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Artigo
Entre morros e mares
Por Ana Luiza Nobre, Catarina Flaksman e Yasmin Martins
10/10/2010

“O Rio de Janeiro não está construído como uma cidade vulgar. Tendo se estabelecido primeiro na zona plana e pantanosa que rodeia a Baía, penetrou posteriormente entre os morros abruptos que a rodeiam por todos os lados, como dedos numa luva demasiado estreita”.

A observação do antropólogo francês Claude Lévi-Strauss, extraída de Tristes Trópicos, abre o filme Entre morros e mares, que está sendo realizado por uma equipe de professores e alunos dos cursos de arquitetura e cinema da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro/PUC-Rio1, com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro/Faperj2. O documentário, ora em fase de finalização, propõe um olhar renovado sobre a evolução urbana do Rio de Janeiro, do ponto de vista da técnica – construtiva, viária, paisagística e urbanística – que tornou esta cidade possível.

Assista o vídeo de divulgação de Entre morros e mares

Por vezes conflituosa, a relação entre cidade e técnica certamente não é exclusiva do Rio de Janeiro, mas não apenas é determinante como manifesta-se de maneira particularmente expressiva – e por vezes também dramática – nesta cidade. No Rio, de fato, a ação contínua do homem sobre a natureza modelou e remodelou a cidade desde a sua fundação, em 1565, possibilitando tanto a sua instalação numa área pantanosa e acidentada quanto seu desenvolvimento e expansão ao longo dos séculos.

Por outro lado, a mesma técnica que viabilizou o desenvolvimento da cidade contribuiu para a situação crítica em que ela se encontra: a febre viária que buscou reduzir os congestionamentos nos anos 1950-60 favoreceu igualmente a fragmentação e estratificação espacial e social, enquanto grandes obras de arquitetura varreram praças e espaços públicos, ainda que oferecendo novos ambientes de sociabilidade. De modo análogo, a disseminação, generalização e barateamento de soluções e sistemas técnicos tanto propiciou soluções inovadoras quanto contribuiu para desencadear a lógica perversa que conduziu à proliferação de assentamentos irregulares e precários, muitas vezes em encostas e situações de alto risco.

Tendo isso em vista, o roteiro do filme foi desenvolvido não com o propósito de exaltar acriticamente a técnica, e sim despertar o espectador – leigo ou especializado – para um pensamento crítico sobre a cidade do Rio de Janeiro, com base no entrelaçamento de aspectos cruciais ligados à sua evolução urbana e ao desenvolvimento técnico materializado em obras de arquitetura e engenharia que assumiram papel decisivo na conformação física-territorial da cidade e na definição da sua imagem urbana.

Tomando como referência inicial o pensamento do filósofo espanhol José Ortega y Gasset (Meditação sobre a técnica), partimos de uma definição de técnica como uma ação humana sobre a natureza, visando à evolução do modo de existência do homem e a satisfação das suas necessidades, sejam elas elementares ou não. Extraída essa definição, passamos a discutir como a técnica envolve atos, procedimentos e processos de construção, ferramentas, máquinas e materiais. Em suma, uma prática inventiva, um “saber fazer” (techné) que, se na sua origem grega, confunde-se com a própria criação artística, certamente se verá cada vez mais problematizado e desafiado, sobretudo nos centros urbanos.

Seguimos então para a recuperação e análise de representações cartográficas da cidade do Rio de Janeiro ao longo do tempo, o que nos permitiu observar, efetivamente, um entrelaçamento fascinante entre história urbana e história da técnica na construção dessa cidade. No período colonial, por exemplo, o enxugamento de brejos e mangues foi fundamental para a conquista do solo à natureza. E se no começo do século XX o Rio começou a deixar para trás, de fato, sua feição colonial, foi em grande parte em função das grandes reformas urbanísticas conduzidas na administração do prefeito e engenheiro Pereira Passos (1901-6), como a abertura das avenidas Central e Beira-Mar, destinadas a conferir à cidade a imagem por excelência do projeto de modernização político-cultural identificado com a República. Mais adiante, no período compreendido entre os anos 1930 e 1950, o Rio de Janeiro tornou-se matriz da arquitetura moderna no país e sede de uma “escola de concreto armado” que ganhou reconhecimento internacional e fez surgir por toda a cidade túneis, pontes, viadutos, reservatórios d´água, obras hidráulicas, portuárias e edifícios altos.

Na verdade, a aceleração da transformação da paisagem urbana carioca esteve intimamente associada à disseminação da técnica do concreto armado a partir da década de 30. Por permitir a construção rápida de edifícios altos a custo relativamente baixo, sem exigir grande investimento em mão-de-obra ou equipamentos, esse material acabou favorecendo a verticalização veloz da cidade, sobretudo na zona sul.

