos seus habitares, sendo elas filtradas ao macularem-no. O escrever é um processo muito semelhante à destilação. Somos fervidos pela pluralidade de ideias que nos assolam e elas são resfriadas e purificadas ao encontrarem a materialidade nas palavras escritas.
É curioso pensarmos como escrever é uma criação que passa também por um procedimento de ordenação e purificação. No entanto, esse ato criativo que filtra o pensamento é uma das características imanentes ao próprio escrever. Ele está no seio da própria escrita, da própria experiência que traz a luz à obra. A escrita constitui limites. Ao escrever ordenamos as ideias, tracejamos os caminhos por vir da própria questão que trouxe à baila o escrever.
O sujeito que é tomado pela tarefa literária de escrever não tem nada para sustentar sua experiência. Ele só é escritor quando escreve. Seu talento se materializa na obra. Nesse ato, talento, inspiração e obra são concomitantes, coexistentes. A questão que toma o escritor atravessa a linguagem e a ele mesmo. Sua tarefa, sem estar alicerçada em tradições ou qualquer tipo de palavras exteriores à escrita, é uma atividade solitária, abandonada a si mesma, fazendo da escrita literária uma experiência radical de finitude que diz não a toda ideia de tradição. Isso caracteriza a transgressividade literária. Aquilo que faz da literatura um questionamento da linguagem, das sociedades e de nós mesmos. Essa dimensão primordial da escrita, dimensão que aponta para a experiência de vida e morte, de questionamento e filtragem do pensamento, seria a dimensão ontológica da escrita literária. Ela seria sinônima da experiência total do escrever. E é ela justamente que inaugura esse espaço de imanência que é o espaço literário.
Assim, podemos pensar que a escrita literária é instaurada por uma relação não dialética, ou melhor, uma relação de inseparabilidade entre a transgressão e o limite no seio da linguagem, proporcionando dois movimentos concomitantes e constitutivos que marcam a criação e a ordenação das palavras. Criação e ordem, transgressão e limite são elementos essenciais para a compreensão do espaço literário.
Ela seria não dialética, pois em sua dimensão ontológica, criação e ordenação não são elementos separáveis. Eles fazem parte do mesmo movimento imanente que atravessa a linguagem. Esses elementos são feitos da própria linguagem. Essa substância em que nós, homens, estamos mergulhados. É como se estivéssemos submersos na linguagem, e ao experienciarmos a escrita, fôssemos tomados por um movimento que a reduplica.
Não é à toa que o lingüista e ensaísta francês Roland Barthes, em sua aula inaugural da cadeira de semiologia literária do Colégio da França, pronunciada dia 7 de janeiro de 1977, afirma que o único modo de lidar com esses automatismos, gerados por estarmos imersos na linguagem, seria o de trapacear com ela, fazendo literatura.
No entanto, existem mecanismos de captura, exteriores à experiência, que se apoderam da escrita. Eles visam separar o escrever de seus elementos essenciais. Eles constituem dimensões de aprisionamento do fluxo transgressivo. São elementos exteriores, transcendentes e reativos ao escrever, que enlaçam o movimento criativo e afirmador, contido na literatura. Esses mecanismos exteriores ao escrever separam, por exemplo, a escrita da vida do escritor, usando a segunda para explicar a primeira. São justamente esses mecanismos que ajudaram a construir historicamente o papel do autor, como uma figura importante na trama dos discursos que circundam o objeto literário.
Podemos assinalar que os componentes afirmativos da escrita estão do lado da experiência total do escrever e do escritor, e os componentes reativos se sustentam nessas dimensões de captura e aprisionamento da escrita sob a égide do nome do autor e seus mecanismos afins.
É como se as ideias se ordenassem com a escrita e, posteriormente, tal discurso sofresse um outro movimento de restrição que o classifica e o caracteriza sob o domínio de mecanismos territorializantes, sendo o nome do autor um de seus ilustres representantes.
