10/12/2009
O historiador José Carlos Reis, professor da Universidade Federal de Minas Gerais, é atualmente um dos mais reconhecidos autores brasileiros quando o assunto é historiografia e epistemologia da história. Nesta entrevista, Reis comenta as turbulentas relações do estruturalismo do antropólogo Claude Lévi-Strauss com as ciências humanas, mapeia as consequências da vitória (pós-)estruturalista para a historiografia e sentencia: “O estruturalismo foi superado porque se realizou completamente e não porque foi destruído”.
Como você vê o impacto do estruturalismo de Lévi-Strauss no âmbito das ciências humanas e, em especial, na história?
Reis – O ataque de Lévi-Strauss à história foi duro. Ele se sentia incomodado com a hegemonia da história entre as ciências sociais. Se mostrou contrário ao tratamento especial que se dava ao tempo e à história, que considerava um preconceito contra a humanidade primitiva, vista então como “sem história”. Isso era, em sua visão, um etnocentrismo injustificável. O estruturalismo transformou as práticas históricas e levou a Escola dos Annales, a escola da “longa duração”, ao poder institucional na França e em todo o Ocidente. Para fazer face ao ataque dos estruturalistas (não só de Lévi-Strauss), a historiografia se transformou profundamente: tornou-se uma “história estrutural”, que mostrava um homem diferente (massivo, incapaz de produzir eventos históricos, de ser sujeito histórico), uma sociedade diferente (determinada por forças anônimas, inconscientes), uma temporalidade mais estável e natural (sem feitos, sem eventos, sem teleologia). Houve uma euforia cientificista, porque os Annales prometiam um conhecimento histórico quantitativo, com a utilização de modelos, matemáticas sociais, que o afastaria da narrativa e o levaria a um formato estatístico, com gráficos e tabelas, curvas, apoiadas em fontes seriais, que mostrariam, de forma tecnicamente objetiva e conceitualmente problematizante, o passado. Lévi-Strauss quis substituir a história pela etnografia, a sociologia pela etnologia. Para ele, a sociologia não conseguiu oferecer conclusões universalmente válidas sobre sociedades primitivas e complexas, e não merecia ter papel central na pesquisa social. O estruturalismo de Lévi-Strauss impôs às ciências humanas a hegemonia das matemáticas e da lógica das ciências naturais.
É possível dizer que o estruturalismo de Lévi-Strauss teve consequências epistemológicas não apenas para as ciências humanas, mas também para as ciências naturais (especialmente aquelas que se voltam a problemas limítrofes aos das humanas, como as biológicas, neurológicas etc.)?
Reis – É possível, sim, porque em O pensamento selvagem, ao mesmo tempo em que não opõe a história à natureza, o tempo ao espaço, Lévi-Strauss privilegia a natureza e o espaço contra a história. Ele privilegia o corpo, o cérebro, a reprodução sexual, as relações de parentesco, a genética, a geografia, o clima. A cultura se diferencia da natureza, mas dentro dela e, em última instância, continua sendo natureza. O homem é mais natureza do que história, mais espaço do que tempo. A busca da inteligibilidade parte da história para aboli-la em ordens naturais permanentes, profundas. Por isso, a antropologia não diferencia o “selvagem” e o “civilizado”, pois eles têm a mesma estrutura lógico-intelectual, que torna a sua aparente diferença histórica em algo irrelevante. O histórico é só a aparência, o superficial, o visível, o epifenômeno, que por si só não se sustenta. Assim, Lévi-Strauss propõe a busca da ordem subjacente, imóvel, permanente, que permite uma análise matemática, científica.
O pensamento de Lévi-Strauss teve, também, consequências significativas para a epistemologia, a filosofia e a história da ciência?
Reis – O estruturalismo é uma epistemologia. Se você submeter qualquer ciência à epistemologia estruturalista, verá desaparecer o seu sentido evolutivo e progressivo, os eventos, as revoluções científicas, os heróis científicos, as novidades absolutas: tudo já está aí, nenhuma descoberta vai quebrar a ordem lógica, irá apenas “transformá-la e enriquecê-la”. O estruturalismo em epistemologia foi associado à ideia de “descontinuidade”: ordens lógicas de longa duração se sucedem sem realizarem uma teleologia. Nenhuma finalidade se realiza na história, que não é o lugar do aperfeiçoamento da humanidade. Embora o “enriquecimento” da estrutura possa ser visto como “progresso”, esse progresso não é visto como conquista da “consciência absoluta”, da liberdade, da razão.