Já consolidado no início dos anos 1930, o bairro de Copacabana, por exemplo, passou por um intenso adensamento na década seguinte: o casario original foi substituído por edifícios de apartamentos de 4 ou 5 pavimentos, que logo começaram a dobrar de altura e se estender ao longo da orla. Mas a valorização rápida dos terrenos, associada à permissividade da legislação urbanística, também deu margem a uma especulação imobiliária que acentuou as diferenças socioespaciais na cidade e abalou profundamente sua estrutura urbana.

Para adequar-se ao número crescente de automóveis, a cidade se equipou com grandes obras viárias nos anos 1950-60 e viu surgir algumas obras pioneiras, do ponto de vista técnico, no que diz respeito tanto ao uso do concreto armado quanto da estrutura metálica. São desse período, por exemplo, o Museu de Arte Moderna, projetado por Affonso Eduardo Reidy em concreto aparente e estrutura porticada, o Edifício Avenida Central e o Pavilhão de São Cristóvão, projetados respectivamente pelos arquitetos Henrique Mindlin e Sergio Bernardes, fazendo uso inovador do aço.

A investigação mais pormenorizada dessas obras acabou definindo o recorte temporal do filme em torno de um arco que se estende dos anos 1950 até o presente. Nesse arco estão compreendidas desde as obras de desmonte do Morro de Santo Antonio (administração Dulcídio Cardoso, 1952-4), a obras viárias e urbanísticas que se seguiram à transferência da capital federal para Brasília, em 1960 (como o Parque do Flamengo, construído na administração Carlos Lacerda, 1961-5); além de grandes obras que marcaram os anos 1970, como a Ponte Rio-Niterói, o metrô e a ocupação da Barra da Tijuca, e outras mais recentes, como a Linha Amarela.
Com base em pesquisas conduzidas em arquivos públicos e privados, logo percebemos o quanto as questões técnicas, frequentemente, se impuseram como um desafio que permeou ações, práticas e políticas urbanas na cidade, e acabou se convertendo também em atrativo fundamental para o uso de muitos de seus espaços públicos. Surpreendentemente, no entanto, não só o papel da técnica permaneceu subestimado na construção da história do Rio de Janeiro; também os engenheiros, que tiveram um papel fundamental nesse processo, permaneceram praticamente desconhecidos.

Entre morros e mares mescla, assim, depoimentos inéditos de alguns desses engenheiros (Paulo Fragoso, Bruno Contarini, Walter Braga, Affonso de Escobar Bevilacqua e Geraldo Fillizola) com fotos, desenhos e filmagens de época e atuais, a fim de revelar, ao mesmo tempo de maneira didática e poética, a estreita correspondência entre a história da técnica e a história da cidade. Ao longo de seus 24 minutos, o filme alterna ainda vistas panorâmicas e “flashes” urbanos, procurando também sensibilizar o olhar do espectador para as distintas, e por vezes contrastantes, dimensões que definem a experiência contemporânea de uma metrópole como o Rio.

O argumento do filme é reforçado por um olhar mais pausado sobre cinco obras que foram consideradas emblemáticas, do ponto de vista da relação entre cidade e técnica: o Museu de Arte Moderna, o Edifício Avenida Central, o Pavilhão de São Cristóvão, o Viaduto do Joá e a Ponte Rio-Niterói. Tais obras pontuam a estrutura cronológica do filme e se destacam no panorama do Rio de Janeiro que aos poucos vai se desenhando, com base no embate entre homem e natureza: da fundação da cidade à expansão para os subúrbios, da dissolução de morros à criação de aterros, da implantação de grandes projetos de infraestrutura urbana à construção de edifícios altos, da perfuração de morros à travessia de mares.

Ana Luiza Nobre é arquiteta, doutora em história pela PUC-Rio e professora de teoria e história da arquitetura no curso de arquitetura e urbanismo da PUC-Rio, Catarina Flaksman e Yasmin Martins são alunas do curso de arquitetura e urbanismo da PUC-Rio.

1 - Concepção e Roteiro: Ana Luiza Nobre; Direção e Fotografia: Tiago Rios; Produção: Letícia Pires; Som: Caio César Loures, Fabio Laiho; Música Original: Yuri Amorin; Montagem: Itauana Coquet, Katherine Chediak; Pesquisa: Catarina Flaskman, Yasmin Martins

2 - Todo o projeto pode ser acompanhado no blog do filme: http://planocidade.wordpress.com/