Ideias e pensamentos povoam o papel em que se inscrevem. Todavia há, concomitantemente, uma certa ordenação intrínseca a esse movimento. Criação e limite estão no cerne desse problema. Nesse ponto, a escrita se relaciona com o ultrapassamento de uma barreira, mas ela não a bane do mundo. Ela produz outra barreira, um novo limite a ser ultrapassado, no momento em que surge. Esse seria um dos paradoxos da linguagem, pois segundo o filósofo Gilles Deleuze, em sua obra Lógica do sentido (2000), é a linguagem mesma que constrói e ultrapassa seus próprios limites. Com isso poderíamos dizer que, na linguagem, os limites são impostos e transgredidos ao mesmo tempo.
Escrever então sofreria desse paradoxo em sua manifestação imanente à experiência. O ato de escrever constrói mundos. Contudo, uma coisa é criar mundos, outra é dominá-los. Os mecanismos territorializantes, expressos aqui, são característicos de um aprisionamento do fluxo, de uma espécie de tentativa de possuir, de dominar, de nomear aquilo que é indefinível: o ato de criar. Esse movimento de captura tende a dialetizar a experiência e dissolver o paradoxo da escrita, tentando enquadrar a literatura na dinastia da escrita representativa, que caracteriza um modo de escrever muito diferente da escrita literária, já que escreve sobre algo assim, o representando.
Podemos observar, consequentemente, que esse movimento constitutivo do escrever é capturado, aprisionado, coibido por uma espécie de coagulação discursiva. Isso ocorre porque os mecanismos de captura sublinham e reforçam a ordem, imposta pelo limite, contida na escrita, tentando, assim separá-la da transgressão para assim amenizar seu impacto. Todavia, esse movimento de coibir é, geneticamente secundário, em relação ao ato de escrever. Ele só reforça o limite, pois é a única coisa que resta da atividade literária. Dito em outras palavras, esses mecanismos são transcendentes ao movimento da escrita, se aliando a componentes imanentes do próprio escrever, no caso, o limite, para impedirem a proliferação discursiva. Esse movimento faz com que pensemos em elementos externos à experiência para assim explicá-la.
Esse aprisionamento só surge quando não há escrita alguma. Quando a pena descansa. Por esse motivo, ele é um elemento que está de fora em relação à escrita, ou melhor, é ele que separa o exterior do interior, o imanente do transcendente, dissecando desse modo a escrita de forma cirúrgica.
Dito isto, podemos afirmar que a restrição produz territórios de discurso. Ela dá uma importância elevada ao limite, pois o usa para construir elementos explicativos e definidores da criação, empobrecendo-a, assim, em nome da segurança de suas ilhotas de definição. Nesse movimento, o limite e a transgressão são forçosamente separados para darem à luz aos índices territorializantes e explicativos da experiência criativa relativa ao escrever.
Contudo, algo curioso se percebe no fato de que a vontade de restrição e os mecanismos que a sustentam surgem, simultaneamente, em um mesmo movimento que se apodera da escrita como parasitas na procura de uma vítima. Podemos observar aqui, que não só a vontade de captura constrói territórios discursivos, como fabrica também mecanismos que se auto alimentam da vontade que a criou. É como se a captura fosse transcendente e dialética em relação à escrita, pois tenta separar os dois componentes essenciais do escrever, a saber: o fluxo transgressivo e o limite, dando elevada importância ao segundo. No entanto, em se tratando da associação entre a captura e seus mecanismos, ela apresenta uma relação, aparentemente, não dialética, porque os mecanismos e a vontade de captura se nutrem de uma mesma fonte, sendo difícil dizer o que é mecanismo e o que é vontade. Isso ocorre devido ao fato de que a captura e os mecanismos nascem, ao mesmo tempo, como reação ao fluxo contínuo do escrever.
