Definir índices que vão determinar políticas públicas, decisões, investimentos e negociações de contratos são algumas das funções dos indicadores socioeconômicos. A tarefa não é fácil, tanto que ao tratar das metodologias dos diferentes índices de inflação, o economista Fernando Costa lembra a impossibilidade de se descrever “tudo que há sob o sol”, citando a famosa expressão cunhada pelo economista sueco Knut Wicksell (1851-1926). A frase sumariza bem as dificuldades, divergências e polêmicas que estão presentes na elaboração desses números, que objetivam facilitar a compreensão da nossa realidade. Ou, pelo menos, nos aproximar um pouco dela.
No livro Síntese de indicadores sociais 2007, do IBGE, o capítulo sobre trabalho e rendimento afirma que os números ali apresentados são um reflexo do comportamento da economia e da geração e distribuição de renda no país. E que a compreensão de tais dados é fundamental no processo de formulação de políticas públicas. Os indicadores traçam um panorama do Estado brasileiro e funcionam como base para o planejamento de metas e investimentos governamentais.
Antigo pesquisador do IBGE, ex-vice-presidente da Caixa Econômica Federal e atualmente professor do Instituto de Economia da Unicamp, Fernando Costa tenta definir a função dos indicadores: “Estatística e indicadores são instrumentos para se aproximar da realidade. Mas, assim como a teoria, a estatística nunca consegue englobar a inalcançável verdade total. Os indicadores são uma descrição, mas não a realidade. A ciência econômica faz partições da realidade para estudá-la. Mas para voltar a ela, é preciso reincorporar as outras áreas extraídas, como a política, a sociologia, etc. E depois, é preciso incorporar a história, situar a economia no aqui e agora – colocar a história na ciência”, explica.
Definindo a inflação
Durante muitos anos, os dados acompanhados mais atentamente foram os índices de inflação. A hiperinflação foi um mal que assombrou os brasileiros por quase um quarto de século. Ela mudava da noite para o dia o poder de compra da população e impunha renegociações e atualizações de preço quase diárias. Salários, contratos de aluguel, acordos de venda eram constantemente reavaliados. O índice de inflação serve para indicar a evolução do custo de vida e do poder aquisitivo das rendas.
Para medir a evolução do custo de vida, é preciso, primordialmente definir uma cesta de consumo que seja representativa das compras da população. Para isso, são considerados itens alimentícios, de transporte, habitação, saúde, vestuário, enfim, tudo o que uma família consome. A partir disso, mede-se a evolução dos preços de cada um destes itens durante os meses do ano. Tem-se, assim, o índice de inflação. No Brasil, existem alguns indicadores de inflação. Os mais importantes são: o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), calculado pelo IBGE, o Índice Geral de Preços (IGP), da Fundação Getúlio Vargas e o Índice de Preços ao Consumidor (IPC) da Fipe.
Fernando Costa afirma que o maior desafio é justamente compor uma cesta de consumo que represente as compras de todo brasileiro. “Isso é de uma gigantesca complexidade. Se o preço da carne subir para uma família que consome o produto diariamente, o impacto será enorme. Entretanto, para um vegetariano, será zero. O índice consiste na formação de uma cesta de consumo padrão para todas as famílias. Tenta-se homogeneizar o consumo do brasileiro”, afirma.
O economista explica que para definir a cesta é preciso estudar o padrão de consumo de milhares de famílias, representantes das diversas faixas de renda e de todas as regiões do país. “O custo de uma pesquisa como esta é muito alto”, afirma Costa. É preciso também levar em conta as sazonalidades, como feriados de Carnaval, Natal, períodos em que a cesta de compras se altera. O segredo, em termos conceituais, é a média ponderada. É preciso ponderar a distribuição familiar por faixa de renda e considerar a proporção demográfica das diferentes faixas etárias e regiões”, sentencia.
Costa acredita que, dentre os índices de inflação no Brasil, o mais representativo nacionalmente seja o IPCA, aferido pelo IBGE. “O IBGE tem o maior orçamento para fazer esta pesquisa da cesta de consumo. O entrevistador deve acompanhar a mesma família durante um ano. Tanto que a última atualização ocorreu em 2003, quase vinte anos depois da anterior de 1984. O custo disto é muito alto. Não existe problema de falta de conhecimento técnico em nenhum instituto, mas sim o de custo. Quanto mais abrangente em termos amostrais, mais preciso será o índice”, avalia.
O IPCA abrange a faixa de renda mais ampla, de 1 a 40 salários mínimos. A evolução dos preços é acompanhada em Belém, Belo Horizonte, Curitiba, Fortaleza, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador, São Paulo, Goiânia e no Distrito Federal. Já o IPC, da Fipe, considera uma faixa de 1 a 20 salários mínimos e só mede o custo da cesta de consumo na cidade de São Paulo; e a FGV, por sua vez, faz a averiguação em São Paulo e no Rio de Janeiro, considerando uma renda de 1 a 30 salários mínimos.
Márcio Nakane, coordenador do Índice de Preços ao Consumidor da Fipe, explica que existem quatro pontos em que os índices de inflação podem ter diferenças. O primeiro, é na definição do público alvo, que pode variar geograficamente e em faixa de renda. Cada grupo terá uma cesta de consumo de bens e serviços distinta. Um segundo, é a ponderação de peso dos itens desta cesta. Ou seja, o quanto cada um contribui para o valor final. O local e a data em que é feita a coleta de dados também influem; os preços diferem, por exemplo, entre feiras e supermercados. Por fim, mesmo que todos os dados anteriores sejam iguais, podem existir diferenças na metodologia de cálculo. A forma como serão agregados todos os valores para se chegar a um índice final pode variar.