Do seu ponto de vista, que tipo de influência está em jogo na recusa pós-moderna do estruturalismo? A história, em seu esforço de desconstrução e de atenção às particularidades, tem suas impressões digitais nessa recusa?
Reis – O estruturalismo já era pós-moderno, porque desconfiava do sujeito, da consciência, da razão. Surgindo contra o racionalismo modernista, o estruturalismo parece, paradoxalmente, um hiperracionalismo: quer buscar um sentido que se esconde, decodificar uma dimensão oculta e fundamental da sociedade. O pós-estruturalismo, a partir dos anos 1970/1980, de certa forma, radicalizou algumas teses estruturalistas e saltou para fora do Iluminismo e do seu projeto moderno. O pós-estruturalismo denuncia o estruturalismo como sendo ainda um discurso da razão. Os pós-estruturalistas não buscam mais verdades históricas nem aparentes e nem essenciais, nem manifestas e nem ocultas. A fragmentação é levada ao extremo. O universal não é pensável. A consciência moderna, construída pelo Iluminismo, é “desconstruída” pelo pós-estruturalismo. A verdade universal se pulverizou em análises pessoais. O conhecimento histórico é múltiplo e não definitivo: são interpretações de interpretações. A realidade é produzida por jogos de linguagem – nada a toca de modo substancial. O estruturalismo foi superado porque se realizou completamente e não porque foi destruído. Lévi-Strauss e os Annales venceram a ideia de “evolução” como progresso ou revolução. Depois da “revolução de 1989”, quando o sistema capitalista se impôs como se fosse uma “ordem natural”, a historiografia tematiza as suas oscilações, variações, transformações estruturais, que não levam para o exterior da ordem. Hoje, não se luta mais contra a ordem, logo, a lógica estruturalista venceu.
Como a historiografia tem dialogado atualmente com as conclusões mais relativistas do pós-estruturalismo?
Reis – Penso que se pode distinguir pelo menos três posições em relação ao “relativismo pós-estruturalista”, à crise da verdade, após a euforia cientificista estruturalista. A primeira é articulada por Hayden White, para quem o relativismo é libertador. Ele não vê oposição entre história e ficção. O historiador produz construções poéticas e se ilude quanto à realidade e verdade de seus relatos. Mesmo que se irritem com o apagamento da fronteira entre o real e o ficcional, os historiadores não podem evitar de pensar no seguinte: a explicação histórica não é dada pelo conteúdo factual. A história adquire sentido da mesma forma que o poeta e o romancista dão sentido ao real. E, para White, isso é bom. A história não é diminuída quando aproximada da literatura, que é também um saber superior. Afinal, só o conhecimento científico é válido? Se o mundo é tal como você o narra, tal como lhe parece, ninguém mais se deixará dominar por discursos dogmáticos e “verdadeiros”, que só são ideologias perigosas. O passado pode ser mudado, a história não precisa ser um fardo insuportável. Do lado contrário, há a posição de Carlo Ginzburg, o “combatente pela história” mais radical contra o ponto de vista histórico pós-moderno. Rejeita vigorosamente a “máquina de guerra cética”. Para ele, a metodologia da história, hoje, está distante do trabalho concreto dos historiadores, pois nenhum historiador quer produzir apenas “retórica”. Ginzburg vê graves consequências epistemológicas, éticas e políticas na negação da distinção entre narrativas históricas e imaginárias. O discurso histórico relativista é visto como empático com os “vencedores de 1989”, protegendo o Ocidente da sua culpa e tornando-o irresponsável por sua história de conquistas, genocídios, escravidões, holocaustos e terrorismos. Por fim, Paul Ricoeur aponta um outro caminho para a historiografia. Sua abordagem não toma o texto em si mesmo, não aceita a suspensão que faz do mundo, mas o restitui ao diálogo. O texto deixa de ser fechado em si mesmo, porque permite que o leitor se aproprie dele e o transforme, para aplicá-lo ao seu mundo, interpretando a si mesmo, compreendendo-se melhor, pela mediação dos textos.
De que lado você se posiciona?
Reis – Sinceramente, compartilho da visão combativa de Carlo Ginzburg. O que não significa que devemos deixar de compreender os outros pontos de vista, que apresentam ideias profícuas para a análise histórica.
Como você avalia, pessoalmente, a obra de Lévi-Strauss?
Reis – A obra de Lévi-Strauss é monumental! O que não significa que se deva acolhê-la completamente e segui-lo cegamente. O estruturalismo fez mal quando foi encarado como religião, como uma fé. A sua obra é monumental como interlocutora, como um ponto de vista crítico, incontornável, da consciência histórica ocidental.
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