Não pode haver fluxo sem ordem, esta é a fórmula da captura. Da vontade de ordem é que germina a captura e seus mecanismos. O interessante nisso tudo é que temos a impressão de que os mecanismos já existiam antes do próprio escrever. No entanto, a captura surge como uma reação ao fluxo e à proliferação discursiva desordenada. Ela é apenas a resposta à possibilidade de desordem. Não sendo, de modo algum, anterior ao escrever, mesmo assim temos a ilusão de que ela sempre existiu. O que nos confunde é o fato de que os mecanismos usados na captura, muitas vezes são reciclagens de instrumentos de poder usados em outras searas. Para coibir o fluxo, há uma espécie de transformação desses instrumentos.
A captura quer ordem, nada mais. Por esse motivo, podemos dizer que os mecanismos e a própria captura se confundem porque todos estão, intrinsecamente, ligados a um mesmo objetivo: o de coibir, impedir a proliferação discursiva.
No caso da noção de autoria e sua relação com a literatura, percebemos, pelo menos, quatro instrumentos de aprisionamento do fluxo discursivo que fundamentam e sustentam nossa visão acerca da autoria. Chamamos de dimensões o conjunto dessas características. Dimensão legal, jurídica, estética e referencial, todas elas fazem parte desse mecanismo da ordenação dos livros e dos discursos.
Além disso, chamamos de dimensão ontológica, a fundamental, imanente à experiência e, por conseguinte, anterior geneticamente, ao aprisionamento. Ela está, essencialmente, associada à criação e à morte, justificando, assim seu caráter basal, subterrâneo em relação às outras dimensões. Essa dimensão estaria totalmente ligada à experiência total do escrever. É ela que abre o campo imanente, desse modo de experienciar o espaço literário, sendo as outras dimensões, as que capturam o fluxo transgressivo, produzindo uma separação no seio da experiência. Essas dimensões de captura produzem uma fissura que a dialetiza, decantando, desta maneira, os seus elementos.
Por esse motivo, as quatro dimensões de aprisionamento são caracterizadas por serem estritamente secundárias, pois, primeiro vem a criação; depois, a ordenação. Podemos afirmar que há dois momentos na escrita literária: um ontológico, caracterizado por ser criativo, transgressivo e afirmativo e, outro, o de captura sendo ordenador, restritor e negativo.
Os mecanismos de ordenação aqui evocados passaram a empenhar um papel particular em relação à noção de escrita, nos Tempos Modernos. Eles – com exceção da noção de originalidade – já existiam, anteriormente, mas tiveram que se adaptar à nova forma de escrita surgida nesse período para assim capturá-la. É importante frisarmos que suas formas de se apropriarem da criação têm pesos variados, diferenciando-se por vários fatores.
A dimensão legal está ligada à responsabilização e à apropriação penal dos discursos. Ela foi a primeira dimensão de aprisionamento do fluxo transgressivo do discurso, encontrada na modernidade. No entanto, a dimensão jurídica surge, posteriormente, a essa captura para fundamentar-se sobre a noção de propriedade intelectual. Já as dimensões estética e referencial estão ligadas aos movimentos que apontam para o nome do autor como mecanismo hierárquico relevante no seio do mundo dos livros. Todos esses mecanismos de coerção foram modificados pela novidade representada pela nova forma de escrita: a transgressiva. Todos eles passaram a constituir um conjunto que marca a existência do nome do autor, fazendo deste, o fruto de um aprisionamento.
É curioso notarmos que todo movimento transgressivo no seio da sociedade é acompanhado por movimentos fascistas e de captura que intentam metabolizar a transgressão para torná-la inativa. E, a transgressão surge como resistência aos limites sociais e linguísticos impostos.
Podemos ressaltar, com isso, que a escrita literária é atravessada, de um lado, por dimensões ligadas à criação, e de outro, à captura. Com a escrita, percebemos que o talento, a inspiração e o trabalho do escritor ressoam no espaço literário. Não é à toa que o teórico literário Maurice Blanchot, em L´entretien infini (1969), apresenta o espaço literário como um espaço de ressonância.