“Para fechar um índice mensal, nós coletamos cerca de 90 mil preços. Nossa cesta de consumo tem 7 grupos: alimentação, transporte, habitação, despesas pessoais, saúde, vestuário e educação. Dentro de cada um, nós temos subgrupos, por exemplo, em alimentação, nós temos alimentação fora, produtos in natura, industrializados e semi-elaborados. São 29 subgrupos no total. Para cada subgrupo, nós temos os itens, por exemplo, dentro dos alimentos industrializados, temos os derivados do leite, panificados etc. Finalmente, nos itens, como os panificados, existem os subitens, que são o pão francês, o de forma, a torrada etc. São 525 subitens no IPC da Fipe. Cada subitem tem uma ponderação, e dentro deles existe a ponderação por marcas e locais de compra”, esclarece Nakane, detalhando a complexidade do cálculo da inflação para cada mês.
O IPCA, do IBGE, é o índice usado pelo governo para o controle das metas de inflação, e negociações de aumentos salariais pelos sindicatos. Costa afirma que o IPC, da Fipe, é interessante para negociações na cidade de São Paulo e definição dos preços de veículos para seguradoras; e o IGP, da FGV, usado para o reajuste dos aluguéis e contas de luz, teria, segundo ele, um erro técnico. “Ao meu ver, ele possui um erro conceitual. Ele arbitra uma ponderação do índice de preço ao atacado, e determina, por puro arbítrio, que isso pesa 60%. O índice de preço ao consumidor, pesa 30% e a construção civil 10%. Acredito que ele perdure por estar vinculado a contratos de aluguel e companhias elétricas”, diz o economista.
Índices de pobreza
A determinação de uma cesta de consumo também é um ponto essencial para a elaboração de dados estatísticos sobre a pobreza. Seguindo o modelo proposto pela FAO (Food and Agriculture Organization), ligada às Nações Unidas, o ponto de partida, em termos nutricionais, é a definição dos nutrientes mínimos requeridos para a sobrevivência de uma população. A partir daí, formula-se uma cesta alimentar capaz de atender essas necessidades e calcula-se o preço dela. Esse valor é o equivalente à “linha de indigência”, ou seja, os indivíduos que têm renda abaixo dele passam fome.
Da linha de indigência para a de pobreza, são acrescentados os custos das demais necessidades consideradas básicas, como vestuário, habitação, transporte, saúde, educação, etc. Sônia Rocha, pesquisadora do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade, no Rio de Janeiro, afirma no livro A pobreza no Brasil: afinal, de quê se trata? que “estabelecer a linha de pobreza a partir do consumo observado consiste em ter uma base teórica, como as necessidade nutricionais estabelecidas pela FAO. Já o valor do consumo não-alimentar é frequentemente aceito como uma fragilidade inevitável. Não existe uma base teórica para estabelecer o que seja o consumo mínimo adequado em termos de vestuário, habitação, transporte, etc.”
Segundo o Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), em 2005, o Brasil possuía 20.598.495 pessoas abaixo da linha de indigência e mais 34.778.336 abaixo da linha de pobreza. Esses números têm por base a metodologia desenvolvida pela comissão formada pelo IBGE, pelo Ipea e pela Comissão Econômica para a América Latina ( Cepal) para se definir uma cesta básica de alimentos que satisfaça os requisitos nutricionais em cada região brasileira. O levantamento base foi a Pesquisa de Orçamento Familiar, também realizada pelo IBGE.
O principal programa governamental para combater a pobreza é o Bolsa Família, que atende 11,1 milhões de famílias, com benefícios que variam entre R$ 18 e R$ 112, dependendo da renda per capita, número de filhos e gestantes. A linha de indigência considerada pelo programa federal fica em R$ 60 per capita (ou seja, por cabeça), enquanto a de pobreza, em R$ 120. O orçamento total do programa, em 2006, foi de R$ 8,6 bilhões.
A maior crítica feita à linha de pobreza estabelecida pelo programa federal é que ela não varia de região para região, como o custo da cesta. O próprio Ipea, por exemplo, divulga dados que revelam uma grande variação no valor da linha de pobreza. Na região metropolitana de Recife, o valor é de R$ 135,64, enquanto na área rural de Minas Gerais, ele fica em R$ 78. “É essencial, portanto, estabelecer linhas de indigência e pobreza tão espacialmente específicas quanto permita a base de dados”, afirma Sônia Rocha. O Ipea possui o cálculo dos valores para 24 regiões do país.
Ponderação das despesas no IPCA do IBGE, que abrange 9 capitais e duas cidades:
Tipo de Gasto |
Peso % do Gasto |
Alimentação |
25,21 |
Transportes e comunicação |
18,77 |
Despesas pessoais |
15,68 |
Vestuário |
12,49 |
Habitação |
10,91 |
Saúde e cuidados pessoais |
8,85 |
Artigos de residência |
8,09 |
Total |
100 |
Ponderação das despesas no IPC da Fipe, medido na cidade de São Paulo:
Tipo de Gasto |
Peso % do Gasto |
Habitação |
32.79 |
Alimentação |
22.73 |
Transportes |
16.03 |
Despesas Pessoais |
12.30 |
Saúde |
7.08 |
Vestuário |
5.29 |
Educação |
3.78 |
Total |
100 |
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