O fenômeno do consumo na cultura contemporânea define um campo de investigação fundamental. A cultura é o centro da reflexão antropológica e o consumo é a experiência capaz de nomear o mundo no qual vivemos – a sociedade de consumo. Não é por outra razão que a articulação entre ambas indica uma área de reflexão acadêmica na qual caberia uma imensidão de idéias, teorias e pesquisas e que pode se revelar uma das mais promissoras para o projeto de compreender melhor a vida que levamos.
Na vida social cotidiana – reuniões com amigos, festas familiares, encontros, programas, jantares, saídas na nite, entre tantas outras – podemos constatar que certos tópicos de conversa são usuais e recorrentes. Entre os temas mais comuns estão as aventuras (por vezes desventuras também) vividas no trabalho, nos estágios, nos estudos, na chamada vida produtiva de cada um. Sempre que alguém tem algo para dizer sobre trabalho, os outros parecem prontos para ouvir, comentar e participar do assunto seja desenvolvendo o conteúdo, complementando a idéia, seja discordando. Projetos profissionais, carreiras, estudos, estágios, propostas, problemas, práticas, planos, ações, salários, resultados, conquistas, sucessos e dificuldades do mundo dos negócios são bons tópicos para criar ou manter uma conversa. A vida relacionada à esfera da produção é sempre assunto - legítimo, privilegiado, recorrente, interessante - nas múltiplas situações sociais que freqüentamos.
Mas, se falamos muito dos assuntos relacionados ao que se pode chamar de vida produtiva, falamos muito também (quem sabe até mais) de assuntos relacionados à outra ponta da questão – o consumo. De fato, falamos muito exatamente aquilo que gastamos ou queremos gastar por termos produzido. Essa é também uma conversa que rende muito na vida social. Às vezes as pessoas passam das questões da produção às do consumo, passam do ganho ao gasto, no mesmo diálogo. Entre os sofisticados, o chamado consumo cultural – livro, teatro, filme, atividade intelectual e sensível fruída, de preferência, em viagem muito especial ao exterior. E isso sem falar nos vinhos, recurso recente como parte do repertório dos signos de distinção e status. Entre as crianças, os brinquedos – os muitos bonecos dos complexos mundos habitados por Pokemons, Barbies, Digimons, Pollys, Dragonballs, Power Rangers ou cards de Yugiohs – alternam com as novas fitas de Wii, Playstation 3, Xbox 360, Nintendo DS ou Game Cube. Tudo isto e mais a Disney – essa inevitável peregrinação ao consumo sem a qual nossas crianças das camadas médias e altas não conseguem cumprir os sagrados requisitos da sociabilidade. Entre os adolescentes, pequenas viagens de fim de semana, roupas da moda, computadores, as festas pagas e boates, e até mesmo, para desespero dos pais, o carro. Os ricos falam das grifes caras, viagens sofisticadas, casas fora, carros importados, jantares. Os que têm menos dinheiro falam da casa própria, dos eletrodomésticos, celulares ou roupas novas. Enfim, no cotidiano da sociedade em que vivemos aquilo que se tem ou se quer, as razões das necessidades e desejos de produtos e serviços são temas que povoam as conversas e a imaginação.
É interessante observar que esstes tópicos, tanto ligados à produção, quanto ligados ao consumo perpassam – mudando devidamente os conteúdos – os diferentes grupos e classes socioeconômicas. Esses tópicos são como textos de um repertório essencial na cultura contemporânea, que dá livre acesso ao discurso sobre compras, trabalhos, gastos e ganhos, tornando amplamente disponível o imaginário destas experiências centrais da vida social do nosso tempo. Tudo isso indica que produção e consumo são (entre outras coisas, evidentemente) como códigos através dos quais um imenso conjunto de representações e práticas ganha sentido em nossas vidas.
Mas, ainda que produção e consumo sejam legítimos e largamente empregados como assunto, é interessante ver que eles geram diferenças significativas se aplicados ao comportamento das pessoas. Basta dizer que alguém é bom trabalhador ou que veste a camisa, que é comprometido com a empresa para que diferentes visões da produção e do consumo comecem a aparecer, pois nesse caso estamos atribuindo à pessoa uma identidade positiva. O inverso acontece quando classificamos alguém como consumista ou gastador, pois isto significa atribuir uma identidade negativa. Esta idéia nos fala de forma simples, porém eloqüente, de certa superioridade moral que a produção e os seus temas – trabalhos, empresas, profissões – possui quando comparada ao consumo e seus temas - marcas, compras, gastos. É como se a produção possuísse algo de nobre e valoroso, representando o mundo sério e verdadeiro e o consumo, no pólo oposto, tivesse algo de superficial e fútil, representando o mundo mais falso e inconseqüente. A visão do consumo como superficialidade, vício compulsivo, problema, coisa de fúteis, emergentes, dondocas – essa inferioridade moral em face da produção – tem grande apelo ideológico. É comum que essa idéia apareça em artigos de jornal, reportagens de revistas ou debates televisivos e nesses fóruns, geralmente, o consumo é julgado e condenado como responsável por boa parte das mazelas do mundo. Ele é um dos réus favoritos, sempre um culpado disponível, e sua condenação uma boa forma de alicerçar a superioridade moral da produção.
Em certo sentido, podemos afirmar que essa superioridade moral da produção sobre o consumo se traduz também na pouca atenção que ele recebe no âmbito de estudos das ciências humanas. Isso é revelador: o fenômeno que identifica nosso mundo é, paradoxalmente, ainda pouco estudado e conhecido. Para falar da idéia de produção e suas conseqüências sociais existe uma pesada tradição que atravessa várias disciplinas, inclusive uma delas, a economia, elaborada especificamente para pensar a produção. Isso, evidentemente, contrasta com a idéia de consumo em torno da qual ainda muito pouco se produz de forma sistemática. Entretanto, a pesquisa do consumo é fundamental, pois coloca em jogo um diversificado conjunto de atividades sociais, envolve todo um universo de pessoas, um imenso investimento de tempo e recursos, um amplo repertório de significados culturais e, por causa dele, estabelece-se uma formidável movimentação social que não se limita a uma sociedade específica, mas se espalha quase a nível planetário.
Na cultura contemporânea, cada singularidade cultural deve se encaixar no curso daquilo que chamamos globalização que elabora um imaginário amplamente difundido em um processo constante de mundialização da cultura. É, sobretudo, através do sistema de consumo e da narrativa midiática que se dá o compartilhamento de valores que caracteriza o processo de mundialização ou planetarização da cultura. Pesquisar o consumo é, portanto, um projeto decisivo para entender experiências e representações coletivas, tanto locais quanto globais, na sociedade contemporânea. A narrativa midiática é um dos principais suportes desse processo de planetarização da cultura e, através dela, é construída uma espécie de senso comum, expandindo formas sociais e valores do Ocidente nos mais diversos lugares da terra, naturalizando o imaginário capitalista em qualquer cultura, em todas as culturas. O consumo e a mídia falam incessantemente no sentido do estabelecimento do mercado consumidor como figura determinante, como passagem crucial na direção do capitalismo, atingindo, inapelavelmente, o tecido social e a cultura. A narrativa midiática - publicidade em especial - produz sentido para os bens de consumo e, nesse processo, prescreve valores e modela práticas sociais. O consumo, portanto, através de um complexo sistema de representações, define capitais sociais, expressa identidades, diferenças, subjetividades, projetos, comportamentos, relações e oferece um mapa classificatório que regula várias esferas da experiência social na cultura contemporânea.
O fato de que o consumo é parte importante de nossa vida é uma obviedade. Todos sabem disso. Portanto, não pesquisá-lo sistematicamente é negligenciar a oportunidade de, através dele, conhecer uma das formas mais importantes de expressão da nossa cultura. O estudo do consumo se impõe como uma chave fundamental para a compreensão da sociedade contemporânea. Coisas como Internet, moda, design, mídia, objetos, publicidade são marcas indeléveis no espírito do tempo e, cada uma à sua maneira, dá ampla visibilidade ao consumo na nossa vida cotidiana.
Por isso, é importante indicar alguns pontos que podem ser bons para pensar o consumo como um fenômeno central na cultura contemporânea. O primeiro é que o consumo é um sistema de significação e a principal necessidade que supre é uma necessidade simbólica. O segundo é que o consumo é como um código, através Do qual são traduzidas muitas das nossas relações sociais. O terceiro é que este código, ao traduzir relações sociais, permite a classificação de coisas e pessoas, produtos e serviços, indivíduos e grupos. O consumo é um sistema de classificação do mundo que nos cerca a partir de si mesmo e, como é próprio dos códigos, pode ser sempre inclusivo. E inclusivo em dois sentidos: de um lado, inclusivo de produtos e serviços que a ele se agregam e são por ele articulados aos demais, de outro, inclusivo de identidades e relações sociais que são definidas, em larga medida na nossa vida, a partir dele. Finalmente, o quarto ponto é que esse código possui uma instância que o viabiliza, ao comunicá-lo à sociedade. Essa é uma das funções essenciais da narrativa midiática e da cultura de massa no mundo moderno, industrial e capitalista. O sistema da mídia é o grande operador da dimensão pública desse código, fazendo com que nos socializemos para o consumo de forma semelhante. É a narrativa midiática que inscreve - a partir das micro-histórias que conta, dos pequenos mundos que elabora dentro de suas produções (como nos anúncios ou novelas, por exemplo) - o consumo em nossa vida social. Ao fazer essa reprodução dos modos de vida, das sociabilidades, das experiências sensíveis e do cotidiano, ela também define publicamente produtos e serviços como necessidades ; explica cada um deles como modos de uso ; confecciona o desejo como classificação social. A mídia, o marketing, a publicidade, o design interpretam a produção, socializam para o consumo e nos oferecem um sistema classificatório que permite ligar um produto a cada outro e todos juntos às nossas experiências de vida.
Este é precisamente o centro do edifício de representações da vida social que é reproduzido dentro da narrativa midiática: classificar a produção, criando e mantendo um processo permanente de socialização para o consumo. Assim, penso que uma especificidade da cultura moderno-contemporânea, sua singularidade histórica, reside em construir um sistema de integração simbólica da diferença entre produção e consumo, pela distribuição de significados a partir da esfera da produção, realizando o destino de produtos e serviços na direção de mercados e consumidores. É nesse jogo poderoso que envolve fantasias, desejos, magias, mitos e rituais, que acontece o consumo, lugar privilegiado para o exercício permanente de classificação que, ao estilo dos sistemas totêmicos, fornece valores e categorias com as quais concebemos semelhanças e diferenças entre objetos e seres humanos.
Assim, é essencial entender a natureza das relações entre cultura e consumo. Para tanto é preciso estudar os processos de criação do significado na esfera da produção; os sistemas de classificação que ligam, de um lado, produtos e serviços e, de outro, grupos sociais e identidades, e, finalmente; as formas pelas quais a mídia socializa para o consumo, através de um discurso que fala tanto na direção da cultura global quanto para as várias culturas locais. Toda esta complexidade indica que o consumo deve ser objeto de estudos sistemáticos para que possamos identificar o seu papel na cultura contemporânea, o espaço que ocupa no imaginário coletivo e seu lugar nos desejos humanos. É aí também que se inscreve o desafio de um estudo antropológico do consumo como campo de experimentação e de troca intelectual.
Everardo Rocha é professor-associado do Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio. Doutor e mestre em antropologia social pelo Museu Nacional da UFRJ. Mestre em Comunicação pela Escola de Comunicação da UFRJ. Autor, entre outros, dos livros de Magia e capitalismo, A sociedade do sonho, Representações do consumo, O que é etnocentrismo, Jogo de espelhos e O que é mito.
|