Esse espaço produz a obra e o escritor simultaneamente. À semelhança da produção de sons musicais, as existências da obra e do escritor ressoam na batalha do escrever. Aqui poderíamos nos valer de uma imagem de Friedrich Nietzsche, utilizada em Ecce Homo (1888), quando o filósofo alemão afirma que o acontecimento é o barulho produzido no choque de duas espadas, de duas forças. Escritor, talento e obra seriam assim, esse barulho que tilinta quando a escrita atravessa o espaço literário. Esse ressoar é a própria experiência total do escrever, ou ainda, sua dimensão ontológica. As dimensões de captura são como tampões que servem para fazer calar os sons produzidos por esse espaço de ressonância.
E quando seguimos o fio da linguagem do outro lado do espelho, do outro lado da obra? Ou melhor, como se manifestaria a experiência leitora no seio do espaço literário? Ela também estaria entre o automatismo e a criação, esse pêndulo que seria o próprio da linguagem, e mais ainda, o próprio da condição humana?
Quando lemos, somos convidados pelas palavras a ingressarmos numa viagem, numa aventura que pode nos transformar. As palavras que se apresentam aos nossos olhos não são quaisquer palavras. Elas expressam algo e convidam o leitor a acolher e descobrir os degraus de entendimento que elas indicam. O leitor é guiado, guiado por pistas em forma de palavras. A leitura tem, como componentes imanentes a sua experiência, o acolhimento das palavras como bússolas e a descoberta do sentido como tarefa de rachar as palavras para ver o que elas realmente querem fazer ver.
É interessante observar que as palavras impressas na obra têm uma natureza ambígua, pois servem de limites ou rastros para o entendimento e, ao mesmo tempo, por suas diferentes possibilidades de exegese, fazem com que o leitor se encontre com a tarefa de criar sentido sobre elas. Poderíamos acrescentar que leitor e obra são produzidos concomitantemente pelo meio da experiência total do ler. O leitor, como o escritor, se encontra norteado pelo tracejar das palavras e abandonado a elas em uma atividade de criação. Limite e transgressão também atravessariam a prática de ler literatura.
Como a escrita, a leitura é atravessada por mecanismos de captura. Movimentos de sistematização e de unificação de saberes, em torno do objeto literário, implementados por aspectos particulares da crítica, do mercado e da cultura, tendem a naturalizar a literatura com o intuito de fazer calar o espaço de ressonância do lado da leitura. A autoria, a ideia de obra, de obra-prima, a crítica, a biografia são instrumentos utilizados para colocar a literatura no conjunto unificado dos produtos da cultura. Esse processo é fruto do enquadramento cultural das obras artísticas. Unificação e enquadramento fazem parte do trabalho da cultura sobre o espaço literário.
Podemos afirmar assim, que, à semelhança da escrita literária, a leitura é tomada por componentes afirmativos que estão associados à experiência total do ler, e por componentes negativos que estão ligados à vontade de verdade e de domínio sobre a criação por parte da cultura.
Leonardo Pinto de Almeida é doutor em psicologia pela PUC-RJ com estágio de doutorado sanduíche no Centre de Recherche sur la Lecture Littéraire da Universidade de Reims Champagne-Ardenne (França). Realizou o pós-doutorado em psicologia, com a pesquisa "Leitura literária: para uma análise das relações entre a experiência literária, a produção de subjetividade e a ontologia política", pela PUC-RJ. É autor do livro "Escrita e Leitura - A Produção de Subjetividade na Experiência Literária" (Juruá, 2009) e do texto "Para uma genealogia da noção de autoria em literatura", contido no livro Foucault e a autoria (Insular, 2006). Atualmente, faz parte do grupo de pesquisadores da Cátedra Unesco de Leitura PUC-RJ. Email: leonardo.p.almeida@gmail.